PROPOSTA DE CENA CURTA TAPA Gustavo Des Mulher comum entra em cena com algumas sacolas em uma mão e a outra sobre a bochecha, em estado de choque. Encara as pessoas perplexas. Solta as sacolas no chão. SUELI: Ela me deu um tapa! Ela me deu um tapa! Um tapa... Um tapa! Eu não consigo acreditar numa indignidade dessas. Não foi um soco — foi um tapa. O soco até pode doer mais, mas ele é direto, sem cerimônia e quase sem barulho. O tapa, não. Ele exige um movimento de ombros, de olhar! Até cortar o vento e atingir a bochecha, ele humilha. E é instintivo: seguramos a bochecha e tentamos processar aquilo. Se o revide não vem rápido, não vem. E depois do clap , o silêncio. Uma pessoa ri sem precisar mostrar os dentes; a outra sente, na alma, o gesto infame. Quem estapeia dobra de tamanho. Quem é esbofeteado vira um inseto. O tapa é um espetáculo — por isso seu som se assemelha ao de uma palma. Um duelo de tapas seria o quê... um festival de aplausos? Quando se empenha o giro no ombro, quando se ergue o cotovelo e se prepara para cometê-lo... qual seria a sensação disso? Não sou atriz, mas deve ser a mesma de quem está prestes a entrar num palco para se apresentar. É fato: é preciso conquistar o público nos primeiros segundos... E então, quando ele estala na bochecha de alguém, todos ao redor param para ver. A atenção é conquistada. A mesma atenção que os artistas almejam em um palco. A mesma que aqueles que querem reduzir o inimigo a pó desejam. Por que não um soco? Ainda que doesse mais... um tapa, não! E, por pura ironia, eu sou uma mulher que acostumou o corpo a passar por lugares estreitos. Eu me contorço para não esbarrar em ninguém. No transporte público, me espremo na cadeira para não encostar — nem sequer por um instante — em outra pessoa. Me recuso a deixar qualquer traço do meu suor em alguém. Me treinei a passar por brechas. Uma mulher que se amassa para manter distâncias mínimas e, então... um tapa. De mão aberta. Esquentando meus nervos. Gelando meu ventre. Sob o sol escaldante de um dia barulhento e banal. E, em seguida, silêncios sepulcrais. A morte instantânea de qualquer vaidade. Querem saber? Eu preferia um soco. Rápido e certeiro, bem no nariz. O sangue escorrendo seria a prova material da destruição. Mas depois — lavou o chão, secou a pele, cicatrizou a ferida — a vida continua. Mas o tapa não revidado? Isso não cicatriza. Por que, então, não se atracou aos meus cabelos e me puxou até o chão? Imprevisível, violento e, acima de tudo, desejável. E a mulher-papel-amassado — do distanciamento social muito antes daquela pandemia — sobreviveria. Por que não um chute na boca do estômago? Talvez eu vomitasse. E o vômito, bem... o chão se limpa também. Mas o tapa? Não! Não! Por que não pisou com força no meu pé? Eu iria mancando até a estação. Saberia voltar para casa. Eu sobreviveria. Que me enfiasse um punhal — silencioso, sem espetáculo, sem barulho. Talvez eu sangrasse até a morte, mas a dor seria uma amiga me conduzindo ao repouso. E eu, além de tudo, sobreviveria. Mão aberta. Giro nos ombros. Força empenhada com velocidade, mira e olhos cerrados. Atingiu-me em cheio. Meu rosto acompanhou a direção daquelas mãos violentas. Mas, tão breve, meu pescoço voltou à posição. Cobri minha bochecha esbofeteada com vergonha. Olhei pra ela de baixo. Ela usava pernas de pau — ou, do contrário, me tornei uma mulher-papel-amassado portadora de nanismo. Todos me encaravam. Foi a gota d’água. Foi assim. Um vil espetáculo. E eu não sou atriz! Mas, por favor, me aplaudam como se me bofeteassem.