Minha Filosofia Crônicas & Contos DOUGLAS ELEMAR 2019 Campo Grande/MS 1 “A troça é a maior arma de que nós podemos dispor e, sempre que a pudermos empregar, é bom e é útil. Nada de violência, nem barbaridades. Troça e simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo. O ridículo mata e mata sem sangue. É o que aconselho a todos os revolucionários de todo o jaez." Lima Barreto “O último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade.” Millôr Fernandes “A ironia é a expressão mais perfeita do pensamento.” Florbela Espanca 2 Advertência ao leitor O livro de crônicas e contos que o leitor, ou leitora (ou seja lá como você se de- fina) tem em mãos foi escrito em meios virtuais nos últimos cinco anos; vividos estes entre o Rio de Janeiro e Campo Grande. Muita coisa abaixo talvez o autor não tivesse escrito de novo. Porque o autor pensa que dizer, falar, escrever é tornar vida, é criar, é dar som à ideia, e de certas vidas, de certas ideias nós podemos ou devemos às vezes nos arrepender — e é comum que seja assim, mortais que somos, só aprendemos pelo erro, daí a perspicácia de alguns filósofos em dizer que filosofar é aprender a morrer. Em todo o caso, as crônicas e contos ora reunidos nasceram sob a luz do mais sincero e imaculado otium philosophicum. Quem os for ler, portanto que tenha o próprio entendimento para aqui julgar, criticar, guardar ou esquecer. Nunca foi minha intenção ser autor. Para dizer a verdade, eu me descobri escritor por acaso (leia Kardec, mas leia Deleuze e Descartes também), quero dizer que me descobri autor, cronista pelos outros, são sempre os outros que nos descobrem antes de descobrirmo-nos a nós mesmos, terrível ironia da vida; ou pode ser também que Sêneca e Salomão estejam certos, laus alit artes (o elogio alimenta a arte) e vanitas vanitatus, est omnia vanitas (vaidade de vaidades, tudo são vaidades). Fico com o Eclesiastes! Sendo assim, em virtude da mais pura vaidade dedico este livro a mim mesmo, aos meus amigos, familiares, colegas professores, alunos e at last but not least, aos futuros leitores desse opúsculo (que vem se somar a tantos outros opúsculos que não serão lidos nesse mundo, mundo este que não deixa de ser também um opúsculo em forma de planeta cujo sentido sempre nos escapa por mais que o inda- gamos), que eu nunca talvez nunca venha a conhecer, mas que já os admiro, estimo e congratulo na fraternidade que é a vida com leitura. Num mar de livros e manuscritos, que este seja mais um colocado dentro de uma garrafa e que fique à deriva, quem sabe descoberto por algum náufrago ou leviatã. 3 In memoriam Danilo, Sofia, Gutemberg, Lucília, Stefan e Bruno Alves. Para minha mãe e meu pai. Para o Luís Henrique, pela amizade desinteressada e as incontáveis conversas, koinonia gar he philia. A elas, sempre, que tornam o fardo leve e o mundo um lugar mais agradável. 4 Sobre Direita Muitos não sabem, mas eu sempre fui de esquerda. Sou esquerda desde pequenininho. Minha mãe conta que quando estava prenha de mim, meu pai chegou perto dela e disse, com a certeza dos profetas: ―Vai ser menino, se chamar Douglas, ter sobrancelha grossa e ser de esquerda‖. Excetuando-se a sobrancelha, que não é a única coisa grossa em mim (refiro-me ao meu temperamento, claro), meu velho pai acertou na mosca! De lá pra cá, cabe dizer também que sofri — e sofro ainda — por ser de esquerda. Afi- nal, está claro como um albino que o mundo não é de esquerda, é de direita. As pessoas trocam aperto de mãos com a mão direita; o câmbio do carro fica à direita do motorista; a manopla que acelera a motocicleta também fica à direita do piloto; quando que- remos alterar alguma coisa específica no computador, clicamos com o botão direito do mouse; é com a mão direita que abrimos a porta da nossa amiga geladeira. E para não ficar apenas nos laicos exemplos: para que os pescadores conseguissem pe- gar os peixes, Cristo ordenou-os que lançassem a rede à direita do barco (João 21:6); a orelha de Malco, servo do sumo sacerdote, decepada pela espada de Simão Pedro, foi a da direita (João 18:10); e adivinhem qual foi a orelha cortada pelo mestre Van Gogh? A direita! Eu poderia ficar aqui até o fim dos tempos dizendo o tanto de coisas que fazemos com a mão direita. Eu não sei se é tão errado assim ser de esquerda quando tudo à nossa volta dá provas do contrário, mas quando fiquei sabendo que a palavra right, do idioma inglês que tanto gosto, além de significar o termo ―direita‖ significa também ―certo, correto‖, eu fiquei mesmo muito chateado, all right?! Ser canhoto, isto é, ser de esquerda, escrever com a mão esquerda como eu escrevo e tal como o vaticinou meu pai, é um verdadeiro fardo. Mas o nosso mundo é um mundo de fardos, infelizmente. As Bacantes Além do absurdo que é o tratamento recebido pelos alunos das universidades públicas do Rio, o descaso e escárnio com o universitário não param por aí. Greve de professores, greve de alunos, ascensoristas sem salário, aluno sem elevador; poucos não são os obstáculos para fazer o pobre universitário desistir da tão sonhada carreira acadêmica e poder, finalmente, entregar o canudo ao papai e à mamãe. Porque a namorada já tem o dela guardado. Junto à sobremesa que serviram ontem no bandejão (o prato foi bife à rolê), um peque- no aviso informava: "Duo de Frutas - Abacaxi e Uva". Terminada a refeição, o aluno de filosofia, já ansioso por comer apenas as uvas — quem sabe colhidas por finas e delicadas mãos de ascendência europeia —, pega da sobremesa, tira- lhe a tampa e o que vê? Uma única e roliça uva entre dezenas de cubos de abacaxi. A pobre uva estava mais solitária que piano em orquestra. Quem o reitor pensa que é? Sumo sacerdote de Baco, pronto a distribuir miseráveis uvas como se fossem hóstias? Uma única uva! E pior, ainda tinha caroço. Depois desse exemplo de mesquinhez, não quis pagar para ver. Peguei o palito que es- tava espetado no bife, e fui-me embora palitando os dentes — ainda tenho esse deplorável cos- tume que a sociedade tanto abomina: palitar os dentes. 5 Pequeno Diálogo do Casal Moderno — João, posso te fazer uma pergunta? — Claro, amor... — Você não me curte mais? — Como assim, Maria? Você sabe que eu te curto desde o primeiro dia em que te adici- onei. — Ah, não sei... Você já não olha mais para o meu perfil, não compartilha mais dos meus posts... — Não diga isso, tolinha... Mas é que a bolsa de monitoria tem ocupado muito meu tempo. — Mas antes não era assim, qualquer coisa que eu postasse você curtia, compartilhava, comentava... e sempre colocava um coraçãozinho no final. — Você está muito sensível hoje, amor... Por acaso você já está ―naqueles dias‖? — O quê? Claro que não, seu grosso, machista... Só estou dizendo que alguma coisa mudou, antes nós íamos para todos os eventos juntos, agora nem isso mais acontece. Todo even- to que te convido você não comparece mais. — Não compareço? Mas você quer o que, hein? O último evento que você me convidou foi ―Comemoração dos 226 anos da Queda da Bastilha‖... — E qual o problema? O pessoal lá da faculdade não viu nada demais. Pior é você que comemora no dia 25 de dezembro o aniversário de alguém que já morreu há mais de dois mil anos. — Pelo amor de Deus! Você não quer comparar Jesus Cristo com Robespierre, né? — E daí? Cada um escolhe para si o salvador que bem entender... Uma Carta de Natal para Dickens ―Querido Papai Noel, Eu sei que você não existe e que essa carta é fruto exclusivo do meu ócio hiperbólico, mas vamos e convenhamos — que Natal! Ah, se o meu aparelho digestivo e excretor falasse! Que belos cânticos ele não entoaria em teu nome! Sim, Papai Noel, em teu obeso e polar nome! Tu que és o símbolo inconteste dessa grande festa onde os principais convidados são a fome, a vaidade e o sorriso amarelo. Que tenho eu a ver com a desnutrição das criancinhas des- validas da Namíbia ou do Curdistão? Que me importa a AIDS, os leilões de cabaço pela internet e a emissão de CO2 mundo afora? Às favas com isto tudo! Eu só quero saber de uma coisa: esse Prosecco aí na mesa... É Prosecco mesmo ou é espumante hein? E me passa logo um pedaço desse Chester que o pobre do frango ficou parasi- tando meses e meses só para o meu deleite. Ah, o Natal! Soubesse o Cristo no que se transformaria essa reunião sagrada e ele teria pedido para ser crucificado antes dos trinta e três. Mas o melhor do Natal mesmo é o amigo oculto! Tudo bem que em alguns lugares ele seja chamado de amigo secreto, amigo desconheci- do ou outra coisa que o valha. Mas ter o seu nome elevado aos píncaros da virtude e da moral por um membro da família, isso não tem preço! E ainda ganha-se presente... é mole ou quer mais? Esse ano quem me tirou foi meu cunhado, aquele traste. Coitada da minha irmã, merecia coisa melhor. Mas como diz o velho adágio popular: se cunhado fosse bom, não começaria com as letras ―c‖ e ―u‖. Concordo. Você acredita que eu pedi um filme do Steve McQueen de amigo oculto e o infeliz me traz ―Sete homens e um destino‖?! 6 O canalha ainda teve a desfaçatez de me dizer que ―com‖ e ―do‖ são a mesma coisa. Não se pode mesmo confiar em quem só vê filme dublado e tem o nome da esposa tatuado no antebraço. Salvo esses desprazeres, tudo ocorreu muito bem. No próximo ano, ficou decidido que o Natal vai ser aqui em casa. Faltam 365 dias e já cortei uns dez nomes da lista. Que Deus me perdoe, mas gente sebosa e falsa eu não quero perto de mim.‖ O Grito do Ypiranga Não sei vocês, mas a mim em nada espantou a notícia de um grupo de pessoas ter ido às ruas, em São Paulo, e reivindicado a volta do regime militar, impeachment da Dilma, ou até mesmo a redução do elevadíssimo preço do pãozinho francês — sim, eu consegui achar numa foto publicada por um jornal, um papel cartolina onde está escrito com caneta pilot: "ABAIXO A DITADURA DO SEU MANOEL DA PADARIA!". Ora, vamos e convenhamos, se Adão, que foi o primeiro entediado da Terra, não se contentou com o paraíso que Deus lhe deu, por que nós haveríamos de nos contentar com o que está aí hoje? O gosto pela oposição nos é tão natural quanto a irreprimível vontade de flatular em público, e, mesmo assim, envergonhamo-nos por isso; afinal de contas, somos feitos à imagem e semelhança de Deus. E como deuses que somos, não ficaria bem sair peidando por aí. Ademais, o direito ao protesto aqui em Pindorama é livre e gratuito, ao contrário do que acontece na China, aquela grande pastelaria socialista. Lá é preciso ter o "Bolsa Protesto"; é verdade, o sujeito que inventar de protestar, sem a anuência do governo chinês, é fuzilado à moda do macarrão miojo, isto é, de maneira instantânea. Eu tenho cá com meus botões que seja uma pena que aqui não haja semelhante prática. Não me refiro ao fuzilamento, mas sim ao "Bolsa Protesto". Poupar-nos-ia de grandes e cons- trangedores embaraços. Mas a vida é assim mesmo, meus caros. Não devemos levar as coisas tão a sério. O ser humano — disse uma vez Nelson Rodrigues — é capaz de tudo, até de uma boa ação. Minha Filosofia Eu vejo um calouro de Filosofia e logo penso: "Pobre alma! Mal nasceu e vai já mor- rer!" Morrer para a família, morrer para os amigos, para o namorado, para a namorada, ou seja, vai viver só. Porque estudar filosofia é isso: viver solitário. Vai viver solitário porque vai morrer para os outros e renascer para si, somente. Vai finalmente ouvir aquela tímida e acanha- da voz do fundo de sua alma a lhe dizer: "Você não vai concordar com essa besteira que está sendo dita, vai?!". Estudar filosofia não é só ler os livros de filosofia, ver filmes sobre filosofia e muito menos publicar no Instagram aquela coleção maneira do Deleuze que você nunca vai ter saco para ler. Não! Estudar filosofia é estudar a si mesmo. Estudar filosofia é tomar o próprio corpo como objeto do pensamento. Não vou dizer tomar a própria alma, porque essa já pertence ou a Deus ou a Satanás. Ser filósofo é, como uma vez disse-me um amigo, ser um gambá de festa. É quando, naquele momento que todo mundo está feliz e contente, você chega e diz: "Não é bem assim não, hein!". E pronto, todo mundo já começa a notar o mau cheiro que você há pouco exalara. Filosofia não é a busca pelo saber, não. Filosofia é a perda do que você achou que sa- bia. 7 A Filosofia é como aquela mulher que você namora, e, enquanto ela fala, você diz para si mesmo: "Nossa... mas ela é muita gata"! Filosofia é deslumbramento, é perder a si mesmo quando não há nada mais a se perder. É viver pelos cantos, como um rato da Cinelândia, pensando em como tal ou qual coisa se suce- deu e ver depois que o mundo pode (e vai) passar muito bem sem o seu questionamento. É pensar, pensar e pensar, até as têmporas lhe doerem bastante, você achar que é fome ou dor de cabeça, e tudo voltar como se fosse um eterno instante. É só ler livros de literatura e ver que ali há muito mais filosofia do que uma aula sobre Aristóteles ou Descartes. A verdade é que todos os livros de filosofia são descartáveis. Todas as aulas de filosofia são prescindíveis. A verdadeira filosofia é aquela que te leva a fazer o que você sempre quis e nunca teve coragem para fazer. É o que levou também um velho alemão a dizer: "Sou demasiado curioso, demasiado problemático, demasiado insolente, para me contentar com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores...". Se isso não é filosofia, se isso não é morrer para os outros e renascer para si mesmo, então eu já não sei de mais nada. De Homino Imitatione O homem é mimético ("macaco de imitação", para os não-iniciados nos inúteis estudos da Filosofia), não só por natureza, mas também pela natureza. Ele viu o pássaro voando pelos céus, veio-lhe a inveja e inventou o avião. Ele viu o cachalote, o tubarão e o golfinho nadando velozmente nos mares, veio-lhe a inveja e inventou, respectivamente, o navio, o iate e o jetski. Ele viu o cavalo trotando feliz pelas planícies desérticas, veio-lhe a inveja e inventou o carro. Não só inventou o carro, como ainda estabeleceu o horse power como medida de potência do mesmo. Ele viu o porco, feliz e inocente, chafurdar na lama, e resolveu ele também chafurdar na própria vida, fazendo desta um lamaçal sem sentido e sem propósito; por escolha, não por inve- ja. . E quando cansou do mau cheiro e da sujeira em que se viu metido, criou para si — e para os outros— um Deus eternamente justo e misericordioso (qualidades infinitas perseguem o homem). Mas até aí tudo bem. O problema foi quando ele começou a comer e digerir os próprios modelos de suas invenções. Se o motivo do enfado foi o fato de não mais querer comer as plan- tas ou os frutos das árvores que lhe caíam sob os pés, é coisa que ninguém sabe nem nunca sa- berá. O fato é que ele comeu e continua comendo. E ai de quem contrariá-lo. Ele é capaz de matar, não de comer. Salvo exceções, como uma queda de avião na Cordilheira dos Andes, por exemplo. Mas e daí? Se numa floresta estivermos apenas eu e a onça-pintada, quem será que come quem? Ela, claro! Sim, se ela estiver com fome (e ela ou os filhotes dela estão sempre com fome). Ora, então! Se ela, quando está com fome, pode me matar e comer, por que não poderei eu fazer o mesmo? E é nessa hora que costuma entrar na discussão aquela velha senhora a quem chama- mos pelo nome de Razão. Eu sou um ser racional e penso — embora os atos e palavras da mi- nha incipiente/insipiente vida provem justamente o contrário. Penso que a onça-pintada seja um ser vivo, e, se não fui eu que a dei vida, por que hei de ser eu a tirar-lhe? Questões e mais ques- tões. Enquanto isso, mundo afora, outros seres vivos morrem com terremotos, tornados e outras desgraças. Desgraças essas que os kardecistas querem positivamente nos fazer crer não 8 ter problema algum. Eles não são discípulos de Leibniz, mas também acham que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Se fosse aprovada uma lei que trocasse o verbete vida nos dicionários escolares pelo ponto de interrogação ?, ninguém se daria conta da troca. A única certeza mesmo é a morte. O resto, pura e inútil conjectura. Os Filhos do Caos Lembram dos trinta primeiros segundos da música B.Y.O.B do System of a Down? En- tão, foi o que aconteceu ontem à noite, por volta das 22 horas, em uma das salas do nono andar da UERJ: caos e desordem. Eu estava no imemorial Cafil passando algumas músicas do notebook para o celular. E já estava também um pouco cansado por conta das mais de três horas de orientação passadas na sala da minha preceptora na parte da tarde. De repente, eu e o resto das poucas almas que ali habitavam o Cafil, ouvimos uns gritos. Pelo tom agudo dos mesmos, imaginei que fossem de mulheres. Depois fiquei sabendo que estava certo. Bem, o que aconteceu no momento seguinte é fácil de deduzir: todos levantaram e foram lá, correndo, ver do que se tratava aquela mixórdia. Todos, com exceção de mim, claro. Não é preciso ser Públio Terêncio para saber que, se sou um homem, nada do que é humano me deverá ser estranho. "Vão vocês... vou ficar aqui", eu disse, com a onisciência dos deuses. E todos foram e logo em seguida todos voltaram: tristes, revoltados e desamparados. Tristes pelo que viram; revoltados porque não puderam fazer nada; e desamparados porque se reconheceram, enfim, como sendo da racionalíssima espécie humana. Ao que parece, um grupo do PSTU (!) atacou, covardemente, um outro grupo de estudantes que estavam numa assembleia. Ao que parece também, anteriormente a assembleia estava ocorrendo no hall do nono (essa eu vi), depois foi para uma sala — cabe averiguar. E foi nesse momento que a horda pstuista fez questão de se comportar como os nossos ancestrais das cavernas — os homo agressivus. Invadiram a sala e, como diz o vulgo, a porrada lombrou geral. Houvesse armas no local, e todos estariam mortos por essa hora. Depois, tomado talvez por um tipo de revelação divina, alguém asseverou: "Nossa, os caras levam a sério mesmo esse lance de esquerda e direita, né?!". A minha vontade foi de per- guntar se num clássico entre Palmeiras e Corinthians, ou Flamengo e Vasco, os torcedores tam- bém levam a sério o Campeonato Brasileiro, porque, afinal, como tem porrada, né? Mas aí me lembrei do argumento da linguagem privada do velho Ludovico e me calei. Na hora de ir embora, passei pela sala. Já estava tudo acabado. A impressão que tive foi a de um camponês romano quando viu sua aldeia queimada pelo exército de Átila. Cadeiras quebradas, gotas de sangue no chão, um monte de lixo, ou seja, mais parecia um octógono do que uma sala de aula. Mas o que mais me marcou foi o cheiro do local. Era um cheiro pesado, cheiro de suor misturado com sangue, coisa horrível. Fui-me embora, e no hall do queijo encontrei um amigo que participou da batalha san- grenta. Estava com o dedo machucado, ensanguentado, e as costas machucadas. Uma outra me- nina tinha um galo enorme na testa. Não foram só homens que atacaram; havia mulheres entre os agressores também. Resumo da ópera: agora, os bravos defensores do povo, os que lutam contra os burgue- ses e votam 16, estão negando o ocorrido. Sim, negando tal como Pedro negou a Cristo e José Dirceu a Lula. Resta saber se o galo ― a ave, não o caroço na testa da menina ― vai cantar ou não. 9 Casa de Festas Fariseando Jesus não era malandro, mas também não era burro. Ele, quando criança, comeu a sua primeira coxinha de galinha (estragada) na festinha de aniversário de 7 anos do seu amigo Ju- das, na casa de festas chamada Fariseando. De lá pra cá, Jesus se ligou que coxinha não estava com nada. Mas, libriano que era, não continha o sangue revolucionário nas grossas veias. Um dia, viu na praia um barco, com uns pescadores inimigos seus que voltavam de uma pesca infeliz. Trocista que era, disse-lhes: — O que aconteceu e por que essas carinhas tristes? — Jogamos a rede à esquerda do barco, mas nada pescamos... — Por que vocês não tentam jogar a rede à direita do barco? — Coé, Nazareno, é papo reto isso? — E eu sou de dar papo torto, José? — Tudo bem... vamos voltar e fazer isso! 13 minutos depois. — Não falei? — É verdade! Pegamos muitos peixes à direita do barco. Não tinha nada do lado es- querdo. O lado esquerdo só tinha lula. Não aguentamos mais comer lula. No dia seguinte, os pescadores todos morreram de indigestão. Os peixes estavam enve- nenados. Maconha Grega Num subúrbio qualquer da cidade de Atenas na Grécia: — Fumando maconha de novo, Sócrates? — Mãe! Eu já não pedi pra você bater na porta antes de entrar no meu quarto? — Quando eu estiver na sua casa, Sócrates, eu bato na porta antes de entrar. — É... Bem que o professor da eletiva de sociologia disse ontem que os regimes totalita- ristas ainda estão por aí, disfarçados, mas precisamos seguir em frente e combatê-los arduamen- te. — Sócrates, meu filho, até quando você vai continuar com esse lixo? — A eletiva de sociologia? — Não, meu filho... com a maconha! Até quando você vai continuar usando drogas? — Ah mãe! Só você não sabe que os grandes gênios da humanidade também usaram drogas. — Ah é?! Então me diga dois desses grandes gênios, por favor. — Sigmund Freud e Edgar Allan Poe, por exemplo. Eles eram usuários contumazes de ópio, a droga mais consumida pelos intelectuais do século XIX. — Meu filho... primeiro: o Freud formou-se em medicina, uma profissão que dá dinhei- ro e um prestígio divino, não em filosofia; segundo: o Poe ficou órfão aos dois anos de idade, e logo em seguida foi adotado por um rico casal que o mandou para os melhores colégios da In- glaterra. O pequeno Edgar ainda aprendeu a falar latim e grego. Agora você, seu desgraçado, estudou a vida toda em escola pública, mal sabe o português e, de grego e latim, só sabe dizer Φιλοσοφία e errare humanum est. — Ah, mãe... — Meu filho, por que você não faz como o seu amigo, aquele que tem as omoplatas largas? — O Platão? — Isso! Por que você não faz como ele e escreve uns livros também? Você só fica de conversa fiada por aí, bebendo cerveja com aquele pau-d´água do Críton e indo à praia de Mi- konos, no posto 10, para ficar manjando os rapazes de sunga. Largue dessa vagabundagem, meu filho. 10 — Vagabundagem não! Ócio contemplativo, como diria um amigo meu que acabou de chegar do estrangeiro, o Aristóteles. — Vagabundagem sim! Fica o dia inteiro aí nesse Facebook, dando uma de revolucio- nário, reclamando das mazelas e injustiças do mundo, mas não é capaz de ajudar a sua mãe em casa. O cocô que você fez no vaso ainda está lá, boiando como uma gorda de maiô na praia. Já estou cansada de dar descarga nas cagadas que você faz na sua vida, Sócrates... — Ah, mãe, deixa de ser maluca! — ―Maluca‖? Se eu falasse com a minha mãe da maneira que você fala comigo, no dia seguinte ela me daria cicuta com iogurte para tomar no café da manhã, seu ingrato. — Ah, sai pra lá... — E vem cá, já pagou os cinquenta reais das cervejas que você bebeu fiado lá no bote- quim do seu Asclépio, na semana passada? — Não paguei não, mãe. Ainda tô devendo um galo pra ele. Mas o Críton prometeu que ia pagar pra mim. Um Ressentido Ah, como é bom poder ir ao cinema sozinho. Você chega à bilheteria, olha os filmes que estão em cartaz, consulta o preço do seu ingresso e, deliberadamente, escolhe o filme que vai assistir sem medo ou receio de ferir o gosto alheio. Não é preciso fazer acordos, concessões, para depois se frustrar no final da sessão e concluir com seus botões: ―Da próxima vez, quem escolhe o filme sou eu!‖. Ah, como é bom poder decidir sozinho a hora em que se vai entrar na sala do cinema. Uma vez verificado no bilhete o início da sessão, você escolhe, arbitrariamente, o momento que vai adentrar naquele imaculado templo da sétima Arte. Sozinho, pode-se entrar na sala com a antecedência que bem desejar, sem precisar ouvir: ―Peraí que vou ali no banheiro rapidinho...o filme nunca começa na hora mesmo.‖ E quando você entra na sala, já perdeu o Directed by dos créditos iniciais. Ah, como é bom poder escolher sozinho o lugar em que se vai sentar. Já que você entrou na sala com a devida antecedência, é possível então ver aquele mar de cadei- ras vazias que te esperam solitárias e carentes, como as 72 virgens do paraíso islâmico de Mao- mé e escolher em qual delas se acomodar. Sozinho, é você quem decide onde ficar. Se quiser sentar lá atrás, longe de tudo e de todos, numa obscuridade digna de um Herá- clito, não tem problema. E se quiser sentar lá na frente, mais exposto que UPP em favela cario- ca, também não tem problema; é você quem decide. Ah, como é bom poder prestar atenção em todos os detalhes do filme. Uma vez acomodado confortavelmente no seu trono, você é absorvido pelo filme. Nada te esca- pa, nem a mais imperceptível falha da cenografia. Nenhum diálogo te escapa, nenhum take te escapa; nada. Você e o filme são um só. Não é preciso dar uma de papagaio falante e ficar repe- tindo de vez em quando as falas mais cruciais do filme. Enfim, não é preciso virar o rosto, tro- car carícias e afagos, praticar certos atos libidinosos que colocariam em risco a sua integridade moral, caso todas as luzes do cinema fossem acesas, inesperadamente, de uma só vez. Resumindo, muitas são as vantagens quando se vai ao cinema sozinho. Tanto é assim, que é difícil, quase impossível, achar uma desvantagem que seja por ir cinema sozinho. Mas há sim uma única e inconsolável desvantagem. E é esta: ir ao cinema... sozinho. Crônica do Exílio Ora, vejam vocês como são as coisas. Como ficou dito que não haveria Copa, aproveitei a oportunidade e resolvi passar uns dias de silêncio e sossego aqui no interior do Mato Grosso do Sul, na companhia do meu provecto pai e da fauna cá reunida no cerrado. Vale lembrar que ele, meu pai, se supera a cada dia nas máxi- 11 mas elemarianas que enuncia; quem o conhece sabe a que me refiro, afinal, foi dele a máxima que faria inveja a um Sêneca ou a um Cícero, ei-la: ―A gente vê que tá ficando velho, quan- do o trabalho começa a dar prazer e o prazer começa a dar trabalho‖. Bem, aqui chegando, qual não foi a minha surpresa ao constatar, pelo Facebook, que não só está havendo Copa, mas que algumas pessoas, que antes tentavam inviabilizá-la, agora se encontram na mais pura e deslavada euforia futebolística. Fazem bolão, sopram corneta, pintam a carinha de verde e amarelo e choram, copiosamente, durante a execução do Hino Nacional. Algumas até pelo Fred torcem! Fatos como esses me fazem lembrar daquela lapidar frase do Millôr: ―O ser humano é uma experiência que não deu certo‖. Eu particularmente estou é torcendo para que essa Copa acabe logo, independentemente de quem a vença — se Brasil ou Irã. E digo isso por dois motivos. Primeiro: quero ver o meu Fluminense, vice-líder do Brasileirão, voltar a jogar bola e tripudiar sobre a mulambada. Segundo: não aguento mais ouvir essa musi- quinha de quinta categoria sendo entoada nos estádios dessa Terra Brasilis pelos descendentes de Cabral, Zumbi e Peri: ―Eu... sô brasilêro, com muito orgúlhô, com muito amôôô‖. Despeço-me com essa estrofe que escrevi, sob a sombra de uma pimenteira, na condição de exilado que estou: Minha terra tem gás de pimenta Onde os PM´s usam sem parar; Os olhos que aqui lacrimejam, Não lacrimejam como lá. A.A. Deus! Rei dos reis, Senhor de todo o universo! Por que deixaste que o achocolatado em pó fosse o objeto de minha carência e trans- formasse minha vida em uma láctea existência? Por que permitiste, Senhor, que eu acreditasse que ele fosse fonte de Vitaminas, Cálcio e Ferro, quando na verdade ele não passava de um instrumento das forças do mal para causar a minha falência física, monetária e espiritual? Por que eu saía como um alucinado pelas ruas da cidade, quando via pela televisão que o Nescau 800gr custava R$ 6,00 no Mundial em dia de promoção? Por que, Deus? Por quê? Lembro-me, ó Pai, da primeira vez em que ingeri esse néctar dos deuses infernais. Foi na Escolinha Maternal Descendentes do Velho Mundo. Eu devia ter uns cinco anos, quando uma menininha chamada Eva, uns dois anos mais nova que eu, retirou de sua lancheira um To- ddynho e perguntou se eu queria chupar aquele canudinho. Eu era pobre naquela época, Senhor, muito pobre, e só levava como merenda meia tan- gerina e uma garrafinha d´água barrenta. Eu nunca havia bebido aquele líquido marrom cremo- so, e confesso: estava ansioso por tê-lo dentro da minha inchada e verminosa barriga. Num primeiro momento, tomado por um pudor idiota, eu neguei a oferta da minha ami- guinha. A solícita Eva, então, com um sorriso ao mesmo tempo convidativo e angelical, pegou a minha esquálida mão, colocou aquele pequeno objeto quadrado entre os meus dedinhos e disse: — Vai... chupa um pouquinho, chupa. Com o pudor agora deixado de lado, fiz como ela ordenou. Ó Senhor! Mil poetas seriam incapazes de descrever o que senti naquele momento epifânico. Ao sugar o canudinho, senti, em minha ressecada boca, um líquido doce e cremoso escorrer pela minha garganta; algo somente similar ao leite que eu sugava da farta teta de minha pobre mãe. O sabor do conteúdo daquela caixinha me arrebatou de tal maneira, que quando dei por mim, eu havia bebido todo o Toddynho da Eva. Quando devolvi aquela caixinha para ela, já não havia mais nada dentro, estava vazia. 12 Ao constatar isso, a face da pequena Eva transfigurou-se e ela já não tinha mais aquele sorriso melífluo. Tomada então por uma espécie de ódio similar ao da Medéia de Eurípedes, ela lançou contra mim palavras tão feias que eu só ouvia quando papai e mamãe brigavam entre si, à noite no quarto, com a porta fechada. Eu sabia disso porque sempre, na manhã seguinte, a mamãe saía do quarto com uma das mãos sobre o ventre, reclamando de fortes dores e andando com as pernas afastadas, como se estivesse pulando amarelinha. Ou seja, papai, além de brigar, ainda batia na mamãe. Depois do fatídico dia em que provei o Toddynho, minha vida nunca mais foi a mesma. Eu precisava do achocolatado como um universitário da PUC precisa da passeata. Como eu era pobre e não tinha dinheiro para comprar, comecei a roubar. Roubava de qualquer um, sem dis- tinção de raça, cor, credo ou opção sexual. Passei muitos anos de minha vida a me consumir nesse vício nefando. Até o dia em que comecei a frequentar as reuniões do A.A. Foi através dos Achocolatados Anônimos, que desco- bri que existem pessoas mais viciadas e deploráveis do que eu. Não que eu me importe com elas, mas é que ver alguém numa situação pior do que a minha, além de ânimo, me enche de vigor. Hoje estou completando dez anos sem aquela substância maligna, vivo apenas do café com leite. Louvado seja, Senhor, o negro café e alvo leite! Tempos Modernos — E quando é que seu pai vem te visitar aqui no Rio, Douglas? Sujeito que me faz essa pergunta, ou é ruim da cabeça, ou realmente não conhece a chácara em que meu pai mora no interior do Mato Grosso do Sul. Ah, a Chácara! Aquele resort rural que bota no chinelo o hotel mais caro da Costa do Sauípe ou o bangalô mais luxuoso da Polinésia Francesa. Na verdade, meu pai não mora na chácara: ele habita a chácara. É verdade, amigo citadino, não se mora no campo, se habita o campo. Habitar o campo é uma concessão que a Natureza faz ao homem e ao animal, com a condição de que o primeiro não perturbe a paz e o sossego do se- gundo. Nós, homens da cidade, é que moramos. Moramos nos apartamentos, nas casas, nos cortiços; moramos embaixo das pontes e em tantos outros lugares aonde chegam a nossa vã imaginação ou a nossa honesta necessidade. Em primeiro lugar, há de se estabelecer a vital diferença entre chácara e fazenda, que o ignoran- te homem da cidade ignora, e que pensa, com a sua urbana altivez, ser tudo a mesma coisa. Não, não é. Em termos de equivalência semântica, poderíamos dizer que a fazenda está para o McDonald´s do shopping center, como a chácara está para barraquinha de acarajé da esquina. A opulência de uma não anula o prazer da outra. A fazenda é uma grande propriedade