A Puta I - O começo Acordou tarde, como de costume. Não porque quisesse, mas o relógio biológico do corpo assim o quis. Por ela, se pudesse, ficaria nua na cama dormindo abraçada com o travesseiro comprado na última viagem a Milão, numa loja onde conhecera Vincenzo. “Vincenzo”, repetia o nome, cerrava as pálpebras, e afundava o rosto naquela fronha recheada de flocos de espuma. E, em instantes, transportava-se para o banheiro do Teatro Scala... Tinha ido assistir, sozinha, a ópera Turandot, de Puccini. Durante a obra, sentiu uma vontade enorme de ir ao banheiro. Sem querer, ou não, havia entrado no banheiro masculino por engano. Lá estava ele. Um metro e oitenta, pele alva, nariz adunco, ombros largos, cabelos negros e com uma mecha azulada na parte lateral da cabeça, do mesmo azul feito das águas do Lago de Como, na região da Lombardia. Ainda lavava as mãos quando viu, pelo espelho do banheiro, a imagem dela. De início ficou sem graça, mas foi tomado de uma súbita vontade de cometer uma loucura. “Você está no banheiro masculino...”, disse ele, com um misto de grata surpresa e embaraço. Mas o embaraço desapareceu assim que a fitou de perto. Ela usava um vestido lilás aveludado, costas nuas, e com um longo corte no pano sobre a coxa da perna esquerda. A pele, queimada pelo sol da praia de Nápoles, onde estivera dois dias antes, ainda trazia o cheiro da maresia misturada à loção cremosa que sempre usava. “Pois é, te vendo agora que notei...”, arranhou num italiano improvisado. Ele fez o gesto de abrir a porta para que ela saísse, mas assim que alcançou a maçaneta folheada a ouro girou o trinco trancando os dois lá dentro. Pegou-a pela nuca, por debaixo dos longos cabelos castanhos, subiu os grandes dedos da mão abrindo ramificações por entre as mechas e girou a cabeça dela de encontro com a sua. “O que você está faz...”, não conseguiu terminar a frase. Quando deu por si estava sendo beijada de uma maneira que nunca mais esqueceria. Era como se Deus, ao forjar as bocas que haviam de habitar o planeta, colocasse na dele algum tipo de encaixe que, junto aos seus lábios, era difícil separar. Ele fez deslizar a alça do vestido e o mais que se ouviu foram gemidos juntos aos cantos dos tenores e sopranos... Foi transportada de volta ao quarto. Olhou ao redor. Viu o travesseiro, a mobília, as roupas jogadas ao chão e seu gato persa, Duby. Foi à janela, se apoiou no parapeito, olhou os prédios com uma pintura deteriorada do subúrbio em São Paulo, onde morava, lembrou-se de Vincenzo mais uma vez e de Puccini: “Tu pure, o, principessa, nella tua freda stanza, guardi, le stelle... Che tremano d´amore e di speranza...” Era difícil ter esperança naquela profissão. “É uma ironia que a profissão mais antiga do mundo ainda não seja considerada uma... profissão!”, concluiu de si para si. “Fodam-se todos vocês”, gritou alto do parapeito da janela para que todos a escutassem. “Cala a boca, porra!”, alguém respondeu gritando do andar de abaixo. “Nem todo mundo trabalha de madrugada igual a você, PUTA!”. Puta. Aquilo soou como um segundo nome. Já não lembrava mais qual era o seu verdadeiro nome, seu nome de batismo. Eram tantos nomes quanto o desejo dos seus clientes. Marcela, Yasmim, Dandara, Daniela, Carla, Natasha, Manuela, Laura, Isabela, Lívia, Maya, Sarah e seguia uma lista infinita, tão infinita como o infinito e insaciável desejo masculino. “Afinal, o que é um nome?”, indagou a si mesma. “Nesse mundo, somos coisas desejadas e desejantes com meros rótulos nas capas e cuja data de validade é a morte”. Gostava de filosofia. Lembrava-se do seu professor de filosofia do ensino médio com frequência. Só não recordava direito do nome dele. “Será que era Daniel? Não, Daniel foi o cliente de ontem, aquele escroto de unhas sujas. Ou era David? Era com D. Ah, dane-se...”. Sentia-se culpada por não ter conseguido terminar o ensino médio, mas orgulhosa de ter guardado, no escafandro da memória, algumas lições de antigos filósofos e filósofas passadas pelo seu mestre. “Você é mulher”, dizia seu professor de filosofia, “num mundo governado, regido e ordenado por homens, você tem que ser duas vezes melhor, nunca se esqueça disso”. Ela não esqueceu. Até que veio a perda do pai e da mãe num acidente de carro quando ela ainda contava 16 nos. Viajavam de férias, em dezembro, para visitar a casa dos avós, em Bertioga, litoral paulista. Seu pai, engenheiro, tinha acabado de voltar dos Estados Unidos após cumprir um curso de construção de plataformas off-shore, e com a reserva de dólares que tinha feito lá, decidira custear a viagem de natal ao litoral para visitar os pais. Era uma tarde ensolarada qualquer do dia 23 de dezembro de 1985. Ela estava no banco de trás, brincando um jogo de advinha com seu pai em inglês. Era a vez dele. “I spy with my little eye something that starts with s”. A resposta era sky. Mas não deu tempo. Uma carreta desgovernada derrapou e atingiu o carro em cheio. Seus pais morreram na hora, só ela sobrevivera. Ou melhor, só ela foi condenada a “morrer em vida”, como preferia classificar o tipo de “vida” que tinha. Dali em diante prometeu vingar-se de Deus. E optou por levar um estilo de vida desregrado e comprometido apenas com o prazer carnal. Esconjurando todo tipo de reprimenda que lhe fizessem. Decidiu ser puta.
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