André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 1 An dr é É me Almanaque das Aus é ncias e Outras Presen ç as Um caderno de vozes para quem já não sabe se espera ou se sonha. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 2 André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 3 Estrutura Prólogo — Palavras roubadas ao sono Ciclo I — Da Partida e do Tempo 26/12 — Felizvaldo Antunes, passageiro clandestino 27/12 — Zamora da Purificação, tecelã de lembranças 28/12 — Rudovino Mil - Homens, cronista de ausências 29/12 — Abelardo Sanches, relojoeiro do irremediável 30/12 — Feliciano do Rosário, escultor de ausências Ciclo II — Da Ausência e do Amor em Fragmento 31/12 — Hermenegildo do Recolhimento, guardião de promessas 01/01 — Etelvina das Dores Mansas, costureira de ausências 02/01 — Cristovaldo “sem volta”, jardineiro de invernos 03/01 — Manuel de Pouco, carregador de silêncios Ciclo III — Da Palavra e do Que Não Se Diz 04/01 — Silvério dos Reveses, carteiro de cartas que voltam 05/01 — Mirela das Horas Quase, colecionadora de despedidas 06/01 — Efigénio , o que não nasceu 07/01 — Zulmira das Reticências, escriba de silêncios Ciclo IV — Do Corpo e da Sombra 08/01 — Amândio, o que carrega o corpo dos outros André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 4 09/01 — Judite da Grieta, mulher entre paredes 10/01 — Fábio de Dentro, lavador de mágoas 11/01 — Odete do Osso Fundo, pescadora de restos Ciclo V — Do Luto e da Espera 12/01 — Cândido dos Sem Ontem, zelador de lápides 13/01 — Doroteia do Baú Fechado, guardiã de aniversários que já não se celebram 14/01 — Timóteo de Esperar Sentado, pastor de regressos 15/01 — Norberta do Tempo Largo, arrumadora de gavetas vazias Ciclo VI — Da Esperança e da Falha 16/01 — Juvenal dos Papéis Molhados, homem de calendários riscados 17/01 — Samira dos Sábados Vazios, dona de casas que ninguém volta 18/01 — Ermelinda das Metades, cuidadora de promessas gastas 19/01 — Baltazar do Não - Dito, mecânico de futuros avariados Ciclo VII — Dos que Somos Todos Nós 20/01 — Voz Coletiva I: o que sobrou depois do adeus 21/01 — Voz Coletiva II: os que amam sem resposta 22/01 — Voz Coletiva III: os que fingem bem 23/01 — Voz Coletiva IV: os que ainda sonham Epílogo Para quando já não doer tanto André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 5 Prólogo Estas palavras não me pertencem. Caíram - me ao sono como folhas secas em telhados sem nome. Vieram de dentro de bocas que nunca vi, mas que conheço como se fossem minhas. São pedaços de gente que me atravessa quando estou distraído de mim, vozes que doem ma is do que dizem. Cada uma carrega um ofício inventado e uma dor real. Como se a vida, às vezes, só servisse para esconder ausências em roupas de trabalho. Juntas, estas vozes compõem um almanaque de vazios — aqueles que se disfarçam na pressa do dia, mas regressam quando a noite desaperta o silêncio. Escrevi isto com ajuda de fantasmas vivos. Uns cheiram a terra molhada depois do luto. Outros, a papel velho onde já ninguém escreve cartas. Todos sangram do mesmo lado: o da saudade que não sabe onde se arrumar. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 6 André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 7 CICLO I — DA PARTIDA E DO TEMPO 26/12 — Felizvaldo Antunes, passageiro clandestino (variável discreta) Não tenho malas. Tenho partidas que nunca couberam em bilhetes de ida. As camisas escondem mapas costurados em silêncios. O mundo sempre me apertou os pés — por isso caminho descalço sobre promessas partidas. As estações nunca me esperaram: sou eu que atra so os relógios, na esperança de um adeus com atraso. O que me leva não é desejo, é carência. Quem fica muito tempo parado começa a cheirar a mofo por dentro. 27/12 — Zamora da Purificação, tecelã de lembranças (variável ordinal) Lembro por ordem de ferida. Primeiro, o cheiro do café da mãe — aquele que subia das manhãs como uma reza. Depois, a voz do meu primo - irmão a gritar "golo" com os dentes cheios de bolacha. Por último, o toque das mãos que já não me tocam, mas ainda tremem em mim. Eu teço memórias como se costurasse cobertores em noites sem fim. Mas sempre sobra um frio no lugar do peito. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 8 28/12 — Rudovino Mil - Homens, cronista de ausências (variável contínua) Fui ficando longe de mim como se desfiasse a própria sombra. Escrevo para não desaparecer, mas a tinta custa e a lembrança arde. Não há palavra que traga de volta o que fomos quando ainda sabíamos o nome um do outro. Hoje, sou fragmento de um alguém que se perdeu devagar. Brilho só quando a saudade me acende. 29/12 — Abelardo Sanches, relojoeiro do irremediável (variável de intervalo) Os ponteiros que afino já não marcam o tempo — contam restos. Vivo a consertar instantes como quem tenta colar um copo quebrado com saliva. Tudo o que fui ficou num fuso horário sem retorno. Mas continuo a dar corda aos dias, como se algum pudesse ter pena e voltar. 30/12 — Feliciano do Rosário, escultor de ausências (variável latente) Esculpo ausências com a lima dos dias gastos. Cada silêncio tem o peso de um corpo que já não sei onde guardei. Aprendi a amar o que não volta, como quem beija uma fotografia rasgada. Faço estátuas de vazios — e mesmo invisíveis, tropeço nelas todos os dia s. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 9 CICLO II — DA AUSÊNCIA E DO AMOR EM FRAGMENTO (31/12 a 03/01) A perda que é também presença. O amor que fica, mesmo quando parte. 31/12 — Hermenegildo Farto, ex - carteiro de cartas que não chegaram (variável censurada) Guardei todas as cartas que nunca entreguei. Não por maldade, mas por medo que se cumprissem. Há palavras que, se chegam, partem alguém ao meio. As tuas ficaram comigo — amarrotadas entre os pulmões. Leio - as de quando em vez, como quem morde a própria líng ua só para sentir que ainda sangra. Dizem que o amor é o que se dá. Mentem. O amor verdadeiro é o que se guarda para não ferir. 01/01 — Etelvina das Dores, viúva de um vivo (variável binária) Ele ainda vive, mas já não mora em mim. A ausência dele é um barulho que não cessa — como o eco do mar numa concha vazia. Às vezes escuto a voz dele no riso de um estranho, e é como se alguém acendesse a luz de um quarto que deixei trancado. Amo - o ainda. N ão por escolha, mas por hábito de André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 10 coração. Há dores que se fazem lar, e eu nunca soube despejar saudade. 02/01 — Cristovaldo Sem - Fé, afinador de promessas partidas (variável irrepetível) Andei afinando as palavras que me disseram em falso, como se mentira pudesse virar música. As promessas têm cordas, e quase todas desafinam com o tempo. A tua ficou em dó — dó de mim, dó de ti, dó de tudo. Ainda hoje procuro tua sombra em lugares onde a lu z não chega. Amar - te foi um acidente sem ambulância. 03/01 — Manuel do Nascimento, inventor de reencontros (variável impossível) Inaugurei um museu só com coisas que imaginei contigo. O sofá onde nunca nos sentámos. O filho que não nasceu. A discussão que não tivemos. Vivo de rascunhos, de versões tuas que nunca foste. Gente como eu ama no condicional — se fosses, se viesses, se fic asses. Mas tu foste um ponto final que eu insisto em ler como vírgula. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 11 CICLO III — DA FALA E DO SILÊNCIO (04/01 a 07/01) O que se cala também grita. E o que se diz quase nunca basta. Um ciclo para os que vivem entre palavras engolidas e silêncios que doem em voz alta. 04/01 — Dorvalina do Carmo, engolidora de palavras (variável suprimida) Desde menina me ensinaram a calar. Primeiro foi um “não diz isso”, depois um “não sente assim”. Fui engolindo verbos como quem toma veneno em doses lentas. Hoje, tenho o estômago cheio de frases não ditas. E cada dor que sinto tem a forma exata de uma palavra que deixei m orrer na garganta. 05/01 — Juvenal Sem - Palavra, ex - poeta de guerra (variável muda) A guerra me roubou a fala. Antes, eu escrevia versos com cheiro a pólvora e esperança. Agora, só me resta o silêncio — esse eco sem parede onde a alma tropeça. Falo com os olhos, quando alguém insiste. Mas quase ninguém insiste. Já não sou poeta. Sou ruína de dizer. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 12 06/01 — Bibiana Acordada, ouvinte de silêncios alheios (variável receptiva) Aprendi a escutar o que não se diz. Há mães que choram lavando pratos. Maridos que desistem no intervalo entre um “tudo bem” e um gole de vinho. Filhos que pedem socorro com o corpo curvado demais. Ninguém percebe. Mas eu ouço. E carrego cada silêncio como quem leva água nas mãos: sabendo que sempre escapa um pouco. 