rural, geralmente afastada da cidade. Tem de tudo na fazenda: capataz, gado, aviário, açude, plantação de soja, de milho e etc. A úni- ca coisa que ainda não tem na fazenda é a tal da Reforma Agrária. Essa, já tentaram plan- tar em algumas fazendas do Brasil, mas pelo que parece a semente não vingou. O motivo talvez seja a infertilidade do solo mental de alguns ou a mira precisa da espingarda de outros (do capa- taz, inclusive). Mas voltemos à diferença. A chácara é, por sua humilde vez, uma pequeníssima propriedade rural com algumas plantações, pouquíssimos animais de criação e bem perto da cidade. Pouco mais de três semanas num lugar como esse e você vê como são fracos os argumentos que dizem ser chata e monótona a vida no campo. Realmente, se comparada com a aventura digna de conto policial que é viver na cidade grande, a vida no campo é bem quieta e tranquila. Sequestros relâmpagos, assaltos a ônibus, balas perdi- 13 das, furtos de toda sorte, latrocínios e estupros são apenas alguns dos incontáveis progressos urbanos que ainda não chegaram para os moradores da vida rural. Mas do jeito que anda o mundo, em breve a coisa muda de figura. Até porque o progresso é como a justiça: tarda, mas não falha. Trombetas de Jericó S/A Não sei quanto a vocês, mas sempre que eu vejo, durante uma madrugada insône, esses programas de TV onde há um repórter entrevistando pessoas saindo de um templo religioso para ouvir-lhes as trágicas histórias e depois perguntar o que aconteceu quando aceitaram a Deus, eu imagino se fosse comigo e o que eu poderia testemunhar. *** — Bom dia abençoado, qual é o seu nome? — Douglas Elemar. — ―Elimar‖? — Não... Elemar com ―e‖. — Tudo bem, diz pra gente Douglas, como era a sua vida antes de você frequentar as reuniões do Templo Soprando as Trombetas de Jericó? — Ah missionário, minha vida era muito ruim. Muito mesmo. Meu casamento, minha família, eu brigava com todo mundo! — Usava droga? — Muita. Primeiro, comecei com o álcool. Depois passei para a maconha. Daí para a cocaína foi uma fungada, digo, um pulo só. Como todo mundo dizia que era normal, e que tal- vez até virasse lei, me tornei usuário convicto. Não queria nada da vida. Só andava em má com- panhia. Só fechava com mau elemento: o Zé da Guimba, o Paulinho Panguado, o Toninho Sem Mucosa, o Serginho Sedanapo e o Luís Trombeta. Morreu todo mundo por causa da droga. Só sobrou eu pra contar história. — E a homossexualidade? Era doente disso também? — Muito, pastor. Como o senhor sabe, o diabo estava no meu corpo. Tinha dias que eu não aguentava nem sentar. Muita dor, sabe? Não gosto nem de lembrar. Na verdade, gosto sim; mas o Missionário Elias Abraão Davi falou que isso é coisa do Satanás e que agora isso está repreendido em ó nome de Javé. — E a magia negra? Praticava a macumba também? — Nem fala, pastor. Magia negra, branca, parda... eu fazia de tudo. Muita macumba. Sentia umas coisas estranhas quando ouvia aquela batucada, sabe? Dizem que é coisa de escra- vo, né? Eu ia toda semana. Além de brigar com a minha mulher em casa, quando eu ia pra ma- cumba, ainda brigava com o Exú Caveira , com Zé Pilintra. Matava o bicharedo todo na faca, fazia ruindade... — E hoje, como está a sua vida? — Ah, missionário! Hoje encontrei Deus. Sou um novo homem. Minha vida é uma verdadeira benção! Saí da favela e me mudei pra Barra da Tijuca. Comprei um carro do ano. Comprei o pacote do Brasileirão, UFC e do Big Brother Brasil. Meus filhos têm iPhone, iPad e videogame. Abri um negócio próprio. Tenho uma loja de marchas para motocicletas: a Elemar- chas. Passei a praticar o hábito da leitura. Além da Bíblia, que leio quase todo dia, leio também os livros do Dan Brown, Augusto Cury, e Martha Medeiros... coisa boa, sabe? Gosto também de arte, tenho em casa uns quadros daquele pintor famoso, o Romero Britto. E ainda conheci a Eulinda no templo, a minha nova esposa. A gente se conheceu aqui durante os encontros ―Di- vorciando-se do Diabo e Casando-se com Deus‖. — É essa senhora gorda que está ao seu lado? — É sim, missionário. — Olá Eulinda, tudo bem? Diga pra gente como está a sua vida? 14 — (Acabando de mastigar um biscoito) Tudo ótimo! Agora Deus está me ajudando no meu tratamento da tireóide. Eu pesava 153 kg. Depois que passei a vir para o Templo Soprando as Trombetas de Jericó, já estou com 98 kg. E o senhor sabe que eu e o meu... — (Olhando de volta para a câmera) É isso meu amigo, minha amiga. Faça como o Douglas e a Eulinda. Venha soprar você também as Trombetas de Jericó. Temos reuniões diá- rias. Todos os dias às 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 horas. Veja a sua vida mudar para melhor! Chega de problema, chega de dor! Sopre a Trombeta de Jericó e seja você um vencedor! Vale-Tudo Ainda que a história abaixo seja de uma irrealidade digna de um filme de David Lynch, ela é verdadeira e me foi contada por um velho amigo a quem o chamarei pela letra E. Apenas para não ofender certas suscetibilidades. Vivendo numa cidade no interior do Mato Grosso do Sul, e com muitos problemas que urgiam em pronta solução; alguns de cunho espiritual, mas a maioria de cunho físico e monetá- rio, meu amigo E. resolveu ir a uma igreja para ver se conseguia um pouco de luz e discerni- mento. O templo escolhido foi uma dessas igrejas pentecostais, onde, nos momentos de clímax coletivo, falam-se línguas que são desconhecidas até mesmo pelo maior dos poliglotas acadêmi- cos e cuja prática do dízimo não é só comum, mas estritamente compulsória. Ele entrou na igreja; o culto começara há pouco. Escolheu um lugar nas cadeiras e sen- tou-se. Passado algum tempo, o pastor deu por encerrado o culto e pediu um momento da aten- ção de todos. A questão era de extrema e vital importância. Não se tratava do destino das almas dos fieis que estavam ali presentes (essas, já previamente discutidas e encaminhadas durante o cul- to), mas, sim, do destino da alma da igreja. O problema era o seguinte: por conta da má administração do pastor anterior, a congre- gação estava abarrotada em dívidas que somavam exatos mil reais. E se nada fosse feito, a igre- ja, que já tinha as portas fechadas para o diabo, haveria de fechá-las também para Deus, nosso Senhor. Entretanto, para que isso não acontecesse, seria necessária a criação de um grupo de ajuda. De acordo com a sugestão do próprio pastor, o grupo deveria chamar-se As Trinta e Três Almas Eleitas do Senhor, e a coisa funcionaria da seguinte forma: um grupo de trinta e três fieis seria responsável por uma quantidade de doações que, juntas, deveriam somar o valor de mil reais. Desse modo, três almas doariam cem reais; dez almas doariam cinquenta reias e vinte abençoadas almas doariam a módica quantia de dez reais cada; totalizando, assim, o valor da dívida a ser quitada. Para a sorte do pastor, e de Deus também, nesse dia a igreja contava justamente com o número de trinta e três pessoas sentadas nas cadeiras, e no meio delas, estava meu velho amigo E. Muito bem. Comovidos pela súplica do pastor, e temerosos pelo destino da ―alma‖ da igreja, os bravos fieis começaram a levantar os braços para se oferecerem enquanto eleitos do Senhor. Em menos de cinco minutos, trinta e duas almas levantaram as mãos. Faltava, portanto, uma última alma para poder contribuir com o valor de dez reais. Meu amigo E. olhou para os lados e viu que teria de ser ele mesmo a trigésima terceira alma eleita. Mas como estava com a carteira vazia, achou por bem permanecer com os membros superiores arriados. Foi aí então que ouviu as palavras do pastor. 15 — Abençoado! Você aí! — disse o pastor olhando para o meu amigo — É, você mesmo! Deus gostaria de saber se você poderia se juntar a esse grupo de 32 valentes e contribuir com a irrisó- ria quantia de dez reais. Meu combalido amigo então, mais duro que nádega de estátua e vendo que era o objeto de todos os olhares ao redor, falou com uma coragem espartana: — Infelizmente, hoje não po- derei ajudar pastor. Estou duro. O pastor, entristecido pela situação daquela alma, mas entristecido mais ainda pela situ- ação da alma igreja, disse: — Mas será que o irmão não poderia assinar um vale? — propôs o pastor. — Um vale?! — indagou meu velho amigo, numa perplexidade similar a de Édipo quando des- cobriu que havia matado o pai e traçado a própria mãe. — Sim, um vale! — exclamou o douto representante do reino dos céus — O senhor assinaria um vale no valor de dez reais agora, e na semana que vem compareceria à igreja para restituir o valor. Ao mesmo tempo assustado e alegre, meu amigo E., com o coração nas alturas, disse que sim, que um vale ele poderia assinar. Assim, foi entregue um papel a ele — um guardanapo, na verdade — e o vale foi prontamente assinado. Na semana seguinte, nem o pastor nem o vale viram meu amigo E. Indagado acerca do motivo da sua ausência, meu velho amigo E. disse-me que não pu- dera ir por conta de uma grave conjuntivite que quase lhe deixou cego. Aula Magna Ora, existem coisas sobre as quais devemos canalhamente escrever. Explico-me. Houve um acontecimento - no sentido filosófico do termo - do qual fui, eu mesmo, di- vina e profana testemunha no dia de ontem. Terminada a litúrgica aula no horário da manhã, me encaminhei para uma sala onde haveria, em poucos minutos, três apresentações de uns alunos decorrentes da Semana de Graduação de Filosofia. Os alunos eram três, dois masculinos e um feminino. Graças ao já conhecido cavalhei- resco ato, o sagrado feminino começou primeiro. E diga-se de passagem, que sagrado... E que feminino. Well, a apresentação da menina (eu não a conhecia) se dividiria em duas partes. Exposi- ção e performance. O tema da exposição era, se me recordo bem, o mito de Afrodite e a respec- tiva exibição do quadro de Sandro Botticelli, a Vênus de Milo. A apresentação foi belíssima. E eu poderia ficar aqui escrevendo durantes horas sobre ela. Mas a verdade é que não conseguiria ir adiante pelo pouco que me conheço. Portanto, va- mos logo ao quinto ato, que é o que interessa: a performance. Com um livro de capa negra nas mãos e tendo como trilha sonora o poema "O Mito" sendo declamado pelo próprio Carlos Drummond de Andrade, o nosso feminino suburbano começou a despir-se. Sim, despir-se. E depois, ficou nua. Nua como a Eva do paraíso bíblico. Nua como uma modelo num quadro de Gustav Klimt. Isso, meus amigos, em plena segunda-feira, num sol de rachar passarinho, às quatorze horas na UERJ; cognominada de Rodoviária Universitária, como diz um querido amigo. Me recordo de que no momento em que caiu-lhe a última peça de roupa, lembrei-me instantaneamente do testemunho de um transeunte norte-americano que vi pela TV; ele passava perto do World Trade Center, e viu as torres caírem diante de seus olhos: ―Aquilo era real, mas não era crível!" O mesmo se dava ali, naquela sala de aulas. E então, nossa Betsabá começou a roçar o livro pelo corpo despido da antropomórfica indumentária. Quando não roçava-o, beijava-o in- tensa e calorosamente. 16 Nas cadeiras, onde estávamos, imperava um silêncio digno de cemitério da baixada. Quando dei por mim, o quinto ato havia findado e a gravação do poema havia se transformado num sem número de versos incompreensíveis. Num átimo de segundo, o feminino já estava de posse da sua inconveniente roupa. Em seguida, os poucos que estavam na sala aplaudiram euforicamente aquela performance. Se esti- vessem na sala, os membros do GPC teriam me chamado de "cafona"; aquele ato de "interven- ção"; e gritado: "Não vai ter Copa!". Mas nós, criaturas imperfeitas em pleno estágio de evolu- ção biológica, apenas aplaudimos. No final de tudo, tomei coragem e me aproximei daquela Eva pós-moderna e perguntei se poderia pegar do livro para ver-lhe o título e o autor (mentira, claro). Ela aquiesceu. Fingi então que anotava alguma coisa. Na verdade, eu queria era levá-lo para casa e encher-lhe de delicadas carícias. Coxinha no Céu O fim do mundo não era uma piada de mau gosto dos povos maias. Ele, de fato, ocorreu, mas com dois anos de atraso, no dia 21 de dezembro do ano de 2014. E uma enorme fila, de aproximadamente 100.000 km, que começava lá no Inferno e se estendia até chegar às portas do Céu, onde um velho de longa barba branca com uma auréola sobre a cabeça, sentado numa cadeira atrás de uma mesa, recebia as almas à espera do Juízo Final. Era São Pedro. E o fundador da Igreja Católica tinha diante de si, em sua mesa, uma pilha de formulários no meio da mesa. À esquerda e à direita: duas gavetas. Na gaveta esquerda, estava colado um adesivo que dizia: Revolucionários´s Heaven. E, na gaveta direita, Reacionários´s Hell. À medida que ia preenchendo os formulários, com a sua caneta Mont Blanc, colocava-os nas referidas gavetas. — Próximo! — Tarde, seu doutô! — Boa tarde, seu nome, por favor? — João. — João do quê? — Só João memo. — Como assim? Você não teve pai nem mãe enquanto esteve na Terra, meu filho? — Tê eu tive, né, seu doutô... — SÃO PEDRO, por favor! Me chame de SÃO PEDRO. — Me descúrpe... Como eu ia dizeno, São Pedro, tê eu tive, mais num conheci eles, não, sinhô. Cresci como capataz de uma fazenda e lá só mi chamavam de João. Daí... Ficou João memo. — Tudo bem, meu filho, mas entenda o seguinte: colocar só João no formulário não vai dar certo; se o Filho do Homem lá em cima vir, vai complicar pra mim. No meu tempo, há uns dois mil anos, quando o sujeito não tinha sobrenome, a gente colocava o nome da cidade em que o infeliz tivesse nascido. Por exemplo: José de Arimateia, Saulo de Tarso, Jesus de Nazaré... Entendeu? — Ah tá... si é assim, então podi botá aí João do Caga Sangue. — ―Caga Sangue‖? Você era doente? Morreu de hemorragia, meu filho? — Não, São Pedro! Num morri de hemorragia não, morri foi de vinho branco. — ―Vinho branco‖? Já sei... Você também padeceu do vício do alcoolismo? — Não, seu doutô, nunca bebi, não. É qui eu ia atravessá uma avenida, mais na hora vinho um caminhão grande e vermeio e eu consegui corrê dele, mais aí, no outro lado da rua, vinho um branco e me pêgo de jeito. Morri foi na hora. — Entendi. Mas, voltando ao ―Caga Sangue‖... Foi onde você nasceu? 