Rights for this book: Public domain in the USA. This edition is published by Project Gutenberg. Originally issued by Project Gutenberg on 2004-12-28. To support the work of Project Gutenberg, visit their Donation Page. This free ebook has been produced by GITenberg, a program of the Free Ebook Foundation. If you have corrections or improvements to make to this ebook, or you want to use the source files for this ebook, visit the book's github repository. You can support the work of the Free Ebook Foundation at their Contributors Page. The Project Gutenberg eBook, A Paranoia, by Julio de Mattos This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: A Paranoia Author: Julio de Mattos Release Date: December 28, 2004 [eBook #14503] Language: Portugese ***START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PARANOIA*** E-text prepared by Miranda van de Heijning, Larry Bergey, and the Project Gutenberg Online Distributed Proofreading Team from images generously made available by the Bibliothèque nationale de France (BnF/Gallica) at http://gallica.bnf.fr A PARANOIA Julio de Mattos ENSAIO PATHOGENICO SOBRE OS DELIRIOS SYSTEMATISADOS ...Ci iroviamo proprio faccia a faccia col nudo querito della pura pazzia. EUGENIO TANZI Lisboa Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão 5, Largo de Camões, 6 1898 A MEMORIA AMIGA DO PROFESSOR SOUSA MARTINS PREFACIO Ao passo que na sua maioria as doenças hoje estudadas pelos alienistas pertencem no fundo á pathologia interna, e só pelo predominio, mais apparente ás vezes do que real, dos seus symptomas psychicos se apropriaram a designação de mentaes , os delirios systematisados, esses, pela ausencia de caracteristicas lesões, pela falta de privativas causas determinantes e pela carencia de symptomas funccionaes objectivamente apreciaveis, constituem a verdadeira loucura, a psychose por excellencia, n'uma palavra, o proprio e irreductivel dominio da psychiatria. Isto é dizer que a observação clinica não póde, ella só, determinar a génese d'estes delirios, pois que o confronto dos dados psychicos com os somaticos e etiologicos é, no caso sujeito, impraticavel. Foi, todavia, pelo exclusivo exame do hypocondriaco, do perseguido, do ambicioso, que os alienistas buscaram até ha pouco surprehender a pathogenia dos delirios essenciaes. D'aqui o natural insuccesso dos seus trabalhos, melhor do que nunca evidenciado nos ultimos debates das sociedades psychiatricas de Paris e de Berlim, em que se não fez, por confissão dos proprios oradores, mais do que obscurecer e confundir o problema posto. Por outro caminho,—introduzindo no controvertido thema a criterio da evolução, seguiram, felizmente, na Italia contemporanea eminentes pshychiatras. Inquiridos clinicamente os delirios essenciaes nos seus symptomas e na sua marcha, uma coisa resta ainda fazer para os interpretar: o estudo do delirante, considerado, não em si mesmo, como individuo, ou nos seus ascendentes immediatos, como membro de uma certa familia, mas anthropologicamente na sua vasta ancestralidade, como representante de uma especie em plena evolução. Na sua marcha normal não segue o Espirito ao acaso, mas progressivamente por linhas de ideação desde muito entrevistas, senão inteiramente definidas; quem nos affirma que na sua marcha anormal elle não segue regressivamente pelas mesmas prefixas e inflexiveis linhas ideativas? Se a dissolução da memoria se apagam primeiro os factos recentes e só depois os remotos, primeiro os nomes e só por ultimo os adjectivos e os verbos; se na dissociação da motricidade se perdem em primeiro logar os actos conscientes e só por fim os habituaes e instinctivos; se na desaggregação affectiva são os primeiros a fazer naufragio os sentimentos altruistas e só em derradeiro logar se extinguem os egoistas, é possivel e provavel mesmo que na esphera propriamente conceptiva a marcha pathologica se realise, ao menos em certos casos, n'um sentido tambem regressivo. Ora, segundo a escóla italiana, isto se dá, com effeito, nos delirios systematisados essenciaes, manifestação. PRIMEIRA PARTE Historia dos delirios systematisados I—PHASE INICIAL De Areteu a Esquirol—Confusão dos delirios systematisados com a melancolia—A monomania intellectual e as suas fórmas depressiva e expansiva. Se conheceram os delirios systematisados, não deixaram d'isso documento os escriptores que precederam a nossa era. É sómente a datar do primeiro seculo, em Areteu e Celio Aureliano, que encontramos incontestaveis e inequivocas referencias aos perseguidos. Occupando-se dos melancolicos, escrevia, com effeito, o primeiro d'estes medicos: «Muitos receiam que lhes propinem venenos; os seus sentidos adquirem um redobramento de finura e de penetração que os torna suspeitosos e de uma habilidade extrema em verem