SEMENTES DE MARIELLE U M A R E P O R T A G E M P O R V I N Í C I U S L U C E N A 1 São aproximadamente 15h30 de uma segunda - feira Tomo um ônibus em direção ao centro da cidade e , durante a viagem , penso no que devo fazer para entrar na ocupação sem ser invasivo Na minha mente , crio cenários que vão desde encontros marcados pela receptividade dos moradores até situações nas quais eu , desprovido de coragem , ignoro o motivo pelo qual fui até a Praça da Independência e volto pra casa sem ter alcançado meu objetivo A tarefa de entrar na casa de um desconhecido e conseguir informações me parecia difícil , tanto que quando cheguei nas imediações do antigo Edifício Sulamérica , fiquei dando voltas no entorno até que surgiu uma oportunidade Um homem , vestido com uma camisa estampada com a logo do MTST , parou em frente ao portão de entrada e estacionou um isopor carregado de garrafas de água mineral Me aproximei e pedi uma água Enquanto ele separava o troco , me apresentei como repórter e perguntei - lhe sobre como estava a situação “ lá dentro ”. Generoso , o vendedor me disse que era um dos ocupantes e me mandou “ entrar pra conversar com alguém ”. Ao entrar no edifício , encontro um homem que trabalhava reparando um carrinho próprio do uso de ambulantes Novamente , me dou ao trabalho de apresentar - me e o explico os motivos da minha visita Solícito , Mário Silva ( 38 ), me recebe e me indica uma fonte , Branca , sua esposa , que vive no sexto andar e é uma das coordenadoras da ocupação Naquela tarde , as escadas em espiral do Sulamérica estavam tomadas por uma corrente de água que escorria até o térreo Dirijo - me , então , ao sexto andar No caminho , me deparo com um quadro de anúncios Entre eles , uma chamada para uma atividade do Grupo de Mulheres Feito manualmente , o cartaz anunciava uma sessão do filme “ Que horas ela volta ?”, protagonizado por Regina Casé e dirigido por Anna Muylaert Na ocupação , há um espaço reservado às atividades em grupo A “ creche ”, como é chamado pelo os moradores , fica no primeiro andar e , como o nome sugere , será destinado ao funcionamento de uma pequena creche que abrigará as crianças da Marielle Nesse espaço são realizadas as assembleias , rodas de conversa , oficinas e atividades como as propostas pelo Grupo de Mulheres Quando cheguei ao sexto andar , as portas da casa de Branca estavam trancadas Chamei por alguns minutos , mas ninguém respondeu Voltei , então , a descer as escadas e encontrei Branca , que , posteriormente , viria a descobrir que se tratava de outra mulher , com o mesmo nome da que eu procurava antes Localizado no Bairro de Santo Antônio , região central do Recife , o edifício Sulamérica foi construído em 1936 O imóvel de número 91 fica na Praça da Independência ( também conhecida como Praça do Diário , devido à localização próxima a antiga sede do Diário de Pernambuco ). Por muitos anos , o prédio era utilizado para fins comerciais Entretanto , foi acumulando dívidas tributárias e se deteriorando até perder de vez sua função social De acordo com a Constituição Federal de 1988 , toda propriedade deve cumprir uma função social , alguma atividade deve ser realizada no espaço em questão - seja ela de moradia , comércio ou qualquer funcionamento que mantenha a propriedade utilizada O mesmo código de leis garante , no art 6º , o direito à moradia 2 O Prédio Foto : Reprodução / Facebook do MTST - PE Terminada a consulta , Branca , acompanhada por 6 dos 7 filhos , me chamou para ver o seu “ barraco ”. A ocupante me mostra , com orgulho , todos os móveis e eletrodomésticos que ganhou desde que passou a morar na Marielle . “ A TV foi doação , o som foi minha filha que terminou os estudos que comprou pra gente ”. Branca morava na rua , nas proximidades da Praça do Diário Ficou sabendo da ocupação por meio de um amigo e , depois de conversar com a coordenação do movimento , mudou - se para o segundo andar , onde mora até hoje 3 Foto : Rud Rafael Maria do Carmo do Nascimento , 41 , estava , no momento que entrei na sua casa , em meio a uma consulta odontológica Enquanto 4 dos seus 7 filhos acompanhavam atentos os movimentos do dentista , que preparava uma prótese , Branca me pediu para que esperasse o fim do