Tanizaki Jun'ichiro O Tatuador, 1910. Traduzido da versão inglesa de Howard Hibbet. *** Tratava-se de um tempo em que os homens honravam a nobre virtude da frivolidade, um tempo em que a vida não era tão dura como o é hoje. Tratava-se de um tempo pacato, em que a perspicácia profissional mostrava-se um ótimo meio de se prover recursos, o que conferia a jovens cavalheiros ricos, bem nascidos e dispostos em imperturbável bom humor o dever de jamais permitir que o riso das damas da corte e das gueixas cessasse. Fosse nas novelas românticas ilustradas do período, fosse no teatro Kabuki1, onde rudes heróis masculinos tais como Sadakuro e Jiraiya2 viam-se transformados em mulheres, em tudo e toda parte a beleza e a força mesclavam-se numa única virtude. As pessoas inclusive recorriam a todos os meios de que dispunham para se embelezar, alguns inclusive injetando pigmentos em suas preciosas peles. Vistosos padrões de linha e cor dançavam sobre os corpos masculinos. Os frequentadores do distrito do prazer de Edo optavam inclusive por sempre contratar liteireiros que tivessem as peles esplendidamente adornadas com tatuagens. As cortesãs de Yoshiwara e Tatsumi3 apaixonavam-se por homens tatuados, entre os quais haviam não apenas apostadores e semelhantes, mas também membros da classe comerciante e até mesmo samurais. Exibições ocorriam de tempos em tempos, onde os participantes se despiam para exibir seus corpos meticulosamente adornados, vangloriando-se de sua sofisticação e criticando os méritos alheios. Havia um jovem tatuador excepcionalmente talentoso chamado Seikichi. Sua habilidade era enaltecida por todos os lados, sendo comparável em sua maestria a Charibun ou Yatsuhei4. As peles de dezenas de homens foram-lhe oferecidas como seda ao seu pincel. Uma boa parte dos trabalhos admirados nas exibições eram seus. Alguns talvez se 1 Forma de teatro tipicamente japonesa que une canto, dança e atuação. Popularizou-se a partir de 1603, durante o Shogunato Tokugawa, e encontra-se presente na sociedade japonesa ainda hoje. 2 Personagens famosos de peças de teatro kabuki. 3 Populares distritos da luz vermelha, como eram conhecidos os bairros de prostituição em Edo. 4 Tatuadores famosos do estilo irezumi, que envolve o uso de agulhas tebori para criação das tatuagens. destacassem pelo uso do sombreado ou do cinábrio, mas Seikichi era famoso pela astúcia incomparável e charme sensual de sua arte. Noutros tempos, Seikichi ganhara a vida como um pintor Ukiyo-ye5 da escola de Toyokuni e Kunisada6, um cenário em que, a despeito de seu declínio para o status de um mero tatuador, serviu para evidenciar sua consciência artística e sensibilidade. Qualquer um cuja pele ou constituição física não lhe despertasse qualquer interesse era incapaz de comprar seus serviços, e mesmo aqueles clientes que por ele fossem aceitos haveriam de concordar em deixar o desenho e o custo inteiramente a cargo do artista, sendo que a eles competia apenas e tão somente suportar por um mês ou dois a dor excruciante de suas agulhas. Nas profundezas de seu coração, o jovem tatuador escondia um prazer secreto, e um desejo igualmente secreto. O seu prazer residia na agonia experimentada pelos homens à medida que mergulhava as agulhas em suas peles, torturando suas carnes inchadas e vermelho-sangue. Quanto mais alto fossem os murmúrios, maior era o estranho e oculto prazer por ele experimentado. Sombreamento e vermelhão: diz-se que essas técnicas, especialmente dolorosas, eram as mais apreciadas pelo tatuador. Quando um homem era picado quinhentas ou seiscentas vezes no curso de uma sessão habitual de um dia e em seguida mergulhava o corpo ferido em banho quente para realçar as cores da pintura, não raramente, tombava semi-inconsciente aos pés do tatuador, que lançava-lhe um olhar apático. "Me atrevo a dizer que dói", eram suas palavras em tom de satisfatório júbilo. Sempre que um homem covarde uivava e rangia os dentes em tormento, quase como se estivesse prestes a morrer, Seikichi o repreendia: "Não aja feito uma criança. Recomponha-se! Mal começou a sentir minhas agulhas", e seguia a tatuá-lo, imperturbável, dedicando ao cliente choroso um olhar ocasional. Por vezes, porém, algum homem de sólida constituição se forçava a manter-se estóico e implacável, não se permitindo sequer uma careta. Então, Seikichi sorria e murmurava: "Você é mesmo teimoso! Mas espere só até que seu corpo lateje de dor, eu duvido que será capaz de manter tal compostura..." 