17 — Não, seu doutô... Caga Sangue era nome do bolicho que eu trabaiava à noite, quando acabava o serviço no roçado. É que a comida lá não era boa, não, sinhô. Depois do armoço, o pessoal cagava era sangue. — Tudo bem, meu filho, tudo bem. Mas vamos ao que interessa. Agora não existe mais Céu e Inferno. Na verdade, e que ninguém nos ouça, continua tudo a mesma coisa, só trocaram os nomes e colocaram uns anglicanismos a mais. E para saber se você vai para o Paraíso ou para o Inferno, preciso que você me responda umas coisas. Tudo bem? — Sim, sinhô. — Vamos lá. No mês de junho de 2013, onde o senhor estava? — Vixi... achu qui tava com a mia famía, trabaiando no roçado. — O senhor não participou das Manifestações de Junho? — ―Mani‖ o quê? — MANIFESTAÇÕES DE JUNHO! — Num sei qui foi isso não, sinhô. Foi festa junina, foi? — Não foi festa, não. O senhor então não foi às ruas pedir por melhores salários, justiça e emprego? — Não, sinhô. — Não fez cartazes usando cartolina, purpurina, cola quente e canetinha hidrocor? — Arre... Num sei qui é isso, não. Passei a vida intêra trabaiando no roçado e cuidano do bicharedo. — Também não postou fotos do senhor e da sua família trabalhando na roça para os seus amigos curtirem no Facebook? — Não, sinhô. — Para terminar, o senhor assistia novelas da TV Globo? — Todo dia... era só u qui tinha par fazê, uai. — Tudo bem, obrigado. O senhor pode se dirigir àquela porta vermelha ali do lado. Terminando de preencher o último campo do formulário, São Pedro pega o papel e o coloca na gaveta direita. A Bunda Vou contar-lhes um segredo. Ninguém o sabe, mas há um equívoco nas Sagradas Escri- turas. Sim, amigo dizimista, São João, o evangelista, equivocou-se. E feio. No principio não era o Verbo. Não, senhor. No princípio era a Bunda. Sim, a Bunda. Bun-da. E a Bunda estava com Deus, e a Bunda era Deus. Bunda e Deus eram como o Uno indivisível de Parmênides. Todas as coisas foram feitas para Ela (a Bunda), e sem Ela nada do que foi feito se fez. Nela estava a vida, e a vida era a obsessão dos homens. A Bunda vivia solitária; muito tempo se passou sem que a Bunda encontrasse uma ocu- pação. Ela sentia-se sozinha e cansada de tanta solidão. Percorria a pé, infinitas distâncias pelo caos da Terra. E cansava-se demasiadamente. Resolveu, então, comprar uma motocicleta; mas antes decidiu consultar um oráculo para saber se fazia um bom negócio. O oráculo lhe fez uma revelação que Ela terminou por não compreender bem e resolveu deixar para lá. Vale lembrar que a motocicleta percorria longas distâncias e fora inventada pelos homens — seus descendentes diretos e diletos. No dia em que a Bunda sentou-se no confortável e acolchoado banco da motocicleta, ela amou os homens e o seu divino poder criativo. A partir desse dia, a Bunda renegou a Deus, e entregou-se de corpo e alma à motocicle- ta. Vendo que outras bundas andavam a pé, a Bunda lembrou-se da sua antiga condição de andarilha, e comoveu-se com tamanha infelicidade alheia. Prometeu a si mesma que, a partir 18 daquele dia, iria colocar na garupa da sua motocicleta, todas as bundas que encontrasse andando a pé pelo caos da Terra. E desse em dia em diante, muitas bundas sentaram na garupa da sua motocicleta: bunda da mãe, bunda do pai, bunda da tia, bunda do primo, bunda do amigo, bunda da sobrinha, bunda da amiga e etc. E nunca, em momento algum, a motocicleta caiu com ambas as bundas na garupa. Hou- ve um dia, porém, que a Bunda resolveu dar carona para uma bunda, magra e branca, que ia lépida pela calçada. Vendo aquela cena, a Bunda sentiu um poderoso influxo de sangue a correr- lhe pelas sagradas nádegas. Seu coração palpitou. Suas vistas embaçaram. Mas ela não sabia explicar o que era aquilo. E se você chutou: ―É amor!‖, acertou na mosca. A Bunda acelerou a motocicleta, alcançou a bunda que já ia distante e ofereceu-lhe a desejada carona. A bunda aquiesceu, trepou na garupa da motocicleta e se segurou na Bunda fortemente. Desnecessário será dizer que esta última já trazia o coração na boca de tanta emo- ção. O destino da bunda, que me esqueci de dizer, era Santa Teresa, o charmoso bairro dos fina- dos bondes elétricos. Pilotando pelas tortuosas ruas do bairro, a Bunda descuidou os trilhos que estavam des- nivelados graças ao intenso calor diurno, perdeu o controle do guidão da motocicleta e esta de- sabou pesadamente. Bunda e bunda rolaram pelo chão abaixo como duas mangas maduras. Felizmente, nada de grave aconteceu, apenas algumas leves escoriações. Mas no momento da queda, a Bunda compreendeu, de súbito, a revelação que o oráculo lhe fizera momentos antes da compra da motocicleta. E a revelação era a seguinte: ―Nos trilhos dessa vida fajuta, muitas bundas passarão pela tua garupa, mas aquela que lhe tirar o controle do guidão, essa será a dona do teu coração‖. No dia seguinte ao da queda, a Bunda vendeu a motocicleta. Daí em diante, a felicidade preencheu, com extrema abundância, a vida da Bunda e bunda. Tiveram um lindo filho, e depois uma graciosa filhinha. Ao filho chamaram-lhe ―Calça‖, e a filha, ―Na bundinha‖. Crônica de Uma Morte Anunciada Passando pela serra Grajaú-Jacarepaguá hoje cedo, lembrei, tardiamente, que dia 27 de outubro passado, completou-se um ano do meu famigerado acidente de moto. O velocímetro marcava os 95km/h, quando resolvi, num átimo de insanidade, olhar para a direita e ver um menino soltando pipa por cima de um barraco como se fosse um caçador de pipas carioca. Quando tornei a olhar para frente e dei por mim, estava largado e abandonado no chão como a Moema de Victor Meirelles. Não vi que um ônibus tinha parado abruptamente fora do ponto para descer um passa- geiro e que, atrás dele, uma Fiat Uno freou bruscamente para evitar a colisão. O único que não evitou a colisão fui eu; e paguei-a com a distração. A frenagem da moto não impediu que eu me lançasse para a traseira da Fiat Uno como um obstinado cristão se lançava para boca de um esfomeado leão no antigo Coliseu romano. E logo se sucedeu o que acontece com todos os acidentes urbanos: a sádica e invencível curiosidade em torno da desgraça alheia. A quantidade de gente que se aglomerou à minha volta era superior em número e gênero das que se aglomeram em volta de uma atriz pornô num baile de carnaval dum filme qualquer das Brasileirinhas. Foi uma questão de minutos para a ambulância chegar e me levar ao setor de emergên- cia do Hospital Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca — a Miami Carioca. Para quem nunca este- ve num lugar como esse, uma emergência de hospital público, é só imaginar um posto de aten- 19 dimento do antigo exército persa de Xerxes, a receber os corpos feridos, mutilados e sodomiza- dos pelos 300 espartanos na batalha das Termópilas. O sofrimento e descaso tomam corpo ali, porque a alma já se encontra há muito distan- te. Lembro que ao meu lado estava um velho, estirado na maca, com uma camisa do fla- mengo e totalmente embriagado. Havia um furo na cabeça, ensanguentada, causado por uma furadeira Bosch. O filho tinha sido o autor do ato; o motivo eu, até hoje, não sei. E foram horas a esperar até o médico chegar, verificar minha lesão e dizer: — Você teve fratura exposta na perna direita. A tíbia está para fora. Vou precisar colocar no lugar para depois operar.‖ – e terminou dizendo – ―vai doer um pouco...‖. "Vai doer um pouco". Confesso que essa frase pareceu para mim tão falsa quanto uma fotografia com um espí- rito à mostra. Aquilo que senti não foi dor, foi a certeza de que Augusto dos Anjos estava fora da razão quando escreveu esses versos do poema Hino à Dor: Dor, saúde dos seres que se fanam Riqueza da alma, psíquico tesouro Alegria das glândulas do choro De onde todas as lágrimas emanam. O grito que dei não deu conta da dor. Só serviu para uma senhora, já mal-tratada pela vida, próxima a mim dizer: ―Você nunca ouviu o ditado, meu filho, de que homem não chora? Eu, hein!‖ Foram seis dias naquele hospital que mais pareceram seis meses. Havia momentos na enfermaria que a quantidade de médicos e residentes à minha volta me faziam sentir como se fosse um modelo de Rembrandt num de seus quadros sobre as lições de anatomia. No lugar do enforcado Aris Kindt, era eu, e no lugar de sua desproporcional mão esquerda, era a minha perna fraturada com um fixador de aço externo. Passaram-se os meses e eu voltei a andar sem as muletas, tal qual um evangélico curado nos cultos da Igreja Mundial do Poder de Deus. Hoje não ando mais de moto. Mas só porque me roubaram em plena praia da Barra da Tijuca. Mas isso é outra história. Movimento das Esquinas Revolucionárias da Direita Avançada (M.E.R.D.A) — Opa! Com licença? — Opa, fala aí! — Então... é aqui que vai ser a Revolução? — Como? — O evento do Facebook... ―A Revolução Não Será Postada – Sexta-feira/18:00‖ — Ahh... Então, esse evento aí cara é naquela outra esquina ali ó. Aqui vai ser o ―Ato do Hiato – Contra a Reforma Ortográfica que quer abolir o hiato‖. — Beleza, obrigado hein. *** — Com licença? — Fala, camarada! — Então... é aqui que vai ser ―A Revolução Não Se...‖ — Putz! Você também não recebeu o e-mail, cara? — E-mail? Como assim? — A gente teve que cancelar a Revolução porque o animal do Tonhão esqueceu de pe- gar a SoundBorogosVolkaine Zoom 10.000x que estava na casa da mãe dele, no Flamengo. — Poxa vida... e agora? 20 — Ah cara, agora não sei! Só sei que sem a máquina fotográfica dele não vai rolar. Mas relaxa que a gente te manda o e-mail com a nova data. — Valeu, então! Fulano e Beltrana Era uma vez um Fulano que vivia num castelo. Fulano era uma pessoa razoavelmente bonita, inteligente e sensível para os (débeis) padrões da época e do reino em que vivia. Não tinha família. Vivia sozinho no mundo, tendo somente a companhia de alguns colegas, os quais, erro- neamente, ele classificava como amigos. E, se assim o fazia, era porque ele ainda não tivera contato com a verdadeira amizade, ou então, como não a conhecia de fato, errava ele na classifi- cação de sua real medida e valor; acabava comprando, como se diz por aí, gato por lebre. Sua vida ia passando como passava a da maioria das gentes. Um dia, Fulano conheceu Beltrana. Beltrana também era uma pessoa bonita, inteligente e sensível. Mas Beltrana tinha algo a mais que Fulano. Beltrana era artista. Sim, artista. E o que é um artista? Ora, artista é aquele que possui uma arte e vive dela. E o que é a arte? Ora, a arte é a capacidade que alguém tem de fazer com que as outras pessoas, artistas ou não, o reverenciem por conta da emoção que sentem quando são tocados pela sua arte, seja ela qual for. Se a explicação de arte é aqui vaga e imprecisa, é porque assim também o era seu conceito, vigente naquele tempo remoto. Bem, Fulano e Beltrana se apaixonaram perdidamente. Um completava no outro a parte que lhe faltava por natureza, e, assim sendo, viveram muitos dias de puro êxtase e de plena feli- cidade marital. No início, Fulano não era muito afeito à arte de Beltrana; via que ela realmente possuía um talento, e, justiça seja feita, também ele era de alguma forma comovido pela arte de Beltra- na; mas aquela arte não era semelhante à arte de outras pessoas que Fulano idolatrara na adoles- cência e naquele tempo presente. De qualquer maneira, Fulano aprendeu a desenvolver uma certa, digamos, simpatia por aquele tipo de arte e tentava, da maneira que podia, apoiar e promover Beltrana, que já era co- nhecida e apreciada por muitas pessoas. Beltrana ficava realmente agradecida por tal iniciativa; ora porque sabia que a sua arte não era tida em tão alta conta por Fulano, ora porque via naquilo um sincero gesto de amor e carinho para com a sua pessoa. Com o passar do tempo, os colegas de Fulano passaram a ser os de Beltrana e vice- versa. Alguns colegas de Fulano, que ficaram muito vislumbrados pela arte de Beltrana, come- çaram a ver ali uma grande oportunidade de se ter uma amizade com um artista de verdade. Afinal de contas, ninguém quer ser só amigo de gente comum. Nem o Fulano queria, enquanto comum que era. E algumas colegas de Beltrana, invejadas que estavam com a recente conquista amorosa da colega, temiam perdê-la para o Fulano. Tudo ia bem, até quando as diferenças que Fulano e Beltrana possuíam, enquanto seres distintos que eram, começaram a aflorar e vicejar de tal maneira que a convivência deles foi sendo afetada e seriamente prejudicada por tais especificidades de espírito. Constataram, então, que a melhor saída era a separação de corpos, uma vez que a sepa- ração de almas já se efetuara há tempos, desde que tiveram início as pelejas sentimentais. Beltrana, um tempo depois, não se conformando com a separação, seja pelo amor que nutria por Fulano, seja pela sua peculiar disposição de caráter, começou a fazer, inconsciente- mente, uso da influência de sua arte para disseminar, entre alguns ingênuos colegas de Fulano, algumas inverdades acerca deste último. Quando ficou ciente de tal fato, Fulano se ressentiu por dois únicos motivos; um: como inverdades que eram, não sabia ele por que tais coisas eram ditas a seu respeito; dois: no mo- 21 mento em que eram ditas, ele não estava no local para se defender. Fulano não conseguia enten- der como algumas pessoas davam atenção para tais coisas. Muito tempo se passou sem que Fulano tivesse encontrado uma solução para esse enig- ma, cuja complexidade se assemelhava ao da Esfinge tebana. Fulano, então, começou a ter inve- ja daqueles que possuíam a arte. Com isso em mente, ele mandou esculpir uma frase em uma enorme tábua de madeira, que logo em seguida foi afixada no pórtico de seu castelo e lida, diariamente, pelas pessoas que ali passavam. A frase dizia assim: ―Bem-aventurada seja a Arte, porque se do homem ela subtrai o insosso lado humano, é para adicionar-lhe o estupendo lado divino‖. Carta a Johnny Winter ―Você deve ter ouvido muitas vezes aquela velha piada ‗Lá vem o cabeça de cotonete perturbar a gente com a sua guitarra‘. Sim, você nasceu com a alvura da cor, meu caro. Um albino no meio do árido cenário texano. Um lugar tomado de botas, cobras e canyons. Quiseram as forças da vida que você fosse um guitarrista de blues onde a predominân- cia das pessoas nesse meio eram as de cor justamente opostas à sua. E seja lá o que alguns hipó- critas dissessem, no fundo, bem lá no fundo, você cagava pra isso. E sabia que eles, os Muddy Waters, os Willie Dixons, os B.B Kings da vida, cagariam também. Eles, por quem você sempre tivera o maior fascínio e respeito, queriam saber é se você tinha garrafa vazia pra vender. E vocês as vendeu. Sempre se tratou da música; você e eles sabi- am disso. Eu nunca vou esquecer aquele 20/05/2010 que te vi no finado Canecão, bem na minha frente. Você mal se aguentava em pé. Fez o show inteiro sentado, entravado numa cadeira. E como você tocou, meu Deus! Graças a você eu poderei dizer para os meu netos que vi, com esses olhos que a terra há de comer, um remanescente de Woodstock tocar Mean Town Blues. Bem ali na minha frente. Vá em paz meu, caro. Junte-se aos seus ídolos de blues da infância espalhados por al- guns dos infernais círculos, amplifiquem suas guitarras e façam as trevas virem abaixo. Obriga- do.‖ A Louca de Palestra Há muito tempo, li na revista Piauí um artigo que tratava do ―louco de palestra‖. É aquele sujeito que, com uma formalidade digna de primeiro encontro, pede a palavra durante uma palestra e fala, no mínimo, por meia hora. Quando li o artigo, achei que fosse invenção da cabeça do cronista. Infelizmente, cons- tatei essa semana que o louco de palestra realmente existe. Na verdade, não era um louco, mas sim louca. Tudo começou quando fui assistir a um minicurso de um amigo meu na UERJ que está fazendo doutorado em Minas Gerais. O tema da palestra era ―Nietzsche e a ciência‖, especiali- dade desse meu amigo. Entrei na sala, sentei-me e comecei a ouvir. Tudo ia maravilhosamente bem, até o mo- mento em que uma mulher pediu a palavra. E aí começa a minha descida ao inferno; e o pior, eu estava sozinho, sem ninguém a me conduzir pela mão. A louca começou ―corrigindo‖ meu amigo quanto à classificação das doutrinas trans- cendentais da Crítica da Razão Pura de Kant. Eu confesso, sem o menor pudor, que conheço da filosofia de Kant o mesmo que um ator pornô brasileiro conhece de artes cênicas. E ainda que eu fosse um ótimo exegeta da filosofia kantiana, o que não era o caso da nossa louca, ainda assim, eu permaneceria calado. Afinal, estava ali para ouvir, não para falar. 