07/01 — Tarcísio Luz, contador de histórias que ninguém quis ouvir (variável esquecida) Tenho histórias que dariam mundo. Mas o mundo não quis. Preferiram os gritos, os escândalos, as manchetes. Eu vim com histórias miúdas, daquelas que salvam um só coração por vez. Fiquei falando sozinho até que minha voz virou vento. Agora, sussurro para as paredes — e elas, ao menos, não viram costas. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 13 CICLO IV — DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO (08/01 a 11/01) A memória não é museu. É bicho que morde, que dorme, que às vezes se finge morto. O esquecimento, por sua vez, não é falha — é defesa. Este ciclo é para quem vive entre os cacos do que lembra e os vácuos do que já não sabe se existiu. 08/01 — Hermínia Trago, guardiã de retratos apagados (variável degradada) Tenho uma caixa onde as fotografias já não têm rosto. Só contornos, sombras, restos de sorrisos. Guardo - as mesmo assim, como quem espera que um dia a memória volte e diga: “este aqui era teu pai, ou talvez foste tu”. Não me dói o que perdi — dói mais o que nunca consegui segurar com nitidez. 09/01 — Olímpio de Nada, colecionador de esquecimentos (variável aleatória) Anoto tudo. Nomes, datas, sonhos com cheiro. Tenho medo de esquecer até o que me feriu, porque até a dor tem utilidade: ensina onde não se pisa mais. Mas a cabeça é buraco de areia — quanto mais tento reter, mais escorre. Vivo rodeado de lembretes, mas con tinuo me perdendo dentro de mim. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 14 10/01 — Marieta dos Ontens, inventora de passados (variável simulada) Quando a memória falha, eu minto. Invento infâncias com cheiros que nunca senti. Crio beijos que não dei, mortes que não chorei, alegrias que talvez pertenceram a outros. Mas é nisso que me salvo: na ficção da lembrança. O que importa é sentir como se foss e verdade. Porque às vezes o que salva não é lembrar — é acreditar que foi bom. 11/01 — Saturnino Lobo, coveiro do que se esquece (variável entulhada) Sou eu quem enterra as coisas que os outros já não lembram. Os nomes dos mortos, os cheiros das casas velhas, as promessas feitas no escuro. Tudo isso me chega como ossos soltos. Dou - lhes túmulo digno: escrevo, guardo, nomeio. Ser esquecido é morrer duas v ezes. Eu tento, ao menos, impedir a segunda. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 15 CICLO V — DOS QUE NÃO CHEGARAM A SER (12/01 a 15/01) Não nascer não é o mesmo que não doer. Este ciclo é dedicado aos que ficaram por pouco — um sopro, uma ideia, um susto. Os quase. Os por um triz. Os não - ditos que, ainda assim, gritam em nós. 12/01 — Anacleta de Ninguém, filha que não vingou (variável abortada) Fui nome antes de ser gente. Uma esperança com laço cor - de - rosa, um quarto por pintar. Durou pouco: um susto, uma mancha, um silêncio entre duas palavras. Mas fiquei. No peito dela, uma dor que não tem rosto, mas que chora todos os meses. Fui amor sem colo . Presença sem história. Um luto escondido entre absorventes e desculpas. 13/01 — Benjamim C., poeta das linhas por escrever (variável por omissão) Tive a infância arrancada como página em branco. Cresci por fora, mas por dentro fiquei rascunho. Sonhava ser poeta, mas me calaram com bofetadas e verbos mal conjugados. Hoje, escrevo escondido nas margens das faturas — versos que ninguém lê, mas André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 16 que me mantêm de pé. Sou tudo o que não me deixaram ser. E ainda assim, resisto nas entrelinhas. 14/01 — Ofélia Sem - Fim, atriz sem palco (variável interrompida) Ensaiava papéis que nunca me deram. Decorava falas como se fossem orações. Mas o mundo preferiu calar minha voz com outras bocas, mais belas, mais dóceis. Hoje, represento para o espelho, para o gato, para as panelas. Meu palco é a solidão. Minha plateia: o eco. A vida seguiu sem mim, mas eu continuo em cartaz, na peça que só eu vejo. 15/01 — Joel Barreto, o irmão que não chegou (variável desaparecida) Fui a ideia de um irmão. Aquele com quem ele falaria de futebol, trocaria cromos, dividiria o quarto e as culpas. Mas algo falhou: uma gravidez que não aconteceu, um “talvez” que virou “nunca”. E mesmo assim, ele fala comigo às vezes, quando está triste. S ou consolo inventado, presença que consola por não ter sido dor real. Mas sou. Sempre fui. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 17 CICLO VI — DOS QUE FICARAM (MAS NÃO INTEIROS) (16/01 a 19/01) Ficar é também uma forma de partir. Este ciclo é para os que escolheram o chão quando o mundo prometia o céu. Os que resistem, mesmo com os nervos à mostra. Os partidos que ainda se tentam colar com silêncio, café e rotina. 16/01 — Constância Peixoto, guardiã das rotinas quebradas (variável repetida) Lavo a chávena com a mão esquerda. A direita ainda treme da última despedida. Há seis meses que ele saiu para comprar pão e esqueceu de voltar. Desde então, repito tudo: horários, receitas, o lugar dele na mesa. Se a vida não volta, ao menos que rode em cí rculos. Vivo no looping das horas, na esperança de que uma delas se distraia e me traga ele de volta. 17/01 — Inocêncio Vidal, homem de fé sem igreja (variável amputada) Perdi a fé num domingo à tarde, enquanto olhava o tecto da capela e pensava no joelho que a quimioterapia me levou. Antes, rezava ajoelhado. Agora, rezo sentado — e mais por hábito que por esperança. Ainda acendo velas, mas já não peço nada. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 18 A fé virou lembrança: uma fotografia antiga que mantenho por respeito, não por crença. 18/01 — Marcolino Brás, sobrevivente de tudo menos da memória (variável degenerativa) Já fui marido, pai, caixa do supermercado, campeão de damas na praça central. Hoje, sou só um velho de olhar vago e mãos que procuram nomes nas migalhas. As pessoas me visitam como quem vem ver o tempo: passam, falam, vão. E eu sorrio, por educação da carn e. Porque a alma... essa já se despediu faz tempo, sem deixar bilhete. 19/01 — Joana da Luz, mulher de si mesma (variável resiliente) Fiquei. Quando ele bateu, fiquei. Quando o mundo disse "não", fiquei. Não por fraqueza, mas porque me fiz raiz em terra difícil. Aprendi a ser casa, mesmo sem telhado. Tenho mãos calejadas de tanto segurar a mim mesma. Mas sigo. Com rímel escorrido e os pé s firmes. Porque às vezes, a força vem de não desistir de se arrastar inteira. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 19 CICLO VII — DOS QUE SOMOS TODOS NÓS (20/01 a 23/01) Aqui já não falam nomes. Falam dores que calçam os nossos sapatos, vozes que nos vestem a pele mesmo quando fingimos não ouvir. Este ciclo é um espelho estilhaçado: cada caco mostra um rosto diferente, mas todos sangram igual. 20/01 — Voz Coletiva I: o que sobrou depois do adeus (variável fantasma) Somos os que se acostumaram a dormir com ausências deitados ao lado. Já não pomos dois pratos na mesa, mas às vezes esquecemos e pomos. Trocamos o nome das coisas por silêncios — e ninguém nota. Aprendemos a sorrir com a metade da cara. A outra ficou no di a em que tudo se partiu sem fazer barulho. 21/01 — Voz Coletiva II: os que amam sem resposta (variável residual) Continuamos a escrever mensagens que nunca enviamos. A falar com fotografias. A segurar o telemóvel como quem espera milagre. Somos os que ainda esperam "bom dia" de quem já não acorda connosco. O amor ficou, mas sem morada. Só a espera é que continua a te r onde morar. André Éme | Almanaque das Ausências e Outras Presenças _ 20 22/01 — Voz Coletiva III: os que fingem bem (variável de fachada) Rimos nas festas. Pagamos contas. Dizemos "está tudo bem" com a pontualidade de um relógio. Ninguém nota o buraco no peito porque vestimos bem a camisa. Somos os fortes da fotografia, os que todos dizem “tu és tão corajoso”. E somos. Mas só por fora. Por d entro, somos território de guerra nunca noticiada. 23/01 — Voz Coletiva IV: os que ainda sonham (variável persistente) Apesar de tudo, ainda sonhamos. Às vezes baixo, às vezes aos gritos. Sonhamos com reencontros que não sabemos se queremos, com futuros que talvez nem existam. Mas sonhamos. Porque sonhar é o último pedaço que a ausência não consegue arrancar. E enquanto houver sonho, ainda há um lugar onde não dói.