5 Estilo de pintura e xilogravura tipicamente japonês, que popularizou-se a partir do século XVII. 6 Artistas consagrados no estilo citado. Por muito tempo, Seikichi cultuou o desejo de estampar uma obra-prima sobre a pele de uma bela mulher. Tal mulher, porém, deveria cumprir diversos requisitos e qualificações de caráter, tanto quanto de aparência. Um rosto adorável e um belo corpo não eram o suficiente para satisfazê-lo em seus intuitos artísticos. E mesmo tendo examinado uma a uma as belezas dominantes dos distritos de Edo, não pôde jamais se deparar com uma única que se adequasse às suas demandas. Muitos anos se passaram sem que obtivesse qualquer sucesso em sua busca, e ainda assim o rosto e a figura da mulher perfeita continuaram a lhe assombrar os pensamentos, de forma que ele jamais abrisse mãos da esperança. Numa noite de verão do quarto ano de sua busca, Seikichi passava por coincidência pelo Restaurante Hirasei no distrito Fukagawa de Edo, não muito longe de sua casa, quando captou em rápida passagem os pés brancos a pender das cortinas de uma liteira em percurso. Aos seus olhos afiados, pés humanos eram tão expressivos quanto o rosto, e aqueles em específico eram pura perfeição. Dedos primorosamente esculpidos, adornados com unhas tais como conchas iridescentes ao longo da margem de Enoshima, um calcanhar feito pérola polida, de pele tão lustrosa que sugeria ter sido banhada nas águas límpidas de uma fonte na montanha: estes eram de fato pés que deveriam ser nutridos pelo sangue dos homens, esmagando seus corpos. Certamente eram os pés da mulher única pela qual buscava. Sedento por um mero vislumbre do rosto da donzela, Seikichi decidiu-se a seguir a liteira, mas perdeu-a de vista após persegui-la por diversos becos e ruelas. O desejo tanto tempo maturado no coração do tatuador tornou-se agora num amor devoto. Certa manhã, durante a primavera seguinte, ele se encontrava de pé sobre o piso de bambu da varanda de sua residência em Fukagawa a observar os lírios omoto7 em seus vasos, quando notou a presença de alguém junto do portão do jardim. Uma jovem a si se apresentou em nome de uma amiga, uma gueixa que residia no distrito vizinho de Tatsumi. "Minha senhora pediu que eu lhe entregasse essa capa, e ela gostaria de saber se você seria apto a adornar seu forro", disse ela e desembrulhou um pacote amarelo do qual retirou uma capa feminina em seda, enrolada a um lenço de papel espesso ostentando o retrato do ator Tojaku8, e também uma carta. 7 Rohdea japonica, também conhecidos como lírio nippon ou lírio sagrado. 8 Ator kabuki cuja data de nascimento é incerta. Assumiu o nome de Iwai Tojaku de Novembro de 1832 a Janeiro de 1846. A carta repetiu o pedido da amiga e indicou que a portadora iniciaria tão logo a própria carreira como gueixa, sob sua proteção. Esperava ao mesmo tempo que, sem abandonar os velhos laços, Seikichi se decidisse a estender seu patrocínio a essa garota. "Temo nunca tê-la visto antes", disse Seikichi, examinando-a com atenção. A garota não parecia ter muito mais do que quinze ou dezesseis anos, mas sua face dispunha de uma beleza estranhamente madura, embalada por um olhar de experiência, quase como que moldado por anos a fascinar os homens nos distritos mais jubilosos. Sua beleza espelhava os sonhos de gerações de glamorosos homens e mulheres que haviam vivido e morrido na extensa capital, que concentrava os pecados e a riqueza de toda a nação. Seikichi pediu que ela se sentasse junto à varanda e estudou seus delicados pés, que estavam desnudos senão por elegantes sandálias de vime. "Teria você deixado o restaurante Hirasei numa liteira certa noite no mês de Julho?", indagou. "Suponho que sim", respondeu a jovem a ostentar um sorriso ante a estranha pergunta. "Meu pai ainda vivia àquela altura, e com alguma frequência ele me conduzia até lá". "Esperei cinco anos por você. Essa é a primeira vez que vejo seu rosto, mas me lembro de seus pés. Por favor, entre. Eu preciso mostrar-lhe algo." Ela colocou-se de pé pronta para partir, mas ele tomou-a pela mão e conduziu-a através das escadas, até o seu estúdio, com vista para o lago. Trouxe então duas