Rights for this book: Public domain in the USA. This edition is published by Project Gutenberg. Originally issued by Project Gutenberg on 2010-12-27. To support the work of Project Gutenberg, visit their Donation Page. This free ebook has been produced by GITenberg, a program of the Free Ebook Foundation. If you have corrections or improvements to make to this ebook, or you want to use the source files for this ebook, visit the book's github repository. You can support the work of the Free Ebook Foundation at their Contributors Page. The Project Gutenberg EBook of Livro de Consolação, by Camilo Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Livro de Consolação Author: Camilo Castelo Branco Release Date: December 27, 2010 [EBook #34756] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK LIVRO DE CONSOLAÇÃO *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Notas de transcrição: O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1872. Foi mantida a grafia usada na edição original de 1872, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados. BIBLIOTHECA—MORÉ LIVRO DE CONSOLAÇÃO ROMANCE POR CAMILLO CASTELLO BRANCO Não nos sirva de medo ou de desvio Vêr como vai o mundo concertado. D. F RANCISCO M ANOEL DE M ELLO — A tuba de Caliope. PORTO VIUVA MORÉ—EDITORA PRAÇA DE D. PEDRO — 1872 {1} LIVRO DE CONSOLAÇÃO {2} PORTO—IMPRENSA PORTUGUEZA {3} LIVRO DE CONSOLAÇÃO ROMANCE POR CAMILLO CASTELLO BRANCO Não nos sirva de medo ou de desvio Vêr como vai o mundo concertado. D. F RANCISCO M ANOEL DE M ELLO — A tuba de Caliope. PORTO VIUVA MORÉ—EDITORA PRAÇA DE D. PEDRO — 1872 {4} {5} A SUA MAGESTADE O SENHOR DOM PEDRO SEGUNDO IMPERADOR DO BRAZIL {6} S ENHOR Eu não solicitei licença para dedicar a V OSSA M AGESTADE I MPERIAL este livro que representa um trabalho—palavra sagrada que nobilita e exalta os mais futeis lavores do espirito. Vi por esta lente de ambicioso alcance a pequenez da offerta, para que me não fallecesse a affoiteza de ir depor na livraria de V OSSA M AGESTADE as paginas estereis da historia d'umas paixões triviaes da vulgaridade, do mal. Além de que, S ENHOR , quando eu escrevia estas linhas, em frente da cadeira onde V OSSA M AGESTADE se assentou, no escriptorio do operario, esqueci-me de que é Imperador do Brazil Aquelle a quem as envio; e vejo tão sómente o sabio, o modelo de principes que, ao descerem até aos pequenos, deixam o diadema em altura onde mais subidos vão os respeitos. Desde o momento que V OSSA M AGESTADE me honrou a obscuridade, fazendo-me sentir que vinte e dous annos de incessante lidar mereciam o galardão de alguns minutos gloriosos, {7} tambem eu cobrei alentos para chegar até á meza de estudo do douto Imperador, e esperar ahi uma hora muito feriada de leituras proveitosas para então LHE offerecer com respeitosa confiança um livro de mero desenfado, pois não tenho mais nada com que possa significar a V OSSA M AGESTADE a minha gratidão. De V OSSA M AGESTADE I MPERIAL o mais reverente criado Camillo Castello-Branco. {8} {9} INTRODUCÇÃO Le résultat de l'art... c'est l'adoucissement des esprits et des mœurs, c'est la civilisation même. V. H UGO. — Les voix intérieures. Em uma tarde de agosto de 1867, passeava eu, com um amigo de aprazivel tracto, nos arrabaldes de Lisboa, e comparávamos a desamena e árida vegetação d'aquellas gándaras com os arvoredos e verdejantes valles do Minho. Alli por perto de Odivelas me disse o meu amigo Luiz da Silva: —Entremos por esta azinhaga que não tem sahida. Isto vae dar áquella casinha branca. Móra lá um velho a quem te vou apresentar. Mas quem sabe se o homem morreu?! Ha tres annos que o não vi... —Tem esse sujeito—perguntei eu com a minha natural magnanimidade de immortalisador— passagens na vida dignas de chronica? {10} —Tem, e magnificas. —Capazes de um volume de 250 paginas em 8.º? —Isso não sei. A biographia d'este homem é uma infelicidade vulgar, que, todavia, fez grande estrondo; mas os naufragios do coração parecem-se aos do mar: abre-se um abysmo, que sorve centenares de vidas, e d'ahi a pouco nenhum vestigio sobrenada á flor das ondas; assim succedeu na procella que sossobrou o velho que vaes vêr. —Fez grande estrondo, disseste ahi tu! Mas eu, attento aos escandalos estrondosos do meu paiz, não me lembro d'isso... —Não eras ainda nascido. —Ah! eu não era ainda nascido? Isso então é caso muito antigo... —Um pouco depois da edade-media—replicou Luiz da Silva. E d'esta fórma gracejando por conta da nossa velhice, entestamos com uma porta estreita e baixa pertencente ao quintal da casinha branca. O meu amigo bateu duas aldravadas na porta. —Está aberta; levante o ferrolho quem é—disse uma voz de dentro. —É vivo o homem!