por toda a parte disposições hostis»[1]. Pelo seu lado, Celio Aureliano, fallando dos mesmos doentes, affirmava que muitos «experimentam uma desconfiança continua, um permanente receio de imaginarias armadilhas»[2]. [1] Areteu, De Melancholia , apud Trelat, Recherches historiques sur la folie, pag. 10 [2] Vid. Trelat, Obr. cit. , pag. 38. A confusão que n'estas passagens se nota entre perseguidos e melancolicos, subsistirá, como veremos, até muito perto de nós e merece explicar-se desde já. Definindo a melancolia «animi angor in una cogitatione defixus», Areteu caracterisava esta doença por duas ordens diversas de factos a que dava igual valor: de um lado, o phenomeno emotivo, consistindo n'um estado de angustia animi angor , do outro, o facto intellectual de uma concepção, delirante absorvendo e fixando o espirito ( in una cogitatione defixus ). Pouco a pouco, porém, a consideração de um delirio limitado foi, talvez por mais apparente, predominando sobre a de um estado mental depressivo na caracterisação da melancolia, como se vê nos auctores que succederam a Areteu. Procurando, com effeito, differenciar a melancolia da mania, elles não o faziam pondo em contraste os estados emotivos que acompanham estas vesanias, mas proclamando que na primeira o delirio é limitado, unico e absorvente, ao passo que na segunda elle é multiplo, geral e dispersivo. Repetindo-se atravez dos tempos, esta doutrina que faz prevalecer o elemento intellectual sobre o emotivo, conquista de tal modo as opiniões que no seculo XVII melancolia e delirio parcial tornam-se termos equivalentes. Assim Sennert a definia: «Uma concentração da alma sobre a mesma idéa ou um delirio que se exerce sobre um pensamento, falso quasi exclusivo».[1] [1] Vid. Morel, Traité des maladies mentales , pag. 54. Nenhuma idéa de emoção depressiva e dolorosa se encontra n'esta e analogas definições, em que, pelo contrario, a unidade do delirio figura como elemento exclusivo. O angor animi de Areteu desapparecera, restando apenas da antiga definição o conceito de um espirito absorvido in una cogitatione Logicamente, pois, incluiram os medicos do seculo XVII o delirio de grandezas no quadro clinico da melancolia. Sob o seu ponto de vista, com effeito, tanto valem os perseguidos como os megalomanos, porque uns e outros são, no dizer de Sennert, doentes «cuja razão se acha pouco alterada ou apenas alterada em relação a um objecto», isto é, por definição, melancolicos. Entre estes collocava o auctor que acabamos de citar, um doente julgando-se monarcha do Universo e cuja razão, só parcialmente lesada , lhe permittia «dissertar perfeitamente sobre as mais graves questões». Plater, ao lado dos melancolicos sitiophobos «receiando envenenamentos e accusando de hostilidade e perfidia os seus mais intimos amigos», collocava doentes «possuidos das idéas de opulencia e de realeza». A unidade do delirio e não a natureza d'elle ou das emoções que o acompanham, constituia no seculo XVII, como se vê, a caracteristica dos estados melancolicos. De resto, Sennert explicitamente affirmava que «na melancolia o delirio é muitas vezes alegre». Os medicos do seculo XVIII acceitaram unanimemente a doutrina que no quadro clinico da melancolia fazia entrar a titulo de variedades os delirios de perseguições e de grandezas. Para Sauvages, por exemplo, o delirio exclusivo caracterisava a melancolia; mais explicito, Lorry descreveu como fórma d'esta vesania «um delirio parcial exaltado com paixão excitante». A primeira metade do nosso seculo não trouxe modificação sensivel a estas idéas. Rusch descrevia em 1812 duas variedades melancolicas, uma triste, tristimania , outra alegre, aménomania . Pinel admittia igualmente duas fórmas de melancolia: uma depressiva e outra ambiciosa, caracterisadas por um delirio parcial. «Nada mais inexplicavel, diz elle, e, todavia, nada mais verificado que a existencia de duas fórmas oppostas da melancolia. É algumas vezes uma explosão de orgulho e a idéa chimerica de possuir immensas riquezas e um poder sem limites, outras vezes o abatimento mais pusilanime, uma consternação profunda e mesmo o desespero»[1]. [1] Pinel, Traité médico-philosóphique sur l'aliénation mentale , pag. 165. Sob diversa nomenclatura, Esquirol propagou, sem as alterar no fundo, as idéas dos seus antecessores. Designando pelo termo infeliz de monomania o grupo dos delirios parciaes, acceita duas variedades ou especies: uma, depressiva, a lypemania , outra, expansiva, a monomania propriamente dita . A lypemania , que não é senão a tristimania de Rusch ou a melancolia de fórma depressiva de Pinel, comprehende entre outras variedades o delirio de perseguições, ainda então innominado; a monomania propriamente dita , que equivale á aménomania de Rusch e á melancolia de fórma