22 Graças à intervenção dos deuses, meu amigo conseguiu retomar a palavra e tudo voltou ao normal. Mas foi só por vinte minutos. Logo em seguida, a nossa Maria I da Filosofia pediu novamente a palavra. Se nesse momento estivesse sentado ao meu lado um estudante de ascendência nipôni- ca, eu juro que lhe perguntaria se não seria o caso dele me emprestar um punhal para eu cometer o haraquiri. Fechei os olhos então e esperei. E ela disse assim: — E eu nem acho que Kant tenha sido um bom lógico por causa disso, disso, daquilo e daquilo outro... Não aguentei. Peguei minha mochila, levantei e fui embora. E se meu amigo ler isto, que, por favor, me perdoe, mas naquele momento eu tive que seguir meu imperativo categórico. Falocentrismo Num motel da zona norte no Rio de Janeiro. Um casal discute. — Que isso???? — Como assim "que isso"? — Você só pode tá me gozando se acha que vai me comer com um pau desses, né, gato? Se é que é possível alguém gozar com isso aí... — Ué... nunca ninguém reclamou. — E reclamar adianta? Reclamar vai fazer esse graveto de ponta roxa se transformar num baobá africano? — Mas sempre me disseram que tamanho não era documento, poxa. — Conversa de gente hipócrita. Tamanho foi, é e sempre será documento. E vem cá, isso aí é o máximo que ele cresce, é? — Eu acho que sim. — Puta que pariu... tanta luta, tanta manifestação nas ruas, tanto progresso nas leis para eu chegar, cheia de tesão para dar, e me deparar com uma derrota dessas. Um urubu também pousou na minha sorte! — Mas me dá uma chance pelo menos, né? Você nunca ouviu aquele ditado? — Que ditado, menino? — Que os melhores perfumes estão nos menores frascos? — Meu filho, o perfume que tinha aí já secou faz tempo. Só ficou aquele canudinho do spray. — Mas e agora, o que a gente faz? — ―O que a gente faz‖, não, o que você vai fazer. Porque eu estou aqui molhadinha e cheia de vontade. Se vira, liga para recepção e pede desconto. — ―Desconto‖? — Claro! Não é justo que eu pague o mesmo valor que as outras; elas estão gozando e tendo prazer com paus de verdade. E o meu prazer aqui, pelo visto, vai ser pela metade, então eu quero pagar a metade do preço também. — Eu não sabia que para você isso era tão importante assim... — Ah, você não sabia? Então deixa eu te falar uma coisa. Não é você que me come, sou eu que te como. — Só se for na sua cabeça, porque eu só ouço dizer que é o homem que come a mulher. — Se diz isso pelo mesmo motivo do nosso planeta ser chamado de planeta Terra, em- bora ele tenha dois terços da sua superfície coberta por água; ou seja, pura hipocrisia. O fato é que sou eu mesma que ―como‖ você. A minha genitália é uma espécie de nebulosa onde tudo que entra é imediatamente sugado para dentro. E quanto maior e mais volumoso for o objeto que entrar (guardadas as devidas proporções, claro!), maior também será o meu prazer e o meu orgasmo. — Ah, agora entendi. 23 — Pois é! Agora me diga você, o que há aí para ser sugado, gato? — É, pensando por esse lado, não tem nada mesmo não... O Mais do Mesmo Pouco mais de uma semana aqui na roça, e vejo através do Facebook que a vida conti- nua dando provas de que o velho Schopenhauer estava mesmo certo: tudo oscila entre o tédio e a ansiedade. Casais que se casam, casais que se separam (para depois se casarem de novo), gente que morre, gente que nasce, cabelos que se alisam, cabelos que se encrespam, gordos que emagre- cem, magros que engordam, homens que dão a bunda, bundas que não dão nem para homens e assim vai. Chegasse o Cristo agora para o Juízo Final e Ele acharia que chegou dez minutos atra- sado, tamanha a desordem que aqui está. E como a palavra de ordem é água, eu descobri que aqui na roça sobra água. É água da cachoeira, água que cai do céu e ainda tem a do poço artesiano — que eu vi ser perfurado com esses olhos que a Terra há de não comer, porque até ela virou vegana e clama pela libertação animal, a minha, no caso. A água do poço artesiano que garante o meu banho não me causa maiores preocupações sociais. Já a água nas cidades, bem, essa continua tal qual o humor de alguns amigos meus, se- cando mais rápido do que trepada de galo com galinha (ou galo com galo, por que não?). E por falar em galo e galinha, a poligamia continua imperando na vida dos pobres gali- náceos. São, no mínimo, seis galinhas para cada galo. E se engana quem pensa que as galinhas se incomodam com isso. Não fazem passeata e nem posam para fotos mostrando suas penas excedentes, não, nada disso; elas exigem apenas uma coisa: o inalienável direito de poderem dar as suas ciscadas alheias sem pintos e galos que as incomodem. É como diz o meu ouricuri paterno: "Não liga não, filho, isso aí é a natura naturans". Oração do Bacalhau Nosso Bacalhau nosso que estais no forno, Aportuguesado seja o Vosso azeite Venha a nós o Vosso pedaço Seja feita a Vossa rabanada, Na mais pura e alva substância do leite O presente nosso de cada dia nos dai hoje Perdoai a nossa fome, Assim como nós perdoamos A quem nos tenha roubado o lugar na fila da ceia E não nos deixeis cair na indigestão, Mas livrai-nos do sal, Amém! Entrevista de Mestrado Enquanto isso, durante uma entrevista para o processo de seleção de mestrado numa universidade pública qualquer. — Bom dia. — Bom dia, professor Argemiro. — Por favor, enquanto você estiver aqui, me chame de senhor, tudo bem? — Tudo bem, me perdoe, mas eu pensei que... 24 — Quem é o seu orientador, meu filho? — É o professor José da Silva dos Santos, o Zezo. — ―Zezo‖? — É... É o professor de filosofia oriental. — Ah sim, o professor-substituto. — Se ele é substituto eu não sei, só sei que ele deu no semestre passado o pensamento de Pitágoras e Heráclito, e todo aquele lance da filosofia pré-socrática; que inclusive ele diz ser um nome pejorativo que os acadêmicos colocaram e... — Estou vendo aqui que você levou quase seis anos para se formar. É isso mesmo? — É sim... É que... Eu moro em Nova Iguaçu, trabalho em Japeri e venho de trem para a universidade, direto do trabalho... Só posso fazer matéria à noite. Por isso levei tanto temp... — Ah... Você pega trem, é? — Pego sim, senhor, todo dia. Inclusive, o trem hoje quebrou na estação de São Fran- cisco Xavier, teve que descer todo mundo e andar a pé, pelos trilhos, até o Maracanã. O senhor acredita numa coisa dessas? — Você fala inglês, não fala? A nota da sua prova de língua estrangeira foi a maior de todas. Que curso você fez, hein? — Eu nunca fiz curso, não, senhor. Queira ter estudado na Cultura ou no IBEU, mas o dinheiro sempre foi pouco. Aprendi sozinho mesmo, com aqueles fascículos de jornal que vi- nham todo domingo no jornal Extra. — Tudo bem, tudo bem. E vem cá, você sabe soletrar o nome daquele filósofo que es- creveu O Mundo Como Vontade e Representação em 1818? — Humm... Acho que é: X – Ô – P – E – N... — Já está bom. E qual é o nome daquele filósofo boiola que tinha um caso com um psicanalista, escreveu O que é a Filosofia? e depois se suicidou do alto de um prédio? — Esse eu sei! D – E – L – Ê – S – I. Isso, Jiles Delêsi. — Tudo bem, já está bom também. Você tem filhos? — Tenho sim, tenho quatro... Bem, na verdade... Com a minha atual esposa, a Guilher- minda, são só três... Mas tenho um filho que é do primeiro casamento, o Michael Jackson. — Entendi... Entendi. — Tem problema isso? — Não... De maneira nenhuma. E o senhor já fez algum evento na faculdade para que os professores do seu departamento pudessem falar e ser soberbamente aplaudidos? — Nunca fiz nada, não, senhor... Eu só ficava estudando na biblioteca mesmo. — Já ajudou algum professor a carregar pastas ou livros? — Não, senhor. Eh... Desculpe, mas o senhor não gostaria de saber o título, ou do que se trata o meu projeto de mestrado? — Não precisa... Você já foi preso por motivos políticos ou abraçou a Lagoa vestido de branco? — Deus me livre ficar preso! E só vou à Lagoa no final do ano, para ver a árvore de Natal com as crianças. — O.K. O senhor já pode ir. A entrevista acabou. Quando o senhor sair, pode chamar o próximo candidato, por favor. *** — Olá, boa tarde! Seu nome e o título do seu projeto, por favor? — Meu nome é Carla Joaquina Bourbon Castelo Branco de Albuquerque von Pretzel. E o nome do meu projeto de mestrado é: UMA ANÁLISE HERMENÊUTICO- INTERPRETATIVA SOBRE O ―DASEIN‖ COMO MODO DE SER SINGULAR DO ―SEIN ZUM TODE‖ ENQUANTO O PERGUNTAR DA PERGUNTA E O RESPONDER DA RES- POSTA, DE INÍCIO, E NA MAIORIA DAS VEZES. 25 Patuscadas Era no tempo do Rei. Explico-me. O Rei Pelé ainda jogava futebol vestindo a amarelinha. Isto aconteceu pelos idos de 1970. Foi num passado distante. Lembro-me bem do ocorrido. Meu avô Manuel, de origem portuguesa, já havia partido para o Céu, deixando viúva cá na Ter- ra a minha avó Maria e órfã a sua considerável prole. O local era uma festa das quais a minha família era pródiga em dar. Muita cerveja, muita música ruim e muita sacanagem sendo dita entre primos e primas, mas sem o menor compromisso ético e moral de ser praticada posterior- mente. E digo isso com pesar, porque a quantidade de primas gostosas que eu tinha ao meu re- dor era de fazer inveja a um Hugh Hefner. Bem, como em qualquer confraternização de família: finda a cerveja, finda a festa. No final de tudo, da festa só restaram eu e meu primo Virgílio, que, se não era português, tinha ao menos a mesma voracidade sexual que os nossos antigos patrícios. Meu primo Virgílio (uns dez anos mais velho que eu) se assemelhava a D. Pedro I: queria forni- car com a metade do país; com a outra metade, dizia ele, já havia obtido êxito. Não era dotado de extrema beleza, mas tinha uma lábia mui eficaz. Sempre me espelhei nele. E, pederastia à parte, meu primo era para mim o que Aquiles era para o jovem Pátroclo, um modelo e guia. Mas voltemos à festa. Depois de todos terem ido embora, confabulávamos, meu primo e eu, sobre qual seria o nosso próximo passo. Recordo-me que, à época, tinha eu dezoito anos, encontrava-me na mesma situ- ação que a de um solitário leão numa savana africana: carente de carinho e afeto, para não dizer outra coisa. Sabedor desse fato, não sobrou outra alternativa para o meu primo a não ser me levar para o oásis das classes masculinas e menos abastadas do Rio de Janeiro: a Vila Mimosa, na hoje ex- tinta Praça da Bandeira. Para quem não conheceu a Vila Mimosa, ou V.M. para os íntimos e assíduos, basta imaginar uma cena qualquer do sétimo círculo do Inferno de Dante, trocando apenas os condenados florentinos por prostitutas cariocas, e a comparação será exata e imediata. Sim, quando se tem pouca idade, meus caros, o nível de exigência por moças é tão baixo quanto um hidrante de rua. Mas se você, além de não ter conhecido a V.M, e também não ter lido a obra do italiano narigudo, pense então numa vila, com bares ao invés de casas, onde as descen- dentes de Maria Madalena estão por todos os lados dispostas a negociar os sublimes prazeres da carne. Um parêntesis. Cabe lembrar que chegamos lá na V.M de carro. Cabe lembrar também que, para isso, o meu primo se apropriou, sorrateiramente, do carro do meu tio Ferreira, pai dele. At last but not least, cabe lembrar que a documentação do carro, a carteira de habilitação do meu primo e a sua respectiva sobriedade estavam todas vencidas; esta última facilmente percebida, haja vista a quantidade de bebidas e congêneres alucinógenos que ele havia ingerido na festa. Infelizmente, eu só fui tomar ciência desses singulares fatos no final da história que aqui tencio- no contar-vos. Bem, lá chegando, seguimos por alguns bares onde nossas anfitriãs nos acenavam através de gestos convidativos para a prática do coito. Entramos num bar, escolhemos uma mesa, senta- mos, pedimos uma cerveja e esperamos. A cerveja mal havia sido posta sobre a mesa, e logo veio uma gorda meretriz a nos perguntar se poderia sentar ali conosco. Meu primo, então, profe- riu um ―NÃO‖ mais seco que o ar de Brasília, e ordenou que ela nos deixasse em paz. A mere- triz, por sua obesa vez, mandou meu primo ir à merda. Confesso que até hoje nunca me esqueci desta singular cena. Enquanto o cachalote em forma humana se distanciava, meu primo falou para mim: — Leodegário, é só escolher a que você quer e correr para o abraço! Desnecessário será dizer que, mal ele havia terminado a frase e eu já estava de mãos dadas com uma mulher, dizendo para ele: - É esta aqui, tá!?! Fui para o quarto com ela e confesso que fui feliz por 29 minutos e 55 segundos. 26 Não descreverei aqui os detalhes por atenção aos sagrados direitos da família. Quando volta- mos, meu primo já estava pagando a conta da cerveja — e a do coito. O alcoólatra conseguiu beber seis cervejas em 30 minutos. Meu primo já estava chegando do outro lado da rua quando viu a minha Messalina carioca per- guntar se estávamos de carro e se poderíamos dar uma carona para ela. Ao ouvir isso, meu primo volveu sobre os calcanhares e lançou sobre nós um sorriso digno de quem acha uma nota de cinquenta reais na rua. Entramos no carro e seguimos pela Praça da Bandeira. Ele ia à frente, dirigindo, e eu ia ao ban- co de trás fazendo companhia para a minha recém-amiga. Passados quinze minutos, ouvi-o di- zer: — Fodeu! Achando que ele fazia uma pergunta a mim, respondi: — E muito! Mas infelizmente, o ―fodeu‖ dele tinha outro sentido. À nossa frente havia uma blitz policial. E aqui, tarado leitor, acabava o meu sonho. Os policiais mandaram-no encostar o carro e pediram para que todos saíssem portando os devidos documen- tos. Com os documentos em mãos, o policial travou o seguinte diálogo com meu primo (com- pletamente embriagado): — Senhor Virgílio, a sua carteira de habilitação e o documento do seu carro encontram-se ven- cidos. — Pois é. — ―Pois é‖? — É, ué... O senhor não está vendo aí que os documentos estão vencidos? — O senhor está alcoolizado, Sr. Virgílio? — Graças a Deus! Dando as costas para o meu ébrio primo, o policial gritou em direção a um grupo de policias que estavam um pouco afastados. — Sargento Peçanha! O senhor pode vir aqui, por favor?! Chega o Sgt. Peçanha. — Pois não, cabo Silva? — Esse senhor aqui está completamente embriagado e com os documentos vencidos. — Eu não acredito. Meu primo, então, olhando para o Sgt. Peçanha, exclama. — Pode acreditar seu Peçanha, pode acreditar. Nesse momento, o sargento Peçanha ordenou que fôssemos algemados e levados para a 18ª Delegacia Policial; menos a nossa amiga, que foi prontamente liberada, assim que os polici- ais constataram a sua incontestável inocência. Chegamos à delegacia, nos colocaram numa cela e ficamos lá esperando até a hora em que meu tio Ferreira chegou e pagou duzentos reais pela nossa liberdade. Memórias de um Universiotário Meu fim está próximo. O arrependimento se alastra por todo meu corpo tomando a forma de uma incurável doença. É mister agora que eu faça o relato das minhas memórias antes de ir habitar, eternamen- te, o Jardim das Delícias. E as minhas memórias só repousam em cima de um fato: a famigerada viagem universi- tária que empreendi juntos dos meus argonautas, digo, colegas da faculdade de Filosofia, à mi- serável cidade de Picos, no Piauí, para um encontro de estudantes no inesquecível ano de 1995. E lá se vão 30 anos da minha macambúzia existência. Mil poetas libertinos do séc. XVII não dariam conta dos desejos e taras a que fomos submetidos naquela transcendental e alucinógena viagem. Bem, chega de mais delongas. 27 Vamos a ela então. René Descartes inicia o seu Discurso do Método dizendo que ―inexiste no mundo coisa bem mais distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acreditar ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem‖. Pobre Descartes. Tivesse o pensador (e maconheiro) francês viajado conosco, e ele teria se arrependido de ter escrito tamanha estultice. O bom senso foi a primeira coisa que atiramos fora pela janela de emergência do ônibus. A segunda foi o pudor. A nefanda viagem durou três dias dentro daquele ônibus com ar condicionado, mas que foi se tornando cada vez mais putrefato com o decorrer do tempo. Impossível será descrever aqui tudo o que se passou naquele antro de perdição — a começar pela quantidade de drogas lá consumida. É verdade. A quantidade de drogas que os moradores da cracolândia mais abjeta do Rio de Janeiro consomem em três anos, nós o fizemos em apenas três dias. Pessoas há que até hoje não voltaram da onda, como o Calixto, por exem- plo, que continua chapado até a presente data. Se alguém dissesse que aquele ônibus mais parecia um set de filme pornô ambulante, não estaria mentindo. As obscenidades lá praticadas fariam enrubescer todo o elenco do filme Calígula do Tinto Brass. Parecíamos uma Babilônia da era pós-moderna a correr pelados uns atrás dos outros, sempre em busca do orgasmo perdido. Nem o motorista escapou. Lembro da minha amiga Lana, nua, pedindo ao motorista que lhe deixasse segurar o câmbio da marcha enquanto ele estacionava o ônibus num posto de gasolina, na localidade de Pau Grande, na regi- ão metropolitana do Rio. O motorista era pastor da renomada igreja Sagrada Coroa de Espinhos de Nosso Se- nhor, Salvador e Rei Jesus Cristo dos Primeiros aos Últimos Dias. O pobre homem ficou horro- rizado com o pedido da Lana. Saiu do ônibus correndo e não voltou. Sorte a nossa que o Paulão sabia dirigir. Não bastassem as drogas e as sacanagens, a nossa sanha pelo álcool e os seus derivados era infinita. Nós éramos iguais ao nosso ídolo da década de 90, o Marcelo D2. Também está- vamos em busca da batida perfeita; da batida perfeita de vodka com haxixe, de pimenta com energético e de cajá com absinto. O gosto pelo álcool era tanto, que na parada que fizemos, o Tito quisera encher as garrafas d´água com gasolina, na iminência de que a cerveja comprada no posto acabasse antes da próxima parada. Lembro-me também que a sacanagem no fundo do ônibus não era menor. O insano do Jonas — que era o mais conservador de todos nós e morreu meses depois num acidente de mo- tocicleta —, roubou um extintor de incêndio do posto e esperou a noite chegar. Quando a situa- ção no fundo do ônibus atingia os píncaros da devassidão, ele disparou aquele pó químico em cima de todos nós, esperando apagar o fogo daquela turba libidinosa. Na manhã do dia seguinte, metade dos infelizes estudantes ainda expectoravam os últi- mos resquícios daquela nociva substância química, usada somente para combater terríveis in- cêndios. Lembro que no dia em que o pobre Jonas morreu, ninguém foi ao enterro dele, tama- nho era o ódio que ainda nutriam por conta do incidente com o extintor de incêndios. Agora que tudo passou, meu corpo sente o inevitável desenlace que se aproxima. Para onde irei? Será que tudo acaba aqui? Será que a morte é termo, ou passagem? Confesso que desconheço o meu futuro. Se a minha consciência se aniquilar, rogo a Deus que tenha piedade dos que aqui ficarão. Perdoe-os Pai, eles também não sabem o que fa- zem, nem o que fizeram. 