—disse Luiz, entrando. Caminhamos por debaixo de uma parreira, cujos pilares se vestiam de festões de rozeiras vulgares e descuradas, alastrando-se por terra, e formando alcatifa de rosas murchas. Ao cabo da fresca e assombrada avenida, encontramos um caramanchel enverdecido de trepadeiras, {11} e lá dentro um ancião sentado em escabello de cortiça, afagando um gato maltez que lhe dormitava sobre os joelhos, e com pachorrento desdem entre-abriu os olhos á nossa chegada. O velho formou com a mão direita um quebra-luz sobre os oculos verdes que pareciam coar-lhe aos olhos escassa claridade, e disse com prasenteiro semblante: —Quem me faz a honra?... —É Luiz da Silva e um amigo que tem a honra de ser apresentado a V . Ex.ª Depois da apresentação, o sujeito, para quem o meu nome não era inteiramente desconhecido, disse ao meu amigo: —Muito ha que o não vejo, snr. Silva. Seu tio general esteve aqui ha tempos, e me contou que V . Ex.ª andava a correr mundo. Conte o que viu. —Vi o que Salomão via em tudo: vaidade.—Respondeu, sorrindo, o meu companheiro. —Então, caro senhor meu, não só viu, mas estudou muito—volveu Venceslau Taveira, afagando o lubrico dorso do gato que, estrouvinhado pela incommoda palestra, se remechia no regaço do dono, resmuneando, e afofando o ninho para recomeçar o seu placido dormir.—Escusava de sahir de si proprio, snr. Silva, para vêr o homem qual é em toda parte—proseguiu o velho. —E, se eu quizesse vêr um homem distincto do commum—tornou o meu amigo—bastar-me-hia ter conhecido V . Ex.ª {12} — Distincto , quer dizer, distincto na infelicidade...—acudiu Taveira. —Na honra e na virtude—emendou Luiz da Silva. —Agora vejo que não estudou nada... Vaidade, tudo vaidade, e... algumas lagrimas. E, voltado contra mim, perguntou: —O seu amigo disse que v. é da provincia. É minhoto? —Tenho vivido no Porto—respondí. —Lá viví tambem dois annos e tanto. Os suburbios são graciosos, quanto me podiam parecel-o atravez do fumo das batalhas. Sou um dos sete mil e quinhentos. Conservo recordações agradaveis de umas grandes arvores da quinta do Vanzeller. Verdade é que as contemplei em posição molesta. Havia- se-me cravado uma bala na perna direita, e assim estive duas horas esperando a maca. Foi n'este espaço de tempo que eu, confrangido, de dôres, admirei a serenidade das arvores, e ponderei a vantagem de ser vegetal, estranho ás côrtes de Lamego e á constituição da monarchia. E a impassibilidade das carvalheiras aparando as balas no seu arnez de cortiça! Tudo é grande e forte, excepto o homem! O homem... esse é um mixto de odios, de angustias e vaidades, segundo assevera o nosso viajante Luiz da Silva... Proseguiu o ancião, entremeando de discretas jocosidades a deleitosa conversação, que durou duas fugitivas horas. {13} Não se me abriu ensejo de pedir a Venceslau Taveira licença de o visitar, nem elle me offereceu a sua casa. Facil era de perceber que, se as visitas lhe eram agradaveis, a solidão lhe era mais recreativa que as visitas. Convidou-nos para o seu chá, quando anoiteceu, e acompanhou-nos até á porta do quintal. —Quem é este homem?—perguntei ao meu amigo. —A historia d'este homem ha de contar-t'a meu tio general que é do tempo d'elle, e vem todos os annos da provincia de Traz-os-Montes visitar o seu companheiro de infancia. Os lances essenciaes poderei referir-t'os; mas as particularidades só meu tio Pedro as sabe. —Que posição social tem elle? Ouvi-te dar-lhe excellencia. —A «excellencia» poderia significar que elle não tem alguma posição social; ainda assim, dou-lhe excellencia, porque o seu appellido representa familias antiquissimas da Beira Alta; além d'isso, é do conselho de Sua Magestade, official maior de secretaria aposentado, gran-cruz da ordem de Christo, etc. Desde Odivelas a Lisboa, me referiu Luiz da Silva as passagens capitaes da historia de Venceslau Taveira. Alguns mezes depois, o general Pedro da Silva chegou a Lisboa, e, a rogos do sobrinho, contou-me circumstanciadamente {14} successos que elle denominava os obscuros heroismos da mais honrada e excruciada alma. E concluiu d'esta maneira: —Se v. quer obrigar-me, escreva estes acontecimentos; mas não os enfeite com episodios de sua casa. Se a narrativa sahir verdadeira, poderá ser util. Deve v. fazer um livro dulcificante para alguns corações amargurados. Póde até denominal-o, se quizer: LIVRO DE CONSOLAÇÃO . Dou-lhe por cada lagrima, que fizer verter, um germen de boa acção, ou se quer de um bom pensamento. Porém, se v. adulterar a tragica singeleza d'esta desgraça com as inverosimilhanças do genio francez, o seu livro ficará sendo meramente uma novella. Escuso pedir-lhe—terminou o general—que empregue tão sómente a sua phantasia nos nomes dos personagens, em razão de estar ainda vivo o principal. {15} I Historia infantil de todo o homem que sente.... L OPO DE S OUZA — Herança de lagrimas. Venceslau Taveira nasceu na comarca de Lamego em 1795. Como filho segundo de casa vinculada, foi destinado desde o berço a frade cruzio ou benedictino. Estudou humanidades em Coimbra, e entrou, portanto, a noviciar na casa capitular de Tibães aos quinze annos. Findo o anno de prova, o profitente interrogado manifestou que lhe faltava genio e