pinturas em pergaminhos, desenrolando uma destas diante dos olhos dela. Tratava-se da representação de uma princesa chinesa, a favorita do cruel Imperador Zhou da Dinastia Shang. Apoiava-se em uma balaustrada em lânguida pose, e a longa saia de seu robe de brocado arrastava-se até a metade de um lance de escada. Seu corpo esguio quase não era capaz de suportar o peso de sua coroa de ouro cravejada de pedra coral e lápis-lazúli. Ostentava na destra uma grande taça de vinho, vertendo-a nos lábios ao que assistia o tormento de um homem prestes a ser torturado no jardim abaixo. As mãos e os pés do condenado estavam acorrentadas a um pilar de cobre oco, onde haveria de se acender uma fogueira. Tanto a princesa quanto sua vítima - esta de cabeça curvada e olhos cerrados, pronta para encontrar seu destino - eram representados com assustadora expressividade. Ao que a garota encarava a pintura grotesca, seus lábios tremiam e seus olhos iluminavam-se com fagulhas. A expressão transformou-se gradualmente num semblante de curiosidade em torno da princesa. Na pintura, a garota pôde reconhecer sua própria essência encoberta. "Vejo que seus mais íntimos sentimentos estão revelados aqui", disse Seikichi com algum prazer ao que lhe observou a face. "Por que está me mostrando essa coisa horrível?", indagou a garota que empalideceu ao encará-lo. "A mulher em questão é você, e o sangue dela corre em suas veias." E então desenrolou o segundo pergaminho. Tratava-se de uma pintura intitulada "As Vítimas". Ao centro, uma jovem apoiava-se contra o tronco de uma cerejeira: regozijava-se sobre a pilha de cadáveres masculinos aos seus pés. Passarinhos que voavam sobre ela cantavam em triunfo, e seus olhos irradiavam orgulho e júbilo. A cena remetia a um campo de batalha ou a um jardim de primavera? Nesta pintura, a garota sentiu ter encontrado algo oculto havia muito na escuridão de seu próprio coração. "A pintura mostra seu futuro," disse Seikichi, indicando a figura da mulher sob a cerejeira, a própria imagem da jovem. "E todos estes homens arruinarão suas vidas por você." "Por favor, afaste isso, eu imploro!" E então ela virou as costas, disposta a fugir da tentadora isca, prostrando-se trêmula diante dela. "Eu preciso reconhecer que você está certo a meu respeito. Eu sou como aquela mulher. Então por favor, por favor, livre-se disso." "Não fale como uma covarde", disse-lhe Seikichi com seu malicioso sorriso. "Olhe mais atentamente, e seu pudor não há de durar muito". Mas a garota recusou-se a erguer a cabeça. Se manteve prostrada com a face enterrada nas mangas, repetindo de novo e de novo que sentia medo e queria partir. "Não, você deve ficar. Vou torná-la uma verdadeira beldade", disse ele, aproximando-se dela. Sob seu kimono, escondia-se um frasco de anestésico que obtivera havia algum tempo de um médico holandês. O sol da manhã resplandesceu sobre o rio, incendiando com a luz do amanhecer o estúdio de oito tatames9. Raios refletidos da água adornavam com douradas ondas as telas de papel deslizantes e o rosto da garota que rapidamente adormeceu. Seikichi fechou as portas e reuniu seus instrumentos de tatuagem, mas por um tempo manteve-se sentado na entrada do cômodo, apreciando por inteiro a inquietante beleza da jovem. Pensou mesmo que nunca se cansaria de contemplar sua face serena tal qual uma máscara. Tal qual os antigos egípcios embelezaram sua terra tão magnífica com pirâmides e esfinges, estava ele próprio prestes a embelezar a pele pura e branca da garota. Dessa forma, ergueu o pincel apanhado entre o polegar e os dois últimos dedos da mão esquerda, aplicando sua ponta contra as costas da garota ao mesmo tempo que, com a agulha segurada na destra, espetou o desenho sobre a pele. Sentiu como se o seu espírito estivesse a se dissolver em meio ao negrume da tinta que manchava a pele. Cada gota do cinábrio Ryukyu por ele misturada ao álcool e estocada sobre a pele era uma gota de seu próprio sangue. Pôde ver em seus pigmentos as matizes de suas próprias paixões. Não demorou a entardecer, e o dia tranquilo de primavera se aproximou de seu fim. Mas Seikichi não pausou seu trabalho por um momento sequer, e tampouco o sono da garota se fez perturbado. Quando um servo da gueixa até ali se dirigiu para indagar acerca da garota, Seikichi o despachou sob o pretexto de que ela havia partido muito tempo atrás. E horas depois, quando a lua dependurada sobre a mansão ao longo do rio já banhava as casas em esplendor idílico, a tatuagem ainda não estava sequer na metade. Seikichi passou a trabalhar sob a luz de velas. 