28 Sono Dogmático O diálogo abaixo realmente ocorreu, só que em forma de sonho, enquanto eu tirava um cochilo, sentado num banco do ônibus 711, com um livro nas mãos. *** — Bom dia, abençoado. — Bom dia. — Chamo-me Mateus, e tenho 76 anos. — Prazer, Douglas, e tenho 33. — Você já falou com Deus hoje, Douglas? — Oi? — Se você já falou com Deus hoje? — Eu estava falando com Ele antes do senhor se sentar aí. — Aleluia, irmão! O abençoado então me emprestaria a sua Bíblia para eu ler um versí- culo? — Claro, empresto sim. Eu entrego o livro para ele. — Isso é alguma piada, rapaz? — Como assim? — Oras, você não me disse que estava falando com Deus antes de eu me sentar ao seu lado? — E estava mesmo, ué... — Mas isso aqui não é a Bíblia, seu profanador! — Pode não ser para o senhor, para mim é a Bíblia sim. Ele levanta e sai me xingando. O livro que eu estava lendo era o Tratado da Natureza Humana, do Hume. *** Moral da história: Não deis o que é sagrado aos cães, nem jogueis aos porcos as vossas pérolas, para que não as pisoteiem e, voltando-se, vos façam em pedaços. Outras Crônicas Desculpem-me os que votam pelas selfies, mas a cena merece ser contada. Eram duas da madrugada. No meu MP3 tocava o segundo (são três) movimento da ―Appassio- nata‖ do Beethoven, andante com moto, andamento com comoção. Beethoven, só mesmo al- guém que tenha ―abelha‖ no nome para fazer música como ele fez. Eu então viajava duplamen- te. No piano e no ônibus, onde eu estava. O ônibus ia de Amambai para Campo Grande. Ambas as cidades ficam no Mato Grosso do Sul, estado autossuficiente em maconha e adesivos ―Reaja Brasil‖. A cidade de Amambai fica a 91 km de distância do Paraguai. Sendo assim, é comum levarem na bagagem, além de Playstations, tablets e outras bugigangas, uns tabletes de câ- nhamo. Acordei da viagem sonora quando vi um policial abordando um jovem casal, com bebê no colo, que estava sentado na minha frente. Policial é bicho tinhoso, no leve hesitar ele já abo- canha. Vendo o natural nervosismo da esposa, o jovem pai de família entrou num desespero similar ao de Édipo quando viu a cagada que fizera. O policial levou todo mundo para fora, mais uma outra passageira que ele foi catar lá no fundo do ônibus. Essa saiu algemada junto com o pai, a mãe estava algemada à criança pelo elo natural da vida. Um bom tempo se passou e nada do motorista voltar. Resolvi então descer. Ser humano é bicho de rebanho mesmo, bastou sair e vieram uns três logo atrás. A mala do casal, entre brinquedos e Bob Esponjas, estava api- nhada, coalhada de tabletes de maconha envoltos em fita crepe. Dentro do ônibus, o policial (Luís Fábio O+) já tinha ameaçado a perda da guarda da criança. Foi um tal de abrir e fechar mala que não acabava mais. Numa outra mala havia 30 kg. Numa mochila 10 kg. Aí aconteceu o inesperado. Havia uma bolsa que estava sem identificação, e isso sim intrigou o nosso Sher- 29 lock pantaneiro. Era uma bolsa com listas em vermelho, verde e amarelo. A passageira que foi algemada ao pai fez uma delação e disse que a bolsa era da amiga dela que não havia sido inqui- rida pelo meganha. Em minutos a dita cuja apareceu e negou com uma veemência aeciana que aquela não era a sua bolsa. ―Se sobrar maconha, então vamos fumar‖, disse o maroto e sem- graça Luís Fábio. Conclusão, a delação não se mostrou premiada. Premiado fui que, ao me ver de pé sobre a bolsa, tive que ajudar o nosso homem da lei a carregar o contrabando. Lá dentro eu falei: ―A autoria tem, faltou a materialidade né?‖. ―Você é advogado?‖, ele perguntou. ―Não, meu pai é‖, respondi. ―Antigamente, a gente empurrava mesmo, não queria nem saber, se tinha cara, a gente empurrava‖, disse ele meio frustrado. Eu olhei para ele, pensei, pensei bem, e hi- pocritamente dei graças a Deus por não ter ―cara‖ e por ser só ―antigamente‖. *** Eu tenho fé em Deus. Não qualquer fé, não em qualquer Deus. O meu Deus, não o seu; a propósito, você não teria um minuto para Deus, o meu Deus? Tenho certeza que Ele tem pla- nos maravilhosos para você. A verdade é que não sei muito bem o que é fé, e nem o que é Deus — sinceramente, nunca soube dizer o que são essas duas coisas, o fato é que vejo os outros re- petirem e repito também, pensar se isto procede ou não me dói a cabeça. Pensar dói a cabeça, criar também, repetir não. Pensar é matéria de Filosofia e para filósofos, portanto, ―cuidai para que ninguém vos faça prisioneiros por meio de filosofias e vãs sutilezas‖. Mas é reconfortante poder dizer: tenho fé em Deus. Isso me basta, ter fé em Deus. Deus. A própria palavra já me tranquiliza, me orienta. Eu não sei se sem Deus tudo seria permitido, mas sem Ele eu não me permitiria ser um grão de mostarda. Mostarda Hemmer, claro. Tenho pena, muita pena daqueles que não têm fé. E o que dizer daqueles que não têm Deus? Eu tenho os dois. Fé e Deus, fé em Deus. Não importa o que digam, o que provem ou o que não provem; Deus não está nem aí para provas, Ele é a prova, ―provai, e vede que o Senhor é bom‖. Sempre terei fé em Deus. A vida sem Deus seria um conto de Edgar Poe ou um soneto de Augusto dos Anjos, permeada de mis- térios e infindos pesadelos decassilábicos. A vida com Deus é tal qual um quadro do Romero Britto ou um livro do Augusto Cury, recheada de cores, alegrias e certezas. Certezas: como é bom tê-las. Eu tenho fé em Deus. Assim é bem melhor, muito melhor: 1) melhor para as trai- ções conjugais que cometo; 2) melhor para os calotes que aplico; 3) melhor para as manipula- ções que pratico; 4) melhor para as fofocas que faço; 5) melhor para os egoísmos a que me submeto; 6) melhor para as ofensas que profiro; 7) melhor para as invejas que alimento — ―há seis coisas que o Senhor detesta; e a sétima Ele abomina‖. No final, tenho fé em Deus. Isso me basta. Não qualquer fé, não em qualquer Deus. O meu Deus, não o seu; a propósito, você não teria um minuto para Deus, o meu Deus? Tenho certeza que Ele tem planos maravilhosos para você. Assinado: Um Senhor Sincero *** Só isso já bastaria para dizer sabe-se lá o quê ou com qual finalidade. Led Zeppelin. Até escrever dá gosto. Led Zeppelin, zepelim de chumbo. Primeiro o Led, chumbo, pesado, antes de tudo. O peso de How Many More Times, Heartbraker, Immigrant Song, Achilles Last Stand e In My Time of Dying. Mas o peso da batida da bateria, da batida do cara que bateu o recorde be- bendo nada mais do que as lendárias quarenta batidas de vodca com laranja, numa só noite; bateu o recorde e bateu também as botas. Depois do chumbo, o zepelim, o ar. Algumas músicas o levarão às mais recônditas paisagens sonoras que nenhum avião outrora o levou ou levará. White Summer/Black Mountain, por exemplo. Ou então, Since I´ve Been Loving You, The Rain Song, Ten Years Gone, No Quarter, Tangerine, Tea For One e tantas outras. Led Zeppelin, o blues amplificado. O que dizer de Hats Off To (Roy) Harper. O acorde feito verbo. Tudo pas- sará, menos o riff inicial de Whole Lotta Love, esse é eterno. E o que dizer também de Black Dog, uma verdadeira trepada musical. Não existisse o blues, e não teria existido também o Zep. 30 Eles deram uma pitada de blues ao caldo sonoro que criaram. Plagiaram? Sim, plagiaram até o símbolo que foi transformado em logotipo da gravadora, Swan Song. O quadro do pintor norte- americano William Rimmer serviu-lhes de inspiração. Mas de que serve uma inspiração sem um modelo, uma influência? Nada. Na verdade mesmo, não plagiaram, mas terminaram por eterni- zar nomes como Willie Dixon, Blind Williie Johnson, Otis Rush e outros. O ruim mesmo foi que não pagaram muitos direitos autorais, mas gente branca é assim mesmo, às vezes vacila, mas no fundo são pessoas legais, algumas, não todas, claro. O nome da banda veio de uma pro- vocação feita pelo não menos espetacular baterista da banda inglesa The Who, Keith Moon. Ele disse que a banda seria como um zepelim de chumbo, daí ―Led Zeppelin‖. Sequer alçariam voo, não fariam sucesso nenhum. Pobre Moon, vivia mesmo no mundo da lua. A primeira vez que vi e ouvi o Zep foi assistindo o VHS do show feito filme de 1973 e lançado três anos depois, The Song Remains The Same, no Madison Square Garden, em Nova Iorque. À época eu ouvia muito The Trooper, da empresa, digo, da banda Iron Maiden. Mas aí caí do cavalo e senti-me como o obstinado Saulo quando viu Cristo na estrada para Damasco. Não mudei meu nome para Paulo, mas a conversão foi instantânea. Abandonei o Iron Maiden e passei a seguir o quarteto fantásti- co. Mas música, como tudo o mais, é afeto. Conheço pessoas que comparam o som do Zep ao estridente canto da curicaca, um pássaro característico do centro-oeste. Mas unanimidade pode ser sinal de superficialidade também. É bom que o Zep seja amado por uns e odiado por outros. *** Câncer (21/06 a 22/07) - Houvesse uma mobilização geral para se reunir todos os bal- des, vasos ou recipientes espalhados pelo mundo afora, e ainda assim não seria possível dar conta de toda a sensibilidade canceriana vazada em fluido lacrimal. Eles, os cancerianos, não são a opinião pública, mas também são muito sensíveis. Sensíveis e emotivos; alguns, depois da morte, até em "emoticons" já se transformaram e reencarnaram em redes sociais. Dizem os anti- gos que tudo não passa de uma anomalia congênita localizada nas glândulas lacrimais. Eu penso que a verdade esteja no mito do caranguejo. Como todos sabem, caranguejo que é caranguejo não gosta de ficar longe d´água. Assim, todos que nascem sob o signo de Câncer tentam, de uma forma ou de outra, estar também em constante contato com duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio. À sua extrema sensibilidade e meiguice soma-se uma hábil e desapegada ca- pacidade de dar "o fora" quando necessário. Daí explica-se a sua enorme pinça pronta a ser usa- da quando e da maneira que bem entender, ainda que o outro fique sem entender lá muito bem do porquê da "pinçada". Em alguns pode-se vislumbrar a maravilhosa e singular mudança de humor — não olvidemos o fato de ser a Lua o "planeta" regente do signo —, em outros, uma determinação ferrenha. A direção é a que ele decidir: se para trás, para frente, para os lados, as circunstâncias o irão ditar; quem ao lado estiver, ao lado ficará. Em homens portadores da mar- ca do caranguejo é mister não tomar sensibilidade por afetação. Alguns tendem a cair, seja por curiosidade ou ímpeto lombar, nesse esterótipo nefando (aos olhos dos conservadores), que é o de amar o próximo, mas isso em nada tem a ver com a perfeita e incorrigível ciência da astrolo- gia. No caso das mulheres, nota-se o fenômeno da "mulher de fases". Não que cada fase da Lua corresponda a uma fase física da mulher em questão, do contrário, todas haveriam de querer somente as fases "nova" e "minguante", ao invés da "crescente" e, principalmente, da "cheia". E eu disse "haveriam", porque o mundo hoje, embora não seja constituído de sete bilhões de Der- rida´s (já pensou?), está também em constante desconstrução. No mais, são seres humanos co- mo qualquer um de nós e merecem nossa paciência e desejo de livre expressão — sem opressão, inveja ou incapacidade de criação da nossa parte. *** Sagitário (22/11 a 21/12) - Pobre diabo, não é canção do Bon Jovi, mas será sempre um "misunderstood", um incompreendido, em tradução livre. Em um mundo de constante flagelo e melancolia, nunca lhe entenderão as piadas, o inconveniente bom humor, o otimismo atroz e a enorme curiosidade, somente comparável a uma Pandora ou a um delegado da operação Lava- 31 Jato. Muitas vezes, ofende sem o saber. E quando o sabe, já é tarde demais. Talvez seja esse o seu maior aprendizado em vida: respeitar o limite e a vontade de ficar triste do outro. Não se obtendo êxito na matéria, o preço a pagar seria a solidão. Momentânea, como sempre. Tarde demais somente para uns, verdade seja dita, enquanto para outros, que sabem também carregar no olho uma viga e não um cisco, como lembra o apóstolo, relevam e oferecem mais uma chance à pobre criança. Nada lhe perturba ou aflige, o que, às vezes, é tido por arrogância e excentricidade. A infinda curiosidade lhe permite versar sobre muitos assuntos, mas no fundo, não domina nenhum. Possui a superficialidade de um sofista, com uma gravidade de filósofo analítico. Outra verdade que também deva ser dita é o fato de suportarem dores e tragédias gro- tescas, mas a isso respondem com uma resiliência não inferior a um Sêneca ou um fundador do estoicismo grego. Sabe que não sabe como veio ao mundo e nem como dele irá partir. Esse "não saber", ao contrá- rio da sensação de angústia que fazem algumas almas correrem às igrejas ou psiquiatrias mais próximas, traz em si um notável sorriso de canto de boca, humildade e estupefação; soma-se tudo isso e no final encontrarás a mais fina das ironias e certo ar de "não leves as coisas tão a sério assim". A inteligência, dizem, provêm do símbolo do signo: o centauro. Como não é sabido por todos, na mitologia grega, o centauro Quíron fora preceptor de Aquiles. Se o guerreiro grego foi quem foi, imagine seu mestre, que morreu e virou constelação. Um Yoda sobre quatro patas. Os sagi- tarianos são como os centauros, no geral de boa índole, amáveis e generosos. Mas são também criaturas selvagens e dotadas de um exagero sem igual. Amanhã, Leão e a louca do saco. Certos acontecimentos, antes de escritos, precisam ser digeri- dos. Ou ruminados, como quis o sifilítico alemão. *** Numa quarta-feira de cinzas, em um shopping qualquer da zona sul. — Soube da última? — Que você vai lançar o seu próximo livro de crônicas na Travessa do Leblon? — Não, essa é velha. Referia-me a todo esse estardalhaço em torno do negrinho fantasiado de macaco? — ―Negrinho fantasiado de macaco‖? Você agora deu para pleonasmos? — (Risos) Ah, suas tiradas são as melhores. Não ficou sabendo mesmo? — Não, passei o Carnaval fora com a família, fomos à Disneylândia — não suporto o Rio du- rante o Carnaval, tudo aqui vira uma sujeira só. Lá não, lá é um espetáculo! Aquilo sim é par- que, não este engodo de quinta categoria chamado Terra Encantada. — Ouve então. Um casal saiu fantasiado de Aladdin e Jasmine. — Sim, e daí? — E daí que para a brincadeira ficar completa, eles resolveram fantasiar um menino pretinho de Abu, que no desenho é representado por um macaco. — Não vejo nada de mais, afinal, todos sabem que Carnaval é para isso mesmo. É uma festa de origem cristã onde o povo dá vazão à criatividade. E quanto mais criativo, melhor, não é mes- mo? Esse pessoal também está cada vez mais complexado. — Concordo em gênero, número, grau e coordenada. Só que houve uma mobilização geral acu- sando o casal de racista. — ―Racista‖? Não é possível! Onde vamos parar assim? Todos sabem, e a isso devemos ao visionário e singular espírito do Ali Kamel, que no Brasil não há racismo. Tudo isso acabou em 1888, oras. Já está na hora de acabar também com esse blá blá blá. — Concordo. Não bastam as cotas? Esse povo reclama de barriga cheia, viu? Eu, que ninguém me ouça, sou absolutamente contra as cotas. Acho um absurdo, uma injustiça. Por que dar miga- lhas ao invés de fortalecer o ensino básico? — ―Mas se você acha que cota é migalha, e você sendo contra as cotas como é, logo, você é contra que se dê até as migalhas!