fé para ser frade como cumpria. Fr. Francisco de S. Luiz, então conventual em Tibães, e, mais tarde, bispo, ministro liberal, patriarcha e cardeal, sahiu em defeza do noviço contra as violentas persuasões dos monges escandalisados da impiedade de Venceslau. Não ter fé! Era a primeira vez que um noviço ousára dizer que não tinha fé! Que elle não tivesse virtudes, {16} vá; que muito frade se salvou sem ellas, graças ao habito que faz o monge e á contricção final que faz o santo; mas não ter fé!... Sem impedimento d'estas e outras razões dos frades escandalisados, argumentava o sabio benedictino que era desprimor notavel para a religião o acorrentarem-lhe ao altar os seus sacerdotes; que o descredito das ordens monasticas havia sido motivado pelo vicioso proceder dos frades constrangidos; e que, finalmente, ninguem esperasse que a violencia abrisse á luz da fé corações fechados e escurecidos pela duvida. Com tão válido protector, o noviço despiu o habito e foi para casa. Recebeu-o a mãe com amorosa indulgencia; mas o pae, affrontado da insolita rebeldia, apertou-o no duro dilemma: ser frade, ou, quando não, ir grangear sua vida onde lhe bem quadrasse. Baldados os rogos e piedades da mãe, já ao marido para que perdoasse, já ao filho para que obedecesse vestindo o habito, Venceslau, com algumas moedas liberalisadas pela commiseração maternal, foi caminho de Lisboa onde não tinha parentes nem amigos. Principiava o anno 1811. O mancebo chegou a Santarem no dia em que o general Massena alli aquartellava a sua divisão. O reboliço da cidade desbordando de tropa, o espectaculo offuscante de um exercito embriagado de victorias, aquellas magestosas figuras dos generaes do imperio alvoroçaram o animo do rapaz cuja imaginação verdejava as epicas fantasmagorias dos dezesseis annos. {17} Que farte ouvira elle em Tibães execrar Napoleão, Massena, Soult, Junot e os outros d'aquella funesta constellação. O seu entendimento queria duvidar da justiça das accusações; mas o patriotismo insinuava- lhe o dever de odiar francezes, salvante Rousseau, cujas obras elle podéra lêr clandestinamente, subtrahindo-as da gavêta defeza da livraria de Tibães, onde talvez as recadasse com prudente cautela o esclarecido fr. Francisco de S. Luiz. Á conta pois do auctor do Contracto Social está, por desventura de sua alma, a grave responsabilidade de haver-se esquivado á tunica de S. Bento aquelle rapaz que em Santarem perguntava a outros:—Depois d'este acto de justiça quem póde negar a Massena as virtudes militares que Plutarco refere dos varões illustres de Grecia e Roma? O leitor vae recordar a sabida passagem que, no espirito do moço enthusiasta, emparceirava o general francez com Themistocles ou Paulo Emilio. Quando os francezes retiravam de Alemquer, certa familia de notoria fidalguia, receando insultos da plebe, acompanhou o exercito invasor com uma escolta de dois dragões. Ora um d'estes indignos guardas, ageitada a occasião, e vencido do impeto do sangue e dos conselhos do demonio, maculou mais ou menos —mas é de crêr que fosse mais—a pudicicia de uma das damas confiadas á sua vigilancia. Eis pois um dragão indigno de aparelhar com o outro que, no jardim das Hesperides, guardava o vélo {18} de ouro, de certo com mais peso e quilates, mas com muito menos direitos á nossa consternação. E succedeu que a dama queixosa, posto que o infando desastre houvesse sido secreto, (ave rara!) preferisse ser honrada a parecel-o. Assim pois, logo que chegou a Santarem, D. Lucrecia (ouso chrismal- a assim em honra da sua memoria bastante romana) expoz a Massena o affrontamento que lhe fizera o dragão. Ordenou para logo o general que o criminoso entrasse em conselho de guerra, e tão summario correu o processo que, no lapso de meia hora, foi o carnalissimo réo interrogado, sentenciado, confessado e espingardeado! E como quer que alguem intercedesse em favor do comdemnado exorando menos rigorosa pena, o general respondeu: «Depois de arcabuzado, requeira». Tal foi o caso de disciplina que obteve para as aguias de Austerlitz um acerrimo partidario. Apresentou-se Venceslau Taveira ao marquez de Alorna, um dos generaes portuguezes que seguiram deslumbrados o metheoro da Corsega, quando as côres ardentes já se íam esmaiando ao visinhar-se do céo de Waterloo. O marquez, illustrado e dadivoso, agasalhou o foragido noviço com tanta cortezia como caridade, sentando-o á sua mesa e provendo-o das coisas que lhe escasseavam, na crise em que a fome apalpava os portuguezes menos protegidos. Comprazia-se o provinciano em convivencia d'alguns fidalgos, commensaes de Alorna, taes como o marquez {19} de Loulé, o conde de S. Miguel e D. Luiz de Athaide. Este ultimo foi grande parte no precoce rancor de Venceslau aos governos absolutos. Era D. Luiz de Athaide filho do conde de Atouguia e neto do marquez de Tavora, ambos justiçados como regicidas sob o reinado de D. José I Um dos amigos de Venceslau, então adquiridos em casa