expansiva de Pinel, é por elle definida «um delirio parcial ou monomania alegre», e comprehende os delirios de grandezas, não só o idiopatico, mas, como se vê nos casos que aponta, o symptomatico da paralysia geral, ao tempo ainda não descripta. Recebendo a influencia tradicional dos seus predecessores, Esquirol transmittiu-a, reforçada pela sua grande auctoridade, aos alienistas que lhe succederam na primeira metade d'este seculo. É documento d'isso o extraordinario successo da doutrina das monomanias, aliás psychologicamente erronea, clinicamente infecunda e juridicamente perigosa. No seu Tratado das Doenças Mentaes affirma Esquirol que o termo monomania adquiriu direitos de cidade pela, introducção no diccionario da Academia Franceza, e felicita-se por isso. E, todavia, esse termo é confuso, porque no proprio livro do mestre nos apparece com significações diversas, ora designando, como vimos, delirios parciaes, ora obsessões e impulsos, isto é, um conjuncto de factos heterogeneos e de significação clinica diferente. Primitivamente creada para designar o mesmo que a melancolia dos antigos—uma affecção parcial do entendimento, acompanhada quer de tristeza, quer de expansão, a palavra monomania foi insensivelmente generalisada pelo proprio Esquirol no sentido de exprimir uma doença, ou desvio parcial de qualquer faculdade: ao lado de uma monomania intellectual , tem logar uma monomania affectiva e uma monomania impulsiva . Delirios systematisados, emoções procedentes de idéas obsediantes, impulsos cegos e irresistiveis, tudo entra no quadro da monomania—o mais amplo, diz Esquirol, de toda a classificação. De sorte que, se os antigos, desviando a palavra melancolia do significado que Areteu lhe dera, chamaram a um só grupo delirios do caracter diverso e lançaram assim na sciencia uma grande confusão, Esquirol não fez senão augmental-a pela creação das monomanias. Como quer que seja, o immenso e, por innumeros titulos, justificado prestigio d'este observador fez correr a palavra e a doutrina. Sem duvida, objecções foram bem cedo erguidas contra ambas por Falret, Delasiauve e outros, que negaram a existencia de delirios circumscriptos a uma só idéa, affirmados na palavra, ou pozeram em relevo a solidariedade das funcções mentaes, contradictada pela doutrina. «Todas as faculdades, escrevia Falret em 1819, participam em maior ou menor grau das desordens intellectuaes; de resto, sempre que uma idéa falsa invade a intelligencia, o seu poder contagioso exerce- se sobre as outras, de sorte que sob um delirio preponderante véem-se estabelecer delirios secundarios e derivados que não tardam a invadir todo o intendimento»[1]. Pelo seu lado, Delasiauve escrevia em 1829: «Póde acaso limitar-se o circulo d'acção em que uma idéa dominante deve exercer ou realmente exerce a sua influencia?» E mais tarde ainda: «O delirio dos monomanos não é nunca tão circumscripto como se pretendeu; a verdadeira monomania é rarissima!»[2] Todavia, a criticas d'esta ordem redarguiam Esquirol e os seus discipulos que nem a palavra monomania significava unidade de delirio, nem a doutrina necessariamente implicava que a lesão de uma faculdade não podesse fazer-se sentir sobre as outras; para elles, a monomania designava uma lesão parcial e preponderante, mas não unica e independente, das faculdades. [1] Falret, Des maladies mentales [2] Delasiauve, Les Pseudomonomanies «Tem-se negado, escrevia Esquirol, a existencia dos monomaniacos, dizendo-se que os alienados não deliram nunca sobre um só objecto, mas que sempre n'elles há perturbações da sensibilidade e da vontade. Mas, se assim não fosse, os monomaniacos não seriam loucos.»[1] Pelo seu lado, Marcé escrevia: «Nunca os que crêem na existencia das monomanias pensaram em negar a solidariedade das faculdades intellectuaes no monomaniaco. Reconhecendo que o delirio é raras vezes limitado a um só ponto, crêem, no emtanto, dever conservar as monomanias a titulo de grupo distincto.»[2] [1] Esquirol, Des maladies mentales, tom. II, pag. 4. [2] Marcé, _Traité pratique des maladies mentales,_pag. 351. V oltemos, porém, ao nosso restricto assumpto. A monomania intellectual de Esquirol, caracterisada por um delirio limitado de natureza alegre ou triste, não é senão a melancolia dos antigos medicos. Para aquelle, como para estes, era a extensão dos conceitos falsos o criterio para classificar as loucuras em que ha compromisso da intelligencia: de um lado, a mania, manifestando-se por um delirio geral e dispersivo, do outro, a monomania, symptomatisada por um delirio parcial e fixo. Se a estas duas especies accrescentarmos a idiotia e a demencia, entrevistas por Pinel, mas só definidas por Esquirol, a estupidez descripta por Georget, e a paralysia geral, estudada por Calmeil, encontramo- nos em