‖ — é o que vão dizer se você sair falando isso por aí. 32 — Sim, concordo que alguém que tenha estudado Filosofia, ou que tenha o ouvido treinado em silogismos, há de ver nessa minha fala uma falácia consumada, mas não é bem assim. Só penso que não seja justo o Ricardinho, meu filho, ter que estudar ainda mais. Daqui a pouco, vou ter que diminuir as horas que o pobre coitado passa em frente à televisão jogando PlayStation 5 só para sobrar mais tempo de estudos e assim passar no vestibular de Medicina na USP. — E o pior é que esse pessoal vê racismo em tudo. Alguém joga uma banana para um jogador negro que vai cobrar um escanteio, e o que é isso? Racismo. Alguém amarra um negro nu a um poste, tal qual um desenho do Rugendas ou Debret, e o que é isso? Racismo. Alguém se fantasia de Aladdin e Jasmine e pega justamente um garotinho negro para ser o Abu, e o que é isso? Racismo. — Tudo isto parece até comédia de Shakespeare. —Como assim? — "Muito barulho por nada". *** Acabo de ler que um eminente e confiável centro de pesquisas de opinião norte- americano descobriu que a palavra "Machismo" foi pronunciada 14 bilhões de vezes no ano de 2015 em seus mais variados idiomas. Quase um recorde. Perdeu apenas para a palavra "Diabo" que foi dita 71 bilhões de vezes no ano de 1517 e continua sendo falada em demasia até os dias de hoje. Os pesquisadores fizeram um cuidadoso cálculo e induziram que: dada a população do mundo hoje, 7 bilhões de pessoas e uns quebrados, e as 14 bilhões de vezes que a palavra foi dita, seria como se todos os casais do mundo, ao mesmo tempo, num imbróglio qualquer, um dissesse: "Seu machista!", ao que a outra (ou outro) respondesse: "Machista é você!". O coorde- nador da pesquisa, Dr. John Male, convidado a dar uma palestra no Rio sobre os seus recentes estudos, alertou para o perigo da descoberta: "Brazil has beautiful beaches" (não se sabe ao cer- to quanto à correta grafia da última palavra). Foi ovacionado. A pesquisa associou também o aumento do uso da palavra "machista" com o elevado índice de operações de mudança de sexo, o famoso "tira um x e bota um y", como foi carinhosamente apelidado pela vulva, digo, vulga fluminense. Para os pesquisadores, os homens estão escolhendo a mudança de sexo como forma de escapar da ignominiosa pecha de machistas, já que não conseguem (ou não querem, o que é mais provável) mudar tão abjeto comportamento. "Agora estou bem melhor, posso postar o que quiser, andar por aí sem precisar me esconder, e de quebra ainda chamo de machista o primeiro gaiato que me dá bom dia... bom dia é uma ova!", confessou Joaquim Maria, que agora chama- se Maria Joaquim. *** Acho que nenhum assunto nesta semana foi mais comentado do que o das unhas da Fabíola. E caso o gosto pela história das mentalidades ainda persista daqui a mil anos, segue um resumo (aqui caberia "briefing", mas de estrangeirismos já nos basta o "impeachment"). A cena passa-se em Belo Horizonte, MG. Fabíola era casada. Um dia Fabíola disse a seu marido que iria "fazer as unhas". O seu marido, desconfiado como um mineiro (neste caso, ele realmente era mineiro, o que torna assim a sua desconfiança elevada à enésima potência), já vinha suspeitando da fidelidade de Fabíola. Resolveu então segui-la junto com um colega seu, também mineiro. Resultado: acharam Fabíola e o seu amante às portas do motel. O amante, outro mineiro (tru- co!), atendia pelo nome de Leonardo — ou Leozinho para os íntimos, e para Fabíola. Pela gra- vação (o "amigo" gravou tudo) podemos perceber que Leonardo foi na infância uma criança bem alimentada. Além da sua hercúlea saúde, podemos deduzir também que Leonardo foi alvo de bullying quando pequeno. Adjetivos como: espermatozoide de baleia, bonequinho da Miche- lin, mini-globo terrestre ou rolhinha de poço devem ter sido ditos à exaustão pelos seus colegui- nhas. Claro está que nenhum desses infortúnios serviram para que Leonardo viesse a se tornar um ser humano deprimido ou triste, e assim, procurar ajuda nos bancos das igrejas, no banco do 33 analista, ou então nos bancos das universidades, o que não é menos degradante; no final tudo são bancos. Não, ele fez melhor. Foi lá e "fez as unhas" — e assim, vimos surgir, além dos já conhecidos "vuco-vuco", "afogar o ganso", "molhar o biscoito", mais um tesouro da fraseologia brasileira: "fazer as unhas". Leozinho fez cair por terra um dos maiores preconceitos que já exis- tiram: a imagem do Ricardão. Aquele sujeito sarado de academia, sexy, com cara de safado e bonito como uma cédula de R$ 100,00. Leozinho não era nada disso. Ele era um cara normal, tal qual você e eu, pesando apenas uns cem quilogramas a mais, provavelmente adquiridos em churrascarias ou na seção de chocolates de uma Lojas Americanas, afinal, em Minas Gerais leite é o que não falta. Faltou foi dizer que Leozinho também era casado, mas como deu a segunda sorte (a primeira foi ter nascido homem) de ter uma santa católica em forma de esposa, ele agora está perdoado e vai curtir com a santa, digo, com a sua mulher, em Miami, o peru de Natal. O que será da Fabíola isso é coisa que nem a Polícia Federal sabe responder. Eu penso que o mari- do traído, que com certeza nunca traiu (ora, homem trair?), deveria perdoá-la e refazer as pazes, caso ela assim o desejasse, óbvio. Caso negativo, ela que viva a sua vida e seja feliz, na medida do possível. O importante mesmo nessas horas é lembrar o preceito bíblico: "suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixa contra outro; assim co- mo Cristo vos perdoou, assim fazei vós também". É uma pena que o complemento final desse preceito "e assim viverás infelizes e amargurados para sempre" tenha sido apagado pelo tempo ou por algum concílio clandestino qualquer. *** A escrita para mim é um mundo à parte. Uma espécie de ―Avatar‖ das letras. Depen- dendo do que, e, principalmente, de como se escreve, há também de com isso se conquistar alia- dos e inimigos, nunca a indiferença. Muitas vezes vêm os inimigos na pele de amigos (ou de familiares, o que é mais grave, mas nem por isso menos surpreendedor). O inverso é inverossí- mil. Se bem que há inimigos que raras vezes amigos se tornam; mas o que é raro não entra na estatística, a não ser como exceção, mas isso ninguém quer ser. Todo mundo quer ser regra. Ser exceção é muito incômodo, denota falta de respeito à tradição e aos bons costumes, além de exigir uma certa dose de ousadia. A História mostra o que aconteceu aos que tentaram ser exce- ção: ou viraram cinzas na pira santa, ou foram enviados ao ostracismo para viverem como ver- dadeiras ostras. Mas afinal, o que significa ser regra e ser exceção? Ser regra é comprar, com ―C‖ maiúsculo, um cachorro fofinho de raça para depois lucrar com seus filhotinhos; ser exceção é adotar um vira-lata. No final de tudo, ambos fazem au-au e aba- nam o rabinho. A diferença dos dois consiste tão somente em quem quer ser olhado — no pri- meiro caso, quem quer atenção é o dono ou a dona do cachorro de raça, no segundo caso, o vira- lata. Ser regra é achar normal a Biblioteca Parque da cidade de Sebastianópolis estar em crise e não ver problema nenhum nisto; ser exceção é indagar e não achar resposta plausível de como seja possível essa mesma cidade sediar e patrocinar, anualmente, a maior festa do planeta, dita ―Car- naval‖, mas, vejam só!, não ter uns míseros trocados para sustentar uma biblioteca. E nem cita- rei o dinheiro gasto com as Olimpíadas para não ferir o nosso patriotismo, que como bem ob- servou alguém no passado, é o último subterfúgio dos canalhas, e dos hipócritas, acrescentaria eu. Ser regra é crer ingenuamente que esta ferramenta do ―Curtir‖ sirva como parâmetro de alguma coisa quando todos podem ler e até mesmo gostar de qualquer post escrito sem que para isso tenham que clicar no famoso botãozinho e dar aquele gostinho, digamos, especial para quem o escreveu; ser exceção é estar lúcido disso. Ser regra é achar que um bando de alunos que ocupam escolas ou universidades seja na verdade um bando de desocupados que nada querem a não ser promover algazarra e ir às ruas fazer arru- aça; ser exceção é talvez pensar que esses mesmos alunos venham, há tempos, sentindo na pele e no bolso o descaso e abandono para com as escolas e universidades públicas e decidiram ten- tar, apenas tentar, fazer alguma coisa para mudar isso. 34 Ser regra é achar que somente pelo fato do outro ser de uma cor ou etnia diferente da sua, isso signifique alguma coisa; ser exceção é pensar de uma maneira totalmente diversa e menos idiota do que essa. Ser regra é de repente saber que você desenvolveu uma doença grave, um câncer ou outra coisa qualquer que vai mudar a sua rotina, sem possibilidades de cura ou tratamento, e preferir covar- demente responsabilizar outros por isso, dizendo que foi alvo de mau olhado ou culpa do Diabo, tentando, assim, iludir a si próprio; ser exceção é saber-se mortal e saber também que se uma estrela como o Sol, que um dia há de cessar o seu brilho e explodir transformando-se numa vaga lembrança do que fora outrora, por que é que com você, criatura inacabada e finita, que expele gases e fezes, que elogia na frente para maldizer por trás, mas só porque é um animal racional (e aqui uma pausa para uma gargalhada bem alta e estridente) haveria de ser diferente? Ser regra é achar que tudo o que está escrito num livro de capa negra, aquele que tem as bordas das folhas em dourado (ouro é luz, luz é a verdade e a verdade vos libertará), seja merecedor de respeito e, assim, possa lhe dar o direito de desrespeitar as religiões alheias ou entrar em ônibus e trens perturbando o sagrado silêncio dos outros só porque alguém no passado mandou você ir e pregar a palavra, palavra essa que você lê mas não entende lá muito bem, porque, oras, você nunca foi muito de ler mesmo, não é?; ser exceção é saber que aquilo é só um livro antigo, co- mo tantos outros, com centenas de mitos contendo reflexões e preceitos morais que talvez pos- sam servir para dar um pouco de ânimo e orientação a essa sua vida que você não sabe, nem nunca saberá, como se originou e como chegará, a seu contragosto, ao fim. *** Meu bom e nobre aspirante a canalha, o intuito dessa missiva é o de lhe fornecer algu- mas orientações básicas para que você seja um verdadeiro canalha, tal como aquele que fora cantado em verso por Cumpade Genaro e Bezerra da Silva, no ano de 71 a.C. : ―Canalha, tu é um verdadeiro canalha...‖. Portanto, para poder assim ostentar áurea patente, seguem abaixo os ―Dez Mandamentos do Canalha‖, ou, como preferem os doutos representantes da canalhice, o ―Decanálhogo‖. Esses mandamentos, que foram cunhados em pedra no Monte Canai pelo profe- ta Canailhés, o auxiliarão nesta árdua, injusta e inglória vida de canalha. 1º Faça os outros gostarem de você. Um bom canalha precisa de amigos, para só depois então traí-los. Mostre a eles como você é importante e raro. Conte uma história de vida que cause a eles não só pena, mas compaixão. Lembre-se que um ser humano pode até não ter fome ou sede, mas com certeza, terá compaixão. É preciso aqui deixar claro que, se você não existisse, tudo ficaria cinza, a vida sem graça e a realidade monótona. 2º Conte alguma novidade — o bom canalha não se preocupa com originalidades, o seu melhor aliado é o plágio —, não importando se for uma teoria filosófica (sem pé nem cabeça e ainda que imbuída de um falso sentimento nacional ou regional), ou então uma simples anedota. 3º Seja um perito nos estudos da Erística. Com o tempo, ela lhe será de muita utilidade. Promo- va fofocas e boatos. Recorde-se que, tal como dito num filme de origem duvidosa, uma fofoca é como um travesseiro forrado de penas. Depois que você o rasga com uma faca, no topo de um prédio, o vento se encarregará de espalhá-las e ninguém mais conseguirá reuni-las. 4º Alimente, diariamente, a inveja. Só ela poderá dar a você a força para continuar seguindo em frente, ou atrás. Sem ela, as coisas poderão ficar um pouco difíceis — para você, claro. A inveja é como aquele primeiro motor aristotélico, ela se move a si mesma. 5º Tenha sempre em mente que o verdadeiro canalha beira a superfície, o raso das coisas. Você nunca deve estar na profundidade, da qual não é capaz de chegar, e muito menos na altura, da qual lhe escapa a força de atingir. E aqui, como motivação, cabe uma citação: ―A inveja acome- te somente o que é mais alto; os ventos sopram com furor contra os cumes mais altos‖ (Ovídio, De Remedio Amoris, I, 369). 6º Faça alianças com outros canalhas, conquiste discípulos. Porém, atente-se para o fato de que eles tratarão você com a mesma impiedade na qual você tem tratado as pessoas que lhe são pró- ximas. Caso isso não aconteça, o que é tão improvável quanto o fim da fome no mundo, use-os 35 o máximo que puder. Dois canalhas juntos sempre fazem mais estragos que um canalha sozi- nho. 7º Depois de um certo momento, esteja sempre ausente. Nunca dê as caras. Aja sempre à surdi- na. Em reuniões de ordem várias, mande representantes, isto é, canalhas iguais a você. Dê aos outros a impressão de que você é um tipo de Deus judaico-cristão, ou seja, onipresente, onisci- ente e onipotente (no caso em questão, você é o mais impotente de todos, mas só você saberá disto). Essa suposta onipresença os fará enlouquecer. 8º Adote, como uma espécie de marca registrada, algum gesto peculiar ou alguma frase de efei- to. Não se esqueça que o corpo, além da sua bifurcada língua, também fala. Reserve um tempo para estudar a arte da dramaturgia. Afinal, é sabido por todos que nem todo ator é um canalha, mas todo canalha é um ator. 9º Arrume uma namorada ou namorado, tanto faz. É importante mostrar aos outros que, ao me- nos, alguém concorda com você — além do seu pai e da sua mãe, claro. Na verdade, vocês nem precisam ter um caso real, mas seria bom que todos os vissem juntos por algum e determinado momento. 