do marquez, escrevendo, quarenta e cinco annos depois, as suas Memorias , avaliou ineptamente D. Luiz de Athaide com estas descaroadas linhas: «... Não posso deixar de mencionar outro homem notavel que alli encontrei, e que, descendente da mais alta fidalguia da nossa terra, era um tristissimo exemplo da degradação a que póde chegar a especie humana, decahida do explendor da grandeza e mergulhada no lodaçal da miseria e despreso. Foi D. Luiz de Athaide filho e neto d'essas familias desgraçadas a quem o inexoravel grande marquez de Pombal sacrificou sobre o horroroso altar do poder absoluto e de quem até pretendeu riscar os nomes da superficie da terra... Em verdade, era digno de ser observado por quem podésse bem avaliar o que são e podem ser os destinos do animal chamado homem... Quem o via, e não sabia quem era, só o podia ter por um sordido e baixo môço de cavallariça. Na sua figura e no seu trage trazia todas as insignias das maldições humanas, e nas suas palavras não havia senão rancor e odio, e esse rancor e odio tão profundos e inveterados, quantos eram os annos desde que poude conhecer as suas {20} mizerias. A quem lhe fallasse na casa de Bragança, respondia com rugidos de leão; parecia que lhe saltavam os olhos pela cara fóra estimulados pela raiva, e só socegava depois que desafogava o coração ulcerado com imprecações horriveis. Para elle só Napoleão era o rei legitimo de Portugal; e tal era a affeição que lhe tinha que, havendo, não sei porque artes, ganhado uma grande porção de dinheiro a foi entregar a Massena assim que entrou em Portugal. Este lh'a acceitou e agradeceu, declarando-lhe ao mesmo tempo que esta lhe seria restituida em Paris, se para lá fosse...» [1] Apezar d'esta apreciação indicativa de escriptor e espirito menos de ordinarios, e incapazes de alçarem-se até onde a desgraça ergue pelos cabellos as suas preas, D. Luiz de Athaide, no conceito de Venceslau, incutia a um tempo compaixão, respeito e assombro. Aterrava e commovia ouvil-o vociferar contra a raça de D. José I , e de repente levar as mãos aos olhos afogados em lagrimas, soluçando o nome de seu pae. Se alguem lhe lembrava que elle era proximo parente da familia real, e portanto devia cohibir-se de insultal-a no mais sensivel da honra, exasperava-se a termos de repellar-se por não poder inventar maneira de denegrir em si proprio as gotas de sangue real que lhe deshonravam as veias. Tanto escogitou, porém, que descobriu facil processo de enxurdar quanto humanamente se podia a sua {21} progenie realenga. Foi assim. Encontrando, mezes depois, em Paris, no derradeiro escalão social, um vulto de mulher desfigurada pelo squalor do vicio, fêl-a sua esposa, com o intuito de a fazer mãe dos parentes da casa de Bragança. D'este caso tambem teve noticia José Liberato Freire de Carvalho, nas citadas Memorias Escreve elle: «... Mas como casou! Consta-me tambem que alli em Paris vascolejára as ultimas fezes da sociedade para encontrar uma mulher que fosse digna d'elle e que a achára. Reduzido na sua terra á infima sorte de um paria na India, quiz, no seu mesmo aviltamento, vêr se podia tambem aviltar, como elle dizia, algumas gotas de sangue que lhe circulassem no corpo, e fossem d'essas que animavam a familia real portugueza.» Homem de tão singular e descommunal condição tinha direito a ser estudado e desenhado por quem tivesse vista d'alma que alcançasse o enorme desgraçado no fundo da sua voragem. Dos seus coevos e camaradas nenhum deu tento d'esse extraordinario martyr senão o ex-frade José Liberato, que nunca pôde desfazer-se de tres partes de máo frade com que fugiu aleijado do convento. O neto do brioso Tavora, o representante da opulenta familia, cujos bens haviam sido confiscados para a casa reinante, ou para a do valido que se pascia nas lagrimas, no sangue e no espolio dos degolados em Belem, emfim, aquella sublime e rancorosa desesperação de D. Luiz, que dava o ouro ganhado em azares do jogo para derruir o throno, e trajava andrajos para que {22} assim o vissem roubado nas ultimas mealhas de seu pae—tal homem assim maltrapido e crucificado no seu opprobio, figurou-se aos olhos de José Liberato o compendio «de todas as maldições humanas»! Com interesse de respeitoso compungimento o via Venceslau Taveira, e o escutava nas apostrophes iracundas contra a dynastia de Bragança. Já decrepito, o solitario da charneca de Odivelas, recordava o neto dos Athouguias, e dizia que se a França houvesse tido um homem assim recaldeado em fraguas de tamanhas angustias—um tão extravagante complexo de soberba e aviltamento, de saudade maviosa e sevos odios—os mais grados litteratos o exalçariam diante do mundo, tornando-o interessante como historia, como philosophia, como moral, e até o poeta se não pejaria de ir procurar nas cavallariças de Massena esse neto de reis portuguezes, e vestil-o dos esplendores da poesia tragica, ao mesmo passo que o seu real parente, o principe D. João de