atendimento No dia 19 de março de 2018 , mulheres e homens de todas as idades entraram pela primeira vez no Edifício Sulamérica A ocupação , segunda organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto em Pernambuco , aconteceu seis dias após o assassinato de Marielle Franco , vereadora da cidade do Rio de Janeiro Mas o processo de mudança para o prédio ocorreu de forma gradual , o edifício precisou ser adaptado para receber as pessoas que as ocupariam pelos próximos meses A escolha do prédio foi estratégica e aconteceu depois de uma série de reuniões entre A ocupação representantes do Movimento e da ONG Habitat Para a Humanidade , responsável pela elaboração de um mapeamento dos prédios ociosos localizados na região Central do Recife Além de estar desocupado há mais de dez anos , o edifício acumula , até o momento da publicação desta reportagem , uma dívida total de R $ 1 507 771 , 03 Jô Cavalcanti , coordenadora estadual do MTST , diz que outras possibilidades foram avaliadas Mas “ o que mais chamou atenção foi o Sulamérica , porque é central , está fechado faz mais de 20 anos , é um dos que mais deve e causaria um grande impacto visual pela localização privilegiada ”. “ Por mim ficaria aqui mesmo , só de pensar em sair , já fico de coração partido ”. Entre uma fala e outra , Branca tenta “ controlar ” os filhos , que acompanham , curiosos , a nossa conversa Nenhum dos filhos estuda , com exceção do mais velho , que cursa o 1º ano do ensino na Escola Estadual Sigismundo Gonçalves , em Olinda Para ela , o apoio que o movimento dá às crianças é fundamental , a creche por exemplo , cairá como uma luva para a família de Branca , que quer “ botar os filhos , as duas netas e ter tempo pra trabalhar ”. A ocupação A falta de trabalho é uma questão recorrente na nossa conversa , apesar dos 7 filhos , Branca foi uma das 5 , 2 milhões de pessoas que perderam o benefício do programa Bolsa Família durante o governo Temer Ela aponta , então , para um retrato pendurado na parede , é uma das netas , com 10 meses A filha mais velha tem estudo e emprego , logo tem condições de pagar aluguel , o que é motivo de orgulho pra Branca Na ocupação , tem água e energia elétrica , além disso , os moradores seguem uma espécie de “ código de regras ”. O portão de entrada , por exemplo , fecha todos os dias às 23h ; os 7 pavimentos ( incluindo o térreo ) devem estar sempre limpos , o lixo deve ser recolhido regularmente e os banheiros - compartilhados entre os moradores de cada andar - higienizados A comida também chega através de doações , que são divididas igualmente entre os ocupantes Além disso , atividades organizadas por ONGs e voluntários beneficiam os moradores da Marielle Branca destaca a atuação dos psicólogos , “ é bom pra deixar a cabeça da gente mais leve , pra aliviar os conflitos que surgem ”. Apesar da aparente tranquilidade , Branca diz que há insegurança , que “ é comum a pessoa não dormir , ter que conviver com o medo de acordar com a polícia botando a gente pra fora como se fôssemos bandidos .”. Inesperadamente , a chefe de família sobre suas perspectivas em relação ao novo presidente . “ Bolsonaro mesmo tem raiva da gente que é ocupante , mas ele tem que pensar que se a gente tá aqui , é porque estamos precisando , lutando por um lugar melhor para nossos filhos , esse é o nosso sonho .” 4 Depois de passar um bom tempo na casa de Branca , me despeço dela e das crianças e sou convidado a voltar De volta ao térreo , encontro - me novamente com Mário , que me pergunta se tinha conseguido conversar com sua esposa Digo que sim , havia a encontrado no segundo andar Logo , ele percebe o mal - entendido e esclarece a situação , eu havia conversado com uma homônima Ainda em cima do carrinho , Mário , com um dos braços engessado , explica que estava dando os últimos reparos no que viria a ser seu novo instrumento de trabalho Em meio ao fluxo de moradores que entravam e saíam do prédio , me pus a conversar com Mário , que integra o movimento há dois anos e é um dos coordenadores da ocupação quentinha dá dinheiro e custa pouco ”. O desemprego é assunto recorrente na fala dele , que reconhece que a situação está difícil “ até pra quem tem diploma ”. Nossa conversa descamba , então , na política nacional A estigmatização dos movimentos sociais , como o que Mário faz parte , causa indignação Assim como Branca , Mário condena os posicionamentos de Bolsonaro em relação às políticas de segurança pública . “ Não adianta armar ninguém ! Já imaginou o que pode acontecer numa discussão entre vizinhos , por exemplo ?”