Entre o céu e o caminho Sara Bentes (Desenvolvido a partir do l ivro “ Enquanto Amanhecemo s ” – lançamento em 20 de maio) Arte gráfica e revisão – Leda Bentes De repente eu andava livremente pelos corredores, aqueles corredores que eu conhecia bem e que me ameaçavam todos os dias na escola. Mas agora eu podia vê - los, via cada quadrado de piso, cada porta de sala de aula, cada nuance da luz do dia de acordo com a posição das janelinhas enfileiradas. Eu olhava tudo isso com encantamento, e de repente olhava meu corpo, do peito para baixo, olhava meus pés, um a um ganhando o chão, olhava a palma da minha mão e suas linhas misteriosas. Por sorte ninguém passava por p erto, ou veriam uma aluna louca sorrindo para a própria mão. Eu não conseguia parar de sorrir, e quase me distraía com mão, linhas, janelas, luzes e sombras. Mas eu tinha um rumo certo, e enfim cheguei à porta de madeira, larga e trabalhada, entreaberta. C omo eu sabia que ali era a capela se eu nunca a vira antes? O cheiro daquele lugar nunca me confundiu. Entrei devagar, respeitosamente. Admirei o brilho dos bancos de madeira sob a claridade que entrava pelas janelas à direita. Tudo no mundo era brilhante e bonito assim? Ou eu estava encantada com meu novo olhar? Olhei mais adiante e vi três pessoas sentadas no primeiro banco, de costas para mim. Caminhei devagar até mais perto, explorando o chão a cada passo curioso e as diferentes perspectivas a partir d o meu movimento. Agora eu via não somente cabeças, mas rostos de perfil. Quem eu buscava seria um deles? Os três tinham os olhos fechados, eram homens, um deles usava batina e tinha cabelos brancos. Sim, deviam estar rezando ou meditando, e eu não devia at rapalhar aquele momento. Não olhei então por muito tempo e logo me afastei, com a mesma discrição da chegada. Algo me dizia que ele não estava ali e que eu saberia sim quem ele era quando o encontrasse. Mesmo na minha saída discreta, eu sorria fartamente, porque dentro estava em festa, e o som e o brilho dessa festa aumentavam a cada passo seguro que eu dava rumo ao que eu mais queria ver... Ganhei de novo os corredores e agora resolvi experimentar a sensação de correr, sem medo, sem freio, sem riscos. Na primeira esquina que virei, no entanto, fui obrigada a frear, ou seria desastrosa a colisão com uma aluna alta e corpulenta que vinha firmemente na direção contrária. Passado o susto, sorri para ela. Na verdade eu já sorria, para mim mesma, para minha fest a, para aquele novo mundo. Mas ela não sorriu de volta, e fez uma cara que quase me deu medo. Depois de um “opa” mais divertido que assustado, desviei dela e continuei correndo. Percebi à minha direita uma porta se abrindo, e dela uma mocinha bonita saiu. – Caterine! – ela gritou, trazendo os braços aflitos para mim, meio me freando meio me protegendo. – Diana! – eu fiquei muito feliz em vê - la, em saber como era seu rosto, e a felicidade logo passou. – Eu estava te procur ando, sua louca! Como é que você corre assim no corredor? E sozinha? – ela me interrogava, muito brava. Como explicar o inexplicável? Apenas olhei fundo nos olhos dela, ainda sorrindo, e ali fiquei, até que ela compreendesse. – Mas como? – ela tentava entender. – Eu não sei. – respondi rindo, feliz como ela nunca vira – Você sabe onde ele está? – O Rafael? Ele não veio hoje. – ela respondeu ainda perplexa. – Não, Rafael não. Esquece! E saí correndo de novo rumo às escadas. Diana gritou mais alguma coisa, que não fiz questão alguma de tentar entender, eu tinha um objetivo muito mais importante. Quando desci o primeiro degrau da escadaria, ouvi passos atrás de mim. Segurei firme o corrimão e me virei para olhar. A aluna corpulenta com cara de quase dar medo estava bem atrás, e tive a sensação de ver as mãos dela se forçarem rapidamente a abandonar uma posição de quem ia me empurrar. Assustada, e movida por meu objetivo, desci aquelas escadas quase voando, sem me soltar do corrimão. Chegando ao andar térreo, corri em direção à quadra esportiva, olhando para trás de quando em quando, mas a garota não aparecia mais no meu campo de visão. Chegando ao ginásio, vazio, eu me maravilhei com as cores pintadas na arquibancada e no chão da quadra. A luz do sol, vindo de cima, difusa pelas telhas transparentes, deixava tudo ainda mais vibrante. Diminuí minha corrida para