Bragança, apenas vingaria ser dignamente cantado nas epopêas bordalengas de José Daniel. Affeição de outra tempera, como de eguaes e de mancebos em alvorada de esperanças, ligou Venceslau Taveira a um official de infanteria do quartel-general de Pamplona. {23} II O célestes concerts de joie et de douleur! H ENRI B LAZE. — Matutina. Era um rapaz de vinte e dous annos, chamado Eduardo Pimenta, natural de Braga. Este moço levava uma vida tanto em comêço já cortada de profundos golpes; e, por amor d'isso, como as suas dôres não podiam ser expiação de maus actos, a gente de coração queria suavisar-lh'as, linimentando-lh'as com o balsamo da amizade. Bosquejemos a historia d'esta mal estreada existencia. D. Antonia de Portugal, famigerada formosura n'aquelle tempo, viera de Lisboa a visitar irmãos, que tinha no Porto, alliados por casamento nas duas casas de mais gothica estirpe. Affeiçoara-se aquella dama a um alferes, sem discriminar os distantissimos pontos de partida {24} em que o Creador pozera o seu primeiro avô do avô de Eduardo Pimenta:—erro talvez devido á insufficiente leitura que a menina tinha de Moysés. Era orphã D. Antonia; mas a tutela de um tio que por vezes exercera o então poderoso cargo de ministro de Estado, pesava-lhe mais oppressiva e inflexivel que o poder paterno. Assim pois, tão depressa raspou nos ouvidos do fidalgo o indecoroso affecto da sobrinha, que logo Eduardo Pimenta foi chamado á capital e transferido ao Brazil em serviço militar. Inquebrantavel em seu amor, D. Antonia incutiu no peito do desterrado a flamma da sua coragem, accendendo-lhe esperanças temerarias e perigosas. Os parentes d'ella tomaram-se de espanto e ira, ao saberem que o alferes desertára do seu regimento, desembarcára em Lisboa, e ajoelhára aos pés do principe regente solicitando e impetrando licença para casar-se com D. Antonia de Portugal. O consentimento, porém, do bondoso principe não tolheu que o alferes, acossado pela perseguição de sicarios, se evadisse da côrte, refugiando-se nos arrabaldes de Braga, d'onde em vão implorou por mediação de amigos a malograda protecção do principe. No entanto, a pertinaz menina, cansada de reagir á pressão dos parentes, acolheu-se ao mosteiro de S. Bento da Ave Maria, no Porto, onde tinha uma tia professa; mas d'ahi ainda o braço rijo do tio ministro, mediante o chanceller das justiças, a foi arrancar, allegando que {25} a reclusa, escrevendo e recebendo cartas, gosava liberdades deshonestas que em sua casa lhe eram prohibidas. E em verdade escrevia muitissima carta D. Antonia, e dispunha de estylo que, relativamente á época, não era menos de romantico. Se o leitor quizer, logo lhe darei occasião de apreciar a linguagem e a sensibilidade extrema d'esta senhora que pagou penosamente os dons do seu espirito. Apartada judicialmente da indulgente freira, foi transferida para o collegio das orphãs que n'aquelle tempo foi viveiro de meninas lastimosas, mormente as pensionistas, as formosas, as amadas, as ricas, as filhas segundas—e hoje em dia está sendo—graças á santa Casa da Misericordia—um alfôbre de educação moral onde o vicio não póde coar-se senão em parcellas diminutissimas, por onde se vê que a Misericordia conseguiu estar-se em pleno osculo com sua irmã ou prima, a Castidade. N'aquelles dias, pois, a urna dos divinos balsamos de Jesus caritativo transformára-se em gral onde os corações eram pulverisados. E d'este pó amassado com lagrimas sustentava-se a honra das familias, a dignidade das mulheres, e nutriam-se as boas esposas que depois sahiam a repartir affectos entre maridos, e primos e capellães, e tudo mais que convinha a manter honesto equilibrio entre as coisas humanas e divinas. Pois, sem impedimento das vigilantes espias que lhe espreitavam os gemidos e os arremessos, a reclusa vingou {26} passar na roda uma imprudente carta que denunciava a residencia do alferes homiziado. Guiados pelo destino da carta, os aguazis do corregedor, com auxilio de escolta cedida pelo general da provincia, cercaram o escondrijo do desertor, prenderam-o com affrontosas precauções, e aferrolharam-o na mais escura masmorra do castello de S. João da Foz, onde, quarenta annos antes, alguns padres da Companhia de Jesus haviam expirado de fome e frio por ordem do deshumano marquez de Pombal. Avisada do desastre causado por sua indiscrição, D. Antonia rompeu em tamanhos desatinos que a regente, por amor á vida não votada ao martyrio, requereu que lhe tirassem d'aquella casa mansa e quieta a turbulenta fidalga, que ameaçava tortural-a com a roda de navalhas de Santa Catharina, virgem e martyr. A regente, diga-se verdade liza, parece ter tido escrupulos de mentir, e receios de não poder entrar no reino da gloria eterna com a dupla corôa da santa anavalhada. Não lhe pezem, todavia, as minhas suspeitas sobre os ossos que D. Antonia lhe ameaçou tres vezes ou mais. O certo é que a louca de amor foi d'alli passada com guardas de esbirros para Santa