10º Passado algum tempo, deixe, sem a menor razão aparente, de falar com aqueles que mais acreditaram em você. Exclua-os do Facebook, What´s App, Pager, lista telefônica, etc. Isso os fará acreditar que estão lidando com um maluco, um afetado. E o objetivo é justamente esse. Fazê-los crer que, onde antes aparentava haver a terra firme da amizade, tratava-se, na realidade, da areia movediça da falsidade." *** Hoje é um dia de alegria e de tristeza para mim. Porque, ao contrário do que julga o vulgo, dois sentimentos podem, sim, conviver num mesmo peito. Tristeza pelo fato de uma mu- lher de 92 anos, minha avó e madrinha, ter falecido às oito horas e quarenta minutos da manhã de hoje, justamente hoje. E alegria pelo fato de, somente agora, ela ter se tornado aquilo que sempre foi para mim: eterna. E o que significa alguém ser eterno? Significa, nada mais, ser sempre presente e nunca ausente. A partir do dia de hoje, não importa o momento ou lugar, sempre que eu quiser tê-la perto de mim, bastará, para isso, apenas evocar a sua cândida ima- gem. Claro está que, a imagem que dela tenho, não é a mesma imagem que os outros dela fa- zem; e talvez aí, precisamente aí, resida o motivo deste mundano texto. Embora tenha existido em carne e osso uma única Lucília da Costa Cunha, filha de Dolores (nascida em Espanha) e Epaminondas (brasileiro e com nome de general e político grego), existiram várias Lucílias: a mulher, a esposa, a mãe, a avó, a bisavó, e até, caso se venha confirmar alguns boatos, a tatara- vó. Mas é da madrinha que quero falar (e que fique claro, quero falar para mim mesmo, porque esse texto é para mim, ainda que para isso outros dele tomem conhecimento). Porque foi isso que ela sempre foi para mim: uma segunda mãe. Uma verdadeira madre, na correta acepção do termo. Eu nunca soube explicar, mas me dava um raro e especial prazer a sua companhia. Na verdade, velho mental que sou, sempre me fez bem estar em companhia de gente velha, gente com um pé mais "lá" do que "cá". Talvez seja uma espécie de inveja, não sei. A hipocrisia e canalhice deste mundo é tanta que às vezes cansa. Mas com ela era diferente. Ela ria das minhas piadas e eu das dela. Falávamos sobre muita coisa, e sobre muita coisa também concordávamos. O que ela nunca teve, o que a ela nunca foi dado ou oferecido, a mim ela nunca deixou faltar. Livros, se os tenho hoje, muitos deles foram graças a ela, e a ela serei eternamente grato. Sem- pre que chegava dezembro, mês do meu aniversário, ela me dava uma grana, que eu, claro, tor- rava em livros. Essa "boa vontade" não era só para comigo, era para com todos, ainda que ela soubesse (e ela sabia), intimamente, que nem todos tivessem afinidade para com ela. Mas a vida é assim. Certas reflexões, só a morte pode proporcionar. Nos seus últimos meses de vida, eu tive a sorte e o prazer de poder conviver com ela e com ela aprender, diariamente. De uma fé católi- ca de fazer corar um Santo Agostinho, um Santo Ambrósio, ela acordava (ou era acordada pela minha tia) para assistir a Novena dos Filhos do Pai Eterno, realizadas pelo Padre Robson, no canal Rede Vida. E como rezava. Às vezes, dado o tempo que ela passava orando, eu tinha a 36 vaga impressão que aquela velhinha rezava por toda a humanidade, não só pelos seus sete fi- lhos, netos e bisnetos. Eu ainda hoje brinco que, se roubaram a minha moto, a culpa foi dela. Desde o dia em que comprei a moto, ela me perturbava para que a vendesse. Quando me aciden- tei então, foi o pretexto que queria para me atazanar ainda mais o juízo. Um dia, em janeiro de 2014, por um desses acasos que nem o Acaso explica, me furtaram a moto. Só depois vim saber que ela tinha feito uma promessa(!) à Santa Anastácia para que eu me livrasse daquela moto que quase me custou a perna direita (e a vida), no famigerado acidente que sofri na serra Grajaú- Jacarepaguá no fatídico 26 de outubro de 2012. Depois do furto, ela me pediu para que eu nunca mais andasse de moto, principalmente depois do dia em que ela morresse. A minha resposta para ela foi a seguinte: "Claro, minha vó! Se estando aqui na Terra a senhora já mostra esse entrosamento com a Santa, imagina quando dela estiver perto; aí que eu não vou comprar moto nenhuma". Obrigado minha avó! Se tudo isso que vivemos, e por convenção, ou falta de coisa melhor, chamamos de "Vida", for mesmo só uma vez, eu quero deixar registrado que foi mara- vilhoso que tenha sido ao seu lado. Caso contrário, até breve! *** Há quem professe a crença de o estudo da etimologia ser mera perda de tempo — na verdade, do jeito que as coisas andam, há quem preconize o próprio ato de estudar como mera perda de tempo. Eu, claro, discordo. Tomemos um exemplo. Hoje comemora-se nos Estados Unidos da América, a Roma reencarnada, o Dia das Bruxas. Nós, fiéis depositários que somos da cultura colonizada, tentamos também, à nossa brasílica maneira, reproduzir essa efeméride norte-americana. Realizamos festas à fantasia, promovemos confraternizações e etc. Mas, se indagados a respeito do significado mesmo de palavras como "trick-or-treat", "Halloween", "Pumpkin", "Bruxa" e outras congêneres, ficamos com aquela típica cara de quem assiste novela das oito: inclinamos um pouco a cabeça para o lado, esboçamos um leve sorriso de canto de boca e à nossa face é impressa uma mistura de embasbacamento com imbecilidade. Mas por que essa implicância? Afinal de contas, é só uma festa oras. E eu já imagino alguém perguntando: "Que tenho eu a ver com o fato de mulheres terem sido torturadas e queimadas vivas em outras plagas, em outras eras? É o primeiro Halloween do Carlinhos, convidei toda a família e o salão de festas já está pago — uma pechincha, inclusive. Gastei apenas R$ 10.000,00". Minha cara senhora, nada contra o Carlinhos, muito menos contra a sua pútrida família. Mas é que nós tam- bém temos o nosso folclore, os nossos mitos. Você já deu um pouco de atenção a eles? Você já os leu? Não? Você só lê o horóscopo, revista de fofoca e manchete de jornal? Então, é como diz a música: "Veja só você... que pena, que pena amor". Pois saiba você que temos o Curupira, a Mula-Sem-Cabeça (não estou ironizando a senhora), o Boitatá, a Iara, a Cuca e outros persona- gens que um Câmara Cascudo poderia perfilar aqui sem maiores embaraços. Será que faz senti- do então comemorar o "Dia das Bruxas"? Um termo que no passado era utilizado para os seres de sexo feminino que, dizia-se, praticavam feitiçarias, encantos e outras cositas más (sem troca- dilho). A própria palavra "feminina" vem de "Femina", uma junção de "Fe" (fé) e "Minus" (me- nor), ou seja, a mulher é sempre a mais fraca em manter e preservar a sua fé — a Eva que o diga. Para isso, em homenagem ao dia de hoje, e também para encerrar essa crônica que já vai longe (lembremos que nem a todos é dado o gosto pela leitura), finalizo com o trecho de um livro publicado em 1484 pelos nobilíssimos inquisidores católicos apostólico-romanos, Heinrich Kramer e James Sprenger: o Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras, Parte I, Questão VI): "Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se eviden- cia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que (quem não estiver sentado, que o faça agora!) houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente." *** 37 Para quem nunca ouviu Beethoven, e gostaria de poder fazê-lo antes de virar comida para os vermes, ou, o que é pior, antes de virar objeto de estudo para um recém-médico legista ou um tanatólogo, eu penso que o momento seja agora. Antes de tudo, a maioria das obras são, quando se faz parte desse gênero musical, divididas em três partes, ou ―movimentos‖. No geral, a pri- meira é rápida. A segunda, mais lenta. E a última, menos lenta que a segunda e mais parecida com a ―vivacidade‖ da primeira. De início, eu sugeriria ou o segundo movimento da 7ª, ou o da 3ª Sinfonia. A última foi dedicada a Napoleão. A duração do segundo movimento da 3ª Sinfonia é de oito minutos. Eu sei, por experiência, que oito minutos é tempo suficiente para você reali- zar mil atividades, enviar duzentas mensagens pelo celular e postar três textos no Facebook contendo mil caracteres cada. Mas, talvez possa valer a pena. Principalmente se você quiser sentir um pouco de tristeza, o que, acredite, pode vir a te fazer bem, a não ser, claro, que você tenha histórico suicida. Nesse caso, você digita no YouTube: ―presto beethoven 9‖. Pronto. Funciona como energético. Outra coisa, Beethoven foi um marginal — por mais estranho que isso possa parecer. E embora os idiotas se esforcem em passar a imagem de que só o brasileiro é desgraçado, almas como Rilke, Poe e Mozart provam o contrário. Assim como Garrincha, o trio RPM mostrou que, ao contrário do que muitos pensam, genialidade é compatível com miséria, vício e tristeza. E como alguém disse: inteligência explica, genialidade antecipa. No Rio, Beethoven teria feito funk proibido ou algo qualquer do gênero. Andaria pela Lapa, ou Madurei- ra, embriagado, atormentado e confuso. Outra coisa também, nada de expressões como ―música clássica‖, e, o que é o maior tiro no pé: ―música erudita‖. Putz. Começar assim, é já assustar a possível presa. Música Instrumental. Música Orquestral. Não importa. Se é para mudarem as expressões, que sejam todas então. E finalmente, sem maiores nacionalismos. Senão fica igual aquela cena com o Lulinha, presidente, e o Serginho, governador, num conjunto habitacional, construído pelo governo, perguntando a um menino negro, com uma raquete de tênis na mão, o que o mesmo gostaria de ser quando crescer e quando respondido: jogador de tênis, a dupla dinâmica logo se lançou em direção ao garoto dizendo que isso era esporte de ―burguês‖, e que ele deveria ser ―jogador de futebol‖! Em momentos assim, eu rio por dentro e choro por fora. E como ninguém pode rir duas vezes no mesmo motivo, eu entro em oração. Só fico imaginando quantas crianças se veem desanimadas pelo fato de não terem os mesmos referenciais que a maioria. Sendo assim, sigamos. Beethoven não é como Bach. Bach também é tristeza, mas de uma natureza pecadora, redentora, barroca. A de Beethoven não. A tristeza aqui é fruto de uma revolta, de uma impotência, de um contínuo questionamento. Nada tem a ver com um Deus. Em Beethoven o arrebatamento toma lugar. Um exemplo disso é o sexto movimento do Quarteto para Cordas Nº. 13. O nome do movimento é ―Grosse Fuge‖. A ―grande fuga‖. Ouvir aquilo dá vertigem. Uma imagem para esta peça poderia ser o ―Grito‖ do Munch. Depois, se você não tiver entrado em estágio de sono profundo durante a audição das obras anteriormente aqui hu- milde e sinceramente sugeridas, podemos prosseguir para as sonatas para piano. Vou falar de duas. A famosa Nº 14 e, menos conhecida, Nº 23. A primeira é chamada ―Moonlight Sonata‖, ou ―Sonata ao Luar‖. A segunda, ―Apassionata‖. Essa é muito boa mesmo. ―Für Elise‖ dispensa comentários. É a ―Ana Júlia‖ dos Hermanos. A ―Stairway to Heaven‖ do Zeppelin. A ―Imagine‖ do John Lennon. De uma maneira geral, Beethoven usufruiu um espaço de luta que fora iniciado por Mozart e outros, no qual inseriu o ―músico de corte‖ no espaço da ―música artística‖ e/ou ―comercial‖. Mas isso é outro assunto que o N. Elias trata muito bem no livro ―Mozart: sociolo- gia de um gênio‖ ou, para quem tiver preguiça de ler, no filme ―Amadeus‖, do Forman. E aten- ção com a figura do subserviente Salieri no filme; aquilo é uma obra, e como toda obra, alta- mente parcial e subjetiva. Uma coisa digna de se dizer é que todo esse papo de que o Beethoven ia ser abortado, que ele quase nem nasceu, é tudo conversa do vigário, com vistas a fortalecer uma espécie de ―formação das almas‖, com todo respeito à imagem e figura do sr. José Murilo de Carvalho, no lado cristão-ocidental. No livro do R. Dawkins, ―Deus, um delírio‖, isto está bem posto. No campo do cinema, dois filmes bons. Ou pelo menos, um muito bom e o outro razoável. O muito bom seria o ―Minha Amada Imortal‖, com o sagaz Gary Oldman. O razoável, ―O Segredo de Beethoven‖ com Ed Harris. Por que sagaz e por que razoável? Mais uma vez, a opinião fundamentada na subjetividade terá vez. O primeiro é mais poético. O segundo, mais 38 real. Embora o segundo também seja poético em certa medida. No primeiro é abordada a ques- tão do alcoolismo e agressividade do pai, de uma certa inquietude interior do músico, de uma busca. Tanto é verdade que a cena em que o Beethoven adolescente corre, como se estivesse não só fugindo mas buscando algo, à margem do lago, para depois deitar à margem e ter refletido no lago o kosmós (do grego, ordem, arranjo, daí cosmético, ordenar a cara, dar um arranjo na cara, pô-la mais bonita, ou no mínimo, tentar!) é uma das cenas mais bonitas. No segundo entra cena uma pauta mais real. Uma possível contribuição feminina no direcionamento da obra. Aqui, Beethoven mais debilitado, surdo, ranzinza e caduco, tem como ajudante uma bela e doirada jovem interpretada pela Helena troiana, Diane Kruger. A jovem teria não apenas auxiliado na condução da estreia da Nona, bem como acrescentados e corrigidos determinados trechos da magna obra. Bagatelas à parte são dois bons filmes. Funcionam um ―Cadillac Records‖ para quem quiser se iniciar no Blues. Para encerrar, cabe lembrar que ouvir música instrumental se assemelha a um processo de leitura. Cabe silêncio. Segundo, às vezes, pode levar tempo. No geral, é só uma opção a mais. Aprovando o Beethoven talvez pudesse se passar então à segunda etapa, ouvir Pixinguinha. Nada também que vá mudar a (des)ordem das coisas. É só música. *** "Ela deveria ter no máximo dezenove primaveras. Ele, vinte e cinco invernos. Estuda- vam Filosofia. Ou pelo menos, a eles era dada a impressão que de fato estudavam. Não sabiam ainda que Filosofia não se estuda — se adoece de Filosofia, para depois se enlouquecer. A lou- cura é o sol que não deixa o juízo florescer, dissera uma vez São Francisco — Xavier ou de Assis pouco importa, o que conta mesmo é a tonsura. Mas isso são outros subjects. O fato era que os dois se achavam uma espécie de Heloísa e Abelardo pós-modernos. Vivam romantica- mente, agiam piedosamente e compadeciam-se das dores alheias de maneira mui hipócrita. Ex- pressões como ―tá ligado‖, ―tipo assim‖ e ―se você me permite uma colocação‖ eram usadas aos borbotões pelo romanesco casal. A verdade mesma era que ambos rendiam graças a Deus por não serem eles os miseráveis, favelados e desvalidos. Miseráveis, favelados e desvalidos que eles mesmos oprimiam. Para eles não bastava ser do contra, não. Era preciso ser um antípoda a toda ordem estabelecida e vigente — ordem essa que os pombinhos, inconscientemente, sedi- mentavam. Perdoai-vos, Pai, eles também não sabiam o que faziam. Um dia os reencontrei. Passados muitos anos, resolvi fazer uma visita ao antigo Centro Acadêmico de Filosofia da UPIZUI (Universidade de Picaretagem e Zueira Infinita) e lá estavam eles. À parte as feições de ambos, carcomidas pelo tempo e que mais pareciam o inferno de Bosch, continuavam dizendo as mesmíssimas coisas. É in-crível como as pessoas, carentes que são de um sentido da vida, se deixam levar por canalhas como esses. No momento em que cheguei ao C.A (que mais parecia o extinto centro de alfabetização, e não um centro acadêmico) o assunto era a troca do tradicional cumprimento de aperto de mãos por um gesto de "Olá", bem parecido com aquele gesto que um Jedi fazia nos filmes quando queria afastar de si alguma coisa ou alguém. Os ânimos estavam não só exaltados, mas extenuados. O casal havia desistido de tentar convencer os presentes que o milenar aperto de mãos na verdade se configurava como uma forte e cruel forma de opressão contra o outro. A todo momento eles evocavam o ―outro‖. Porque o outro isso, o outro aquilo, o outro aquiloutro. Não se sabia muito bem quem era esse outro. Até que algo maravilhoso acon- teceu. O tal do outro apareceu e disse: ―Por favor, pelo amor de Deus! Eu sou o Outro, e não aguento mais ficar ouvindo essa ladainha em torno do meu nome. Por favor, parem com isso! Vão ver um filme, ler um livro, fazer uma cópula ou sei lá, mas me deixem em paz!‖. Dito isso, o outro saiu e o casal ficou sem entender nada. Assim como eu. A impressão geral foi a de uma aporia platônica" Reacionário de Souza e Benevides da Coxa 39 Sobre o Autor Douglas Elemar Cunha dos Santos nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 16 de de- zembro de 1981. Estudou Turismo, História e licenciou-se em Filosofia pela UERJ. É torcedor fanático do Fluminense Football Club e teimoso fã da banda de rock britânica Led Zeppelin . O autor crê, ingenuamente, que o riso e o bom humor sejam as respostas para tudo neste mundo, salvaguardadas piadas desrespeitosas, mas entende também que não se pode agradar nem sempre a gregos e troianos Contato: [email protected] 40
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