. O presidente eleito , defensor de uma política armamentista , chegou a ameaçar diretamente os movimentos sociais como o Movimento Sem Terra ( MST ) e o próprio MTST , “ Invadiu ? É chumbo !", disse Bolsonaro em palestra para empresários do Rio de Janeiro Enquanto fazia manobras com os dois braços para manusear uma furadeira , Mário me conta que quebrou o punho esquerdo em um acidente na ocupação Enquanto se apoiava em um dos batentes que cercam a escadaria , um saco de lixo foi jogado dos andares de cima e caiu sobre o seu braço Os contratempos acontecem No dia da minha visita , por exemplo , deixaram de desligar a bomba que enchia uma das caixas d ’ águas que abastecem o prédio , o que resultou em um pequeno alagamento no térreo A disciplina e a organização são pré - requisitos para morar na Marielle . “ Tem situações que são difíceis de controlar , mas a gente dá um jeito Se não tiver disposto a colaborar , vai ter que ‘ descer ’”. 5 Até o dia 19 de março de 2018 , Mário morava de aluguel , mas quando a situação apertou , foi obrigado a buscar outro caminho Junto com sua esposa , mudaram - se para a ocupação Carolina de Jesus , localizada no Barro ( bairro da Zona Oeste do Recife ) e também organizada pelo MTST Em março , foi realocado para a Marielle Franco , pois precisavam de membros experientes no processo de organização da nova ocupação Mário me conta que trabalhava revestindo sofás , mas foi obrigado a pensar em uma alternativa quando , segundo ele , as lojas baixaram os preços , fazendo com que as pessoas deixassem de procurá - lo para reformar os estofados O carrinho no qual Mário estava trabalhando era , portanto , o seu novo instrumento de trabalho . “ Vender Foto : Reprodução / Facebook do MTST - PE 6 Mário diz que o MTST dá moradia pra muita gente , mas nada é de graça A colaboração , no entanto , não é financeira , mas se dá por meio de um comprometimento com as tarefas da ocupação . “ Divergências são usuais , mas todos devem prezar pela coletividade ”. É dessa forma que são discutidos assuntos que interessam aos moradores , em assembleias , nas quais os coordenadores , junto aos ocupantes , falam sobre as dificuldades a serem resolvidas e planejam soluções para os problemas Quando a conversa chega ao fim , Mário me convida a participar de uma das assembleias A reunião aconteceria dois dias depois , no primeiro andar do edifício A cidade De acordo com um levantamento da ONG Habitat Para a Humanidade ( realizado em parceria com a ONG Fase e o Coletivo Arquitetura , Urbanismo e Sociedade , o CAUS ), 41 % dos imóveis localizados no bairro de Santo Antônio estão desocupados O abandono de prédios na região central do Recife deve - se , entre outros motivos , às políticas de ocupação do espaço urbano Nos anos 90 , o bairro de Santo Antônio , por exemplo , era tido como um centro comercial Entretanto , com o passar do tempo , a especulação imobiliária “ escolheu ” outras localidades , de modo que os edifícios localizados no bairro se desvalorizaram , acumularam dívidas e , boa parte deles , foram abandonados - como aconteceu com a antiga sede do Diário de Pernambuco Os estudos divulgados pelas ONGs citadas anteriormente põem em xeque a atual política de planejamento para os bairros do centro A ausência de um 7 Foto : Reprodução / Facebook do MTST - PE plano de reurbanização que acabe com o processo de esvaziamento do centro e , ao mesmo tempo , apresente soluções para amenizar o problema do déficit habitacional , que , na capital pernambucana , gira em torno de 62 moradias As discussões acerca da ocupação do centro acontecem em meio ao processo de revisão do Plano Diretor , ferramenta que garante que a cidade seja construída sob determinados princípios Renovadas de dez em dez anos , as diretrizes que orientam o planejamento urbano deveriam ser discutidas em plenárias que deveriam ser feitas com ampla participação popular No entanto , a sociedade pouco participa das ações promovidas pela Prefeitura , que são pouco divulgadas e feitas de maneira inadequada , de modo que a participação nos debates acaba restrita às forças que buscam aprovar um plano que dê espaço apenas a interesses de setores privados Por nota , a Secretaria de Planejamento Urbano ( Seplan ), informou que “ faz parte do Plano de Ordenamento Territorial ( POT ) a revisão do Plano Diretor , da Lei de Uso e Ocupação do Solo , da Lei de Parcelamento e a regulamentação de instrumentos urbanísticos , sob a coordenação técnica do Instituto da Cidade Pelópidas Silveira Dentre estes instrumentos está a normatização do Parcelamento , Edificação e Utilização Compulsórios ( PEUC ) e do IPTU Progressivo , importantes instrumentos que auxiliarão o município a exercer a função social da propriedade Tais instrumentos estão indicados no Estatuto das Cidades e no Plano Diretor da Cidade , que está em pleno processo de revisão ”. Na quarta - feira ( 14 ), véspera de Proclamação da República , as pessoas começam a chegar à creche em clima descontraído Cada um pega um banquinho de madeira e logo forma - se um círculo Repito os movimentos dos ocupantes e me posiciono dentro do círculo , como se fosse um morador A atitude não passa despercebido Até o momento , eu não havia me apresentado a todos que estavam ali presentes Enquanto a reunião não começa , os que chegaram cedo trocam conversas leves “ Vai ter Pablo no Ferroviário de Afogados amanhã Vou pra lá vender água .”, diz Matuto , que também é quem cuida do portão Matuto é quem tem as chaves do prédio Um casal com duas crianças chega e elas logo se soltam e começam a brincar “ Do mesmo jeito que tá todo mundo brincando aqui , o pessoal discute ”, uma das mulheres tenta me alertar sobre as possíveis discussões acaloradas que estariam por vir 8 O quórum é baixo , são 13 pessoas ao todo Na ocupação , estima - se que vivem mais de 200 Apesar da baixa adesão , a reunião continua marcada Os coordenadores chegam e dão início às discussões Informam sobre minha presença e , gentilmente , iniciam uma rodada de apresentações , neste momento , tenho a oportunidade de me apresentar a todos Terminadas as apresentações , as pautas são compartilhadas A coordenação diz que haverá uma reorganização dos “ blocos ”. Todos estão de acordo Uma das ocupantes diz que o quarto andar está sem coordenador É feita , então , uma eleição , na qual 3 mulheres se voluntariam e concordam em dividir as responsabilidades Nenhuma objeção . “ O portão tá quebrado de novo ”, alguém reclama aos coordenadores , que dizem que , apesar da escassez de recursos , serão feitos esforços para que o portão principal seja consertado em tempos de criminalização dos movimentos sociais , também se fala de autodefesa 41 % 42% 58% dos imóveis localizados no bairro de Santo Antônio estão desocupados R $ 346mi é o valor da dívida de IPTU dos prédios localizados na RPA1 ( Região Política Administrativa I ), equivalente ao Centro do Recife 62 mil é o déficit habitacional na cidade do Recife Para a ocupação , foi escolhido o nome de Marielle Franco , ex - vereadora da cidade do Rio de Janeiro Foto : MTST - PE 9 No fim da reunião , uma das coordenadoras pergunta se as mulheres estão participando das atividades do grupo “ Foram ver o filme ?”, pergunta Juliana A maioria das respostas é positiva . “ Aquele da Regina Casé , né ?”, diz Dona Silva , que assistiu e gostou Todas estão ansiosas para a próxima atividade , uma ida à praia Naquele dia 14 de novembro , eram passados exatos oito meses do atentado à vida de Marielle Franco Ainda não se sabe quem matou - e quem mandou matar - a ex - vereadora e o seu motorista , Anderson Gomes Vítima de um sistema perverso , Marielle virou símbolo de resistência Na ocupação que leva seu nome , a esperança é cultivada em cada uma das mulheres , homens e crianças que travam uma luta diária por moradia Marielle segue viva , na memória dos que lembram e na vida dos que ocupam Ediçao e revisão: Vinícius Lucena Todas as fotos foram retiradas do facebook do MTST - PE Os dados do infográfico foram retirados de reportagem da Marco Zero Conteúdo e de estudos da ONG Habitat Para a Humanidade e da Fundação João Pinheiro