Clara de Coimbra, mosteiro onde áquelle tempo se exercitavam maleficios inquisitoriaes sobre donzellas eivadas do judaismo da ternura por sugeitos incongruentes com suas pessoas e bens. N'esta conjunctura, succedeu entrar em Portugal o invasor Junot, e com elle a vanguarda de ideias livres, {27} vestidas com as pompas da egualdade humana—santas palavras que desafogaram corações abafados ás mãos da tyrannia de paes e tutores. D. Antonia, alumiada na escuridade da sua cella por lampejos de esperança, ao saber que o general estava em Coimbra, escreveu a seguinte carta que vae textualmente copiada da que tenho e que é a original com toda a certeza. Bem póde ser que semelhante documento desquadre á urdidura d'esta narrativa; vá, não obstante, como homenagem a uma dama infelicissima, a qual, ao fechar-se em sua sepultura, abriu algumas que mais tarde se encerraram depois de cruciantes agonias, como no discurso do livro se irá vendo. Dizia assim a carta a Junot: «A alta consideração que por tantos titulos é devida a V . Ex.ª, imporia á minha triste situação o mais respeitoso silencio, se a vossa generosidade, Senhor, a não tivesse prevenido, assegurando aos habitantes de Portugal uma protecção que, fazendo a nossa gloria, é a mais sublime recommendação da vossa virtude e nobreza. Estes dons tão preciosos me animam e prestam valor de elevar minhas supplicas e lagrimas á respeitavel presença de V . Ex.ª O illustre guerreiro que participa da gloria do maior dos heroes que tem visto os seculos, saberá como elle unir clemencia e piedade ao valor que no campo de Marte immortalisa seu nome. «É do fundo de um claustro que a mortal mais desgraçada ousa aspirar á honra de invocar o illustre general. É a innocencia tyrannisada e os direitos mais {28} sagrados combatidos que se refugiam no asylo de vossos pés. «Tenho a infelicidade de pertencer a uma familia nobre e desde a minha mais tenra infancia me decidi por um militar que servia com honra em um dos regimentos do Porto. Se elle não tinha fortuna tão brilhante como minha familia, possuia todas as boas qualidades que caracterisam as almas nobres. Por um caprichoso orgulho, que não póde soffrer as virtudes puras (porque lhes ignoram o preço e os encantos) oppõe-se minha familia fortemente á minha escolha, prevenindo nossas vistas definitivas de um casamento occulto; e, conhecendo bastante a firmeza de nossos desejos, meus parentes solicitaram e obtiveram uma ordem para que o meu pretendido passasse á America. Este injusto procedimento feriu sensivelmente a minha delicadeza e reputação. «Empreguei todo o poder que eu tinha sobre o espirito do meu esposo, obrigando-o a voltar clandestinamente a este reino, assegurando-lhe a minha mão e a minha fé. Apoz um anno de ausencia, chegou á côrte; lançou-se aos pés do throno, e foi recebido pelo virtuoso principe com a maior affabilidade; porém, o ministro de estado impediu a conclusão de tão ditosas esperanças, forçando meu esposo á cruel necessidade de se esconder dos seus perseguidores que o espiavam em toda a parte para satisfazerem o seu antigo odio e incompleta vingança. Em quanto elle se foragia no seio de sua honrada familia, eu fui por meus parentes forçada {29} a receber outro esposo. Resisti. Não pude. Abracei o ultimo partido que me restava para subtrahir-me ás suas violencias. Abandonei a casa de meus algozes e acolhi- me aos pés da cruz. Ahi mesmo a minha desgraça amparada nos confortos da religião, foi diffamada de astucia. Deu-se-me um Recolhimento de orfãs, onde até as lagrimas me eram empeçonhadas pelos conselhos brutaes das minhas directoras, que me chamavam á penitencia por ter amado um homem pobre em quem Deus influira as virtudes mais bellas e caracteristicas do seu divino creador; mas, Senhor, como n'aquelle Recolhimento os meus gritos de desesperação me dessem o triste semblante de louca, a commiseração dos meus parentes enviou-me a umas torturas novas n'este convento de Santa Clara, d'onde, banhada em lagrimas, estou escrevendo a V . Ex.ª «Apezar dos espiões, ameaças e insultos, eu conseguira remetter ao meu consternado amigo uma procuração que devia servir ao nosso casamento, consentido pelo arcebispo de Braga. Quando, porém, os meus parentes souberam que este acto se havia praticado em uma egreja de Barcellos, instauraram processo contra o meu esposo com o proposito de o condemnarem a degredo. Exigiram de mim que eu negasse a minha assignatura na procuração, com o fim de o sentencearem como falsificador de firmas; mas eu, invocando o meu amor e a minha honra, achei pequenas e covardes as tyrannias que se augmentaram a ponto de me ser negada a mais necessaria e urgente subsistencia. As queixas de {30} meus irmãos chegaram ao throno; todavia, apesar do valimento de tão poderosos inimigos, não quiz sua alteza real que meu esposo fosse castigado sem ser convencido. A innocencia d'elle ia ser patenteada, e por tanto destruida a opposição da minha familia, quando a partida do regente para o Brazil, nos deixou outra vez expostos á furia dos nossos perseguidores. É fortissimo o partido d'elles. O snr. Br**, nomeado membro da regencia, e outros fidalgos parentes de minha mãe, me fazem tremer pela nossa sorte. O nosso triumpho está sómente reservado a um poder superior. Só um general de Napoleão, immortal como elle, poderá salvar-nos, libertar-nos e unir-nos. Este prodigio de grandeza de alma é proprio de V . Ex.