admirar tudo, sorrindo. Mas logo me dei conta de que faltava algo, ou alguém, para completar aquele cenário. Aliás, somente ele dava sen tido àquele cenário para mim. E então chamei por ele, por umas três vezes, cada vez mais alto, fazendo no ginásio um eco cada vez mais longo e agudo. Até que ouvi sons discretos de algum canto. O eco do espaço me confundia quanto ao ponto de origem dos son s. Girei no eixo e avistei, poucos metros atrás de mim, a garota corpulenta, que me lançava um olhar ao mesmo tempo curioso e ameaçador. – Posso te ajudar? – perguntei, buscando ser acolhedora. Ela pareceu bem confusa por alguns segundos. Depois se apro ximou estranhamente sorrateira e ergueu a mão em direção ao meu rosto. Com o reflexo rápido, eu me abaixei, evitando o golpe, e emendei o movimento numa corrida rumo à outra extremidade da quadra. Sem nada dizer, ela corria atrás de mim. Meu Deus, qual era o problema daquela criatura? Eu nunca fizera qualquer mal a alguém da escola. Contornando a outra extremidade do grande retângulo, perto dos vestiários, vi Diana correndo pelo outro lado da quadra em minha direção. – Caterine! Você precisa me contar o que aconteceu! – Agora não dá! – eu gritei com impaciência, achando ser óbvia a impossibilidade de contar qualquer coisa ali no meio daquela perseguição. – Vem comigo, eu te protejo! – Diana ordenou, já quase me alcançando. Olhei a garota correndo atrá s de mim, olhei os vestiários, olhei Diana, tudo sem parar de correr. Diana esticou o braço e já quase tocava o meu, quando desviei subitamente para o corredor dos vestiários. Não olhei mais para trás. Ouvi passos atropelados, freadas de tênis no piso e ma is corrida. Alcancei rapidamente o portão de acesso ao pequeno pátio de trás da escola, arranquei com destreza a chave, saí por ele e o tranquei por fora. Guardei a chave no bolso e respirei aliviada. Fechei um pouco os olhos enquanto fazia ritmo cardíaco e respiração voltarem ao normal. Quando abri de novo os olhos... Meu Deus, eu não podia acreditar! Eu estava diante da florestinha, como chamávamos o pedaço de mata atrás da escola, um lugar que mexia com minha imaginação e que eu sempre desejei ver. E ago ra estava ali, ao alcance de todos os meus sentidos. Saí pela abertura na cerca de arame farpado e avancei pelo verde, pelo sol respingando por entre as folhas das árvores, pelo aroma revigorante da mata, pelos cantos dos pássaros ecoando entre os troncos imponentes. De repente, notei sons diferentes, nada harmoniosos como o canto dos pássaros. Fiquei imóvel e identifiquei de onde vinham: da minha esquerda. Caminhei devagar, e ouvi com mais nitidez os golpes e o choro feminino. Contornei algumas árvores e e nfim me deparei com a cena que me paralisou: uma mulher grávida, na verdade uma garota, que podia ter a minha idade, ao chão, enquanto um homem, branco e forte, chutava seu ventre. Não demorou nada pra que ele me notasse ali, e parasse com a violência. Não sei quem parecia mais perplexo: eu, ao presenciar aquilo, ou ele, ao me ver. Enquanto ela, pobrezinha, olhava suplicante para mim. – Você não viu nada, Caterine. – o homem decretou a meia voz. Como ele sabia meu nome? Eu não conhecia aquela voz, feia co mo lixa. E antes que eu me recuperasse do choque e da confusão, ele deu um riso curto, meio confuso também, e disse para si mesmo: – Você não viu mesmo. Olhou mais uma vez a moça, que chorava abraçando a própria barriga, e se foi, assertivo pela mata. Eu ainda ouvia os passos pesados dele quando me forcei a sair do choque e corri para junto da moça ao chão. – Calma, moça. – eu falava baixinho, condoída – Eu sinto muito. Como eu te ajudo? Ela não conseguia falar, só chorava. E eu, trêmula, não sabia o q ue fazer, onde por as mãos para tentar confortá - la. Olhando o rosto dela, vermelho, nem vi quando alguém se aproximou. Apenas senti mãos pegarem com delicadeza as minhas e as conduzirem até a barriga da moça. Havia um calor reconfortante naquelas mãos, e u ma certeza silenciosa nos movimentos serenos daquela pessoa, que aos poucos adentrava meu campo de visão. Ele soltou minhas mãos, caminhou por trás de mim e foi se ajoelhar próximo à cabeça da mulher. Respirou lentamente, tocou com as duas mãos o topo da c abeça dela e fechou os olhos. Agora eu sabia: era ele! Nem era preciso ouvir sua voz o anunciando. Eu simplesmente sentia seu aroma refrescante e sua atmosfera envolvente e sabia. Eu me senti sorrindo com todas as partes do meu corpo, era como se a alma se refestelasse de repente num gramado verdinho e fresco sob o sol morno do amanhecer. Em silêncio, ele permaneceu ali por alguns segundos, ou minutos. Horas? Eu nunca saberia precisar, o tempo não habitava a mesma dimensão que eu quando ele estava por perto. Bom, sei é que eu também fiquei em silêncio, sentindo o calor passar de minhas mãos para o ventre da moça, que foi se acalmando até parar de chorar. Foi então quando ele abriu os olhos, levantou - se agilmente e sumiu na mata. Eu me decepcionei por uns instantes, esperava passar mais tempo com ele, olhar cada detalhe do seu rosto, conversa r, pedir explicações, agradecer. Mas me concentrei de volta na moça e em seu bebê, que de repente pareceu chutar. Olhei diretamente para o rosto dela e ela sorriu, emocionada. Sorri de volta, fazendo um afago nela e, de alguma forma, em seu bebê. Devagar, e se apoiando com esforço, ela foi erguendo o tronco do chão. Foi então quando ele voltou, com alguns raminhos de folhas perfumadas nas mãos. Abaixou - se novamente, entregou os raminhos a ela e recomendou, com o tom mais pacificador de sua voz: – Faça um c há e tome aos poucos, até acabar. Ela pegou as ervas, agradeceu com humildade e começou a se levantar. Eu e ele a ajudamos, cada um de um lado. Ela me olhou com carinho, pegou minha mão e a colocou de volta em sua barriga. O bebê chutava de novo. Nós rim os juntas, e era tão gostoso tocar aquela barriga cheia de vida e promessa. Em seguida, ela agradeceu de novo a ele e se foi, na direção oposta à da escola. Depois de vê - la sumir entre as árvores, eu me voltei a ele, que pareceu ler em meu rosto todas as e moções conflitantes que eu experimentava naquele instante. Com um princípio de sorriso e um toque consolador em meu ombro, ele disse: – Você queria ver tudo. – Sim, eu sei. – falei sentindo os olhos marejados e experimentando um filtro novo e curioso na visão. Vendo minha emoção, ele levou a mão até minha cabeça e afagou de leve meus cabelos, enquanto o verde de seus olhos pareceu se acender diante dos meus olhos. Quando respirei profundamente e me senti pacificada, ele sorriu, mostrou com as mãos uma di reção na mata e falou: – Precisamos voltar. Sorrindo também, passei a caminhar ao lado dele rumo à escola. Mais alguns passos admirando as diferentes folhagens e tons de verde ao meu redor e perguntei: – Foi você, não foi? Ele riu com a boca fechada e com um leve menear de cabeça e respondeu, com aquela voz fluida e cristalina de uma nascente: – Já te falei que eu não tenho esse poder, Caterine. – Mas então... – eu tentava entender. – Você já olhou para cima hoje? – ele indagou, olhando o céu. Ime diatamente fiz o mesmo. Eu pretendia não parar de caminhar, mas o céu, de um azul luminoso e inspirador do auge da manhã, pareceu me envolver por inteiro, e parei ali, olhando profundamente um céu que, por mais que eu imaginasse antes, era surpreendentemen te magnífico. Lembrei - me então de agradecer, em silêncio, por tanta beleza, por aquele aparente milagre. – Vamos? – ele me chamava de volta, com sorriso na voz – Ainda temos uma dança para ensaiar. – O Rafael não veio na aula hoje. – argumentei, voltando a caminhar e alternando os olhos entre o céu e o caminho. – Então... você vai ter que dançar comigo. – ele ainda sorria. Agora mesmo era que eu estava em choque, de felicidade desta vez. Meu Deus, isso só podia ser um sonho! E foi esta mesma palavra, maldita, pensada pela mesma mente que criava, ou acessava, toda aquela realidade, que destruiu seu próprio significado. O céu perdeu a cor, o aroma da mata se foi, o caminho não existia mais. Apenas a textura do meu lençol, meu corpo na horizontal e os sons da vizinhança era o que eu podia perceber agora, ao despertar. Sem nem abrir os olhos, revivi cada sensação, cada imagem e c ada textura daquela experiência tão vívida que, sim, fora um sonho, mas fora tão real... Se todas essas sensações e emoções reais ficaram comigo, a visão também poderia ficar? E se foi o fim da minha noite? É possível, eu sempre acreditei! E se for real? S ó abrindo os olhos vou saber. Esfrego o rosto, respiro fundo, toco minhas pálpebras. Ainda estou decidindo se abro os olhos... Sara Bentes