9 Cômodos de residências tradicionais japonesas são habitualmente medidos em tatames, cujas medidas exatas podem variar a depender da região. Mesmo inserir uma única gota de cor não era uma tarefa simples. A cada estocada de sua agulha, Seikichi liberava um ofego pesado a sentir como se perfurasse o próprio coração com cada golpe. Pouco a pouco, as marcas da tatuagem começaram a tomar a forma de uma grande grande viúva-negra10; ao que o céu da noite aos poucos empalidecia no alvorecer, essa estranha e malévola criatura estendia suas oito patas para abraçar as costas inteiras da garota. Sob a luz do alvorecer da primavera, barcos remavam acima e abaixo do rio, seus remos rangendo pela manhã silenciosa. As telhas das casas brilhavam ao sol, e a névoa começou a se dissipar ao que as velas brancas se agitavam sob a brisa matinal. Finalmente, Seikichi deixou de lado seu pincel e pôde observar a aranha tatuada. Tal obra de arte continha o supremo esforço de sua vida, e agora que havia concluído, seu coração se viu drenado de emoções. As duas figuras se mantiveram imóveis por algum tempo, até que a baixa e rouca voz de Seikichi ecoou tremulando nas paredes do quarto: "Para torná-la verdadeiramente bela, depositei minha alma nessa pintura. Agora, não há mulher no Japão que se compare a você em beleza. Seus antigos temores se foram, e todos os homens serão suas vítimas." Como que em resposta a estas palavras, um frágil gemido deixou os lábios da garota, que aos poucos recuperava os sentidos. A cada vibração que acompanhava a respiração, as patas da aranha agitavam-se quase como se fossem vivas. "Você deve estar sofrendo. A aranha a tem em suas garras." Ao que ela entreabriu os olhos num olhar fastidioso, seu semblante se iluminou como a lua ilumina a noite, até brilhar radiante em sua face. 10 ranha do folclore japonês que se alimenta dos Possível referência a uma Jorōgumo, youkai a corpos de homens jovens, e para tal assume a quase sempre a forma de uma mulher jovem e atraente. "Me deixe ver a tatuagem", disse ela, quase como se estivesse num sonho, ainda que ostentando alguma autoridade em sua voz. "Ter recebido sua alma deve ter me deixado deslumbrante." "Primeiro você deve se banhar para trazer as cores à tona", sussurrou Seikichi, compassivamente. "Temo que vá doer, mas precisa suportar um pouco mais." "Posso suportar qualquer coisa em prol da beleza." A despeito da dor que trespassava seu corpo, ela sorriu. "Como a água me causa dor! Me deixe sozinha e espere no outro quarto! Não me agrada que um homem me veja sofrer dessa forma!" Ao que ela deixou a tina, frágil demais para se secar, se desfez da mão simpática por Seikichi estendida em seu auxílio, e mergulhou no piso em agonia, a gemer como num pesadelo. Seus cabelos desgrenhados agora emolduravam o rosto num emaranhado selvagem, e as solas brancas dos pés refletiam-se no espelho logo atrás. Seikichi fora deixado atônito pela mudança operada na garota outrora tímida e contida, mas fez o que lhe foi dito e a sperou em seu estúdio. Cerca de uma hora depois, a garota retornou cuidadosamente vestida, com os cabelos ainda úmidos penteados sobre os ombros. Apoiando-se sobre a beira da varanda, olhou para o céu nebuloso com olhos brilhantes e sem qualquer vestígio de dor. "Também desejo presentear-lhe com aquelas pinturas", disse Seikichi, depositando os pergaminhos diante dela. "Pegue-as e vá". "Todos os meus antigos temores foram levados para longe, e você deve ser minha primeira vítima!" Ela dirigiu-lhe um olhar brilhante feito uma lâmina, enquanto uma melodia triunfante ecoava-lhe nos ouvidos. "Me deixe ver sua tatuagem uma vez mais", implorou Seikichi. Silenciosamente, a garota acenou e deslizou o kimono sobre o ombro. Tão logo suas costas pintadas de forma resplandecente apanharam um raio de luz, a aranha pôde ser vista emaranhada em chamas. *** Versão original: Tanizaki, Junichiro (2011-12-20). Seven Japanese Tales. Translated by Howard Hibbet. Tuttle Publishing. Kindle Edition.
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