ª; é uma das maiores victorias do Anjo que já está gosando a immortalidade no nome que ellas lhe deram. «Dignae-vos, pois, Senhor, em nome de tudo que ha sagrado, ser o protector de dois amantes desgraçados, que a vossos pés imploram uma graça que lhes será a elles a suprema felicidade. Uma palavra só que vos digneis proferir a nosso favor, a iremos de joelhos agradecer, beijando-vos mil vezes a mão que nos abriu o céo; ao mesmo tempo que em nossas almas, Senhor, sereis adorado como homem a quem Deus conferiu poder de nos resurgir da morte, se tal vida não é mais digna da vossa commiseração...» Esta carta foi vertida para francez por Vidal, ajudante do general Tiebau, coadjuvado por outro que depois se fez conhecido no mundo scientifico, chamando-se {31} Geofroi de Saint-Hilaire. Este, egual no talento e na sensibilidade, leu a carta a Junot, internecendo-a de pauzas e modulações, tendentes a mover o peito do soldado pouco affeito a commoções dramaticas. D. Antonia de Portugal recebeu da mão de Vidal a seguinte resposta: «Madame. A innocencia opprimida não se dirige inutilmente ao representante do Grande Napoleão, cujo poder abrange o mundo, e cuja justiça se distribue por vassalos e reis. Ordeno que se vos dê liberdade e passaporte para Lisboa. Vinde alli, e de lá ser-vos-ha facil fazer sahir dos carceres do Porto o ente que vos interessa, e que, como vós, ha sido a victima do orgulho de um ministro. Eu vos protegerei a ambos. Tenho a honra de ser vosso muito humilde e obediente servo— Junot .» [2]{32} {33} III Ton chemin est devant toi. Marche! marche! E D. Q UINET. — Ashaverus. Em seguimento, a prelada de Santa Clara recebeu intimação militar para entregar D. Antonia de Portugal. Os enviados á redempção da gentilissima captiva espavoriram as freiras, quando marcialmente entraram ao portico do mosteiro. As mais avançadas em edade e virtude não ficaram estranhas ao receio de serem desbalisadas do thesouro de merecimentos que haviam amealhado á custa de muitas violencias, renunciações, cilicios e jejuns debilitantes. As menos jejuadas e mais propensas a crêr na malicia dos homens, se tivessem lido o que asseveram chronicas e o snr. A. Herculano repete no Eurico , a respeito de certas monjas em risco de serem presa lasciva dos sarracenos, é bem de crêr que pedissem á prioreza {34} que as degolasse na crypta, antes que o bafejo pestilencial dos francezes lhes mareasse a candura, obrigando-as a córar. E, tantos visos de exactidão offerece a hypothese lisongeira, que, ao saber-se que D. Antonia era reclamada pelo general Junot, todas—que eram cento e vinte as professas—illudidas, talvez, pediram voz em grita que as deixassem soffrer por concomitancia o mesmo martyrio. Que jubilo iria no empyreo, se as famosas onze mil da legenda sahissem a receber no atrio dos seus jardins eternos subsidio que lhes enviava, d'uma assentada, Portugal—torrão bastante sáfaro para tal messe! Não eram já, entretanto, aquelles dias os azados para tão heroicos martyrios. A prelada, exemplificando comsigo a privação do holocausto, forçou a commedirem-se as noviças, as noviças principalmente, que tinham os olhos sedentos de mortificação fitos nos algozes que as remiravam do pateo com uns olhares assaz significativos das carniceiras entranhas que os distinguiam dos frades portuguezes. Ora estes frades da comparação eram uns que frequentavam os locutorios, e suspiravam tão mysticamente quanto lhes permittia a eructação da orelheira mal esmoida. Não pude averiguar se o agiologio das franciscanas conimbricenses commemora algumas martyres empolgadas no tempo dos francezes em que a roupa d'elles e a virtude das mulheres portuguezas era tudo o mesmo para tão desmedidos facinoras, segundo affirmam piedosas tradições. Do que tenho certeza é que D. Antonia {35} de Portugal sahiu do convento com tanta precipitação, ou tantas lagrimas a nublarem- lhe a vista, que nem sequer divisava, entre os officiaes francezes, Eduardo Pimenta, que parecia ajoelhar quebrantado pelo pezo da felicidade. Quando Venceslau Taveira conheceu este moço, mezes depois dos acontecimentos referidos, chorava elle, e quantos viam Eduardo a braços com a desgraça que raras vezes, em episodios amorosos, se defronta com o coração humano tão inexoravelmente. Um dia, o alferes promovido a capitão no exercito francez, foi mandado servir ás ordens de La Borde na batalha do Vimieiro, em que a estrella dos valorosos portuguezes lampejou uns clarões que davam a lembrar o cyclo heroico de que nem sequer, para tudo se perder, nos resta já agora uma briosa saudade. D. Antonia estanceava então na Alhandra esperando que seu marido a mandasse recolher a Lisboa. N'esta anciedade a fulminou a noticia de que o general La Borde morrera na Roliça e com elle todo o estado maior. E, no mesmo lance em que tal nova lhe deram, uns homens, que se diziam seus valedores no immenso infortunio, quasi a forçaram a cavalgar, caminho de Coimbra, onde, áquelle tempo, iam chegando os inglezes desembarcados na Figueira. E alli, da portaria do mosteiro de Santa Clara avisinhou-se chusma de homens, que levaram uma mulher {36} estorcendo-se a brados afflictivos. Depois, abriu-se a porta do mosteiro, e fechou-se logo que sobre o escabello foi deposta D. Antonia de Portugal, que desmaiára, se é que a morte se não amerciára d'ella. Entretanto, nem La Borde nem o capitão Pimenta haviam morrido dos ferimentos. Alguem vira o official portuguez n'um olivedo do Tojal enfaixando um braço que sangrava. D'este encontro resultou o boato da morte, ao mesmo tempo que outros juravam de vista assistirem ao enterro do general na egreja do Carmo em Lisboa. Como quer que fosse, os portadores da falsa noticia a D. Antonia eram confidentes dos tios d'ella, e a bala, que raspára na espadua do capitão, fôra-lhe apontada ao peito por um d'esses homens. N'aquelle tempo a fidalguia d'estes reinos ainda resfolegava por taes respiradouros o sangue brioso que se lhe emborrascava nas arterias. O timbre das armas obrigava. Os paquifes do elmo, arcando-se sobre as cabeças d'uns mouros, esculpturados com barbaridade digna das proezas, obrigavam seus donos ao preceito heraldico de guardar a honra da familia com ferocia egual ao disvelo que punham em honrar a patria nos açougues da Asia. Enviára Eduardo Pimenta dous soldados portuguezes que levassem D. Antonia a Cintra onde se estavam redigindo os artigos da convenção. Como fosse clausula antevista d'aquelle convenio sahirem os vencidos com as honras da guerra, o official contra-pesava o infortunio {37} do desterro com o jubilo de passar com a esposa a França, onde os generaes portuguezes lhe promettiam protecção. Os enviados de Eduardo voltaram dizendo que D. Antonia sahira da Alhandra, algumas horas antes, acompanhada por milicianos. Alanciado por tão inesperada agonia, o official affrontou o maximo risco, perpassando pelas guerrilhas que confluiam a Lisboa. As insignias e a rapidez da carreira acirraram o patriotismo de alguns bravos que o espingardiaram e feriram mortalmente. Uns caridosos frades cruzios que seguiam para uma quinta chamada Cadafaes, nos arrabaldes da Alhandra, transportaram o ferido. Alli, a peito com a morte, o desgraçado venceu-a, quando lhe seria redempção de maiores penas succumbir. Apoz longo tratamento, vae-se aquelle homem só, pobre, cercado de incertezas e perigos. Ninguem sabia indicar-lhe o destino de D. Antonia. Os amigos negavam-se a acoital-o da sanha da plebe. Por sobre tantos desamparos, a pobreza antepunha-lhe uma cadeia de adversidades, por entre as quaes lhe transluzia a consoladora ideia do suicidio. O pae de Eduardo era portuguez de marca maior, entranhas nacionaes, ferventes de nacionalismo e odio ao filho amaldiçoado que se bandeára com jacobinos. Quando, pois, Eduardo, disfarçado em almocreve, lhe appareceu á beira do leito onde o velho se esperguiçava nos regalos de quem dormiu somno de justo, repulsou-o {38} com vociferações dignas dos paes romanos que sentenciavam os filhos á morte, e mais dignas ainda do proverbial amor patrio dos bracharenses. —Fóra d'ahi, herege!—exclamou o ancião, estirando os braços á cara do filho.—Pegaste em armas contra a nação de Affonso Henriques—proseguiu o honrado portuguez com ira azedada pelas reminiscencias historicas—tu! jacobino! ousaste desembainhar a espada contra a tua patria! contra a patria de Affonso Henriques, que venceu cinco reis mouros, com auxilio de Jesus Christo, que lhe fallou no campo de Ourique! Vae-te da minha presença, maldito, em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo! Não me tornes a pôr o pé em casa, sem te limpares com uma confissão geral, impio, atheu! Aturdido pela apostrophe e coberto de lagrimas, Eduardo ajoelhou, referindo os infortunios que o levaram por necessidade e gratidão a servir o seu libertador. Com o soccorro da mãe compadecida, conseguiu commover o velho até ao extremo de prometter-lhe não o denunciar á justiça, com a clausula de que iria sumir-se nas Alturas de Barroso em casa de parentes. Foi; mas poucos dias permaneceu na soledade agra de uma serrania onde o desejo de morrer o debruçava sobre os despenhadeiros, implorando á sua desgraça a coragem do suicidio. A coragem! Porque não hei de, acostado a moralistas de grande tomo, chamar-lhe antes cobardia? É porque ha mister enorme coração quem dentro d'elle se abre um tumulo. É porque vae esforçada {39} valentia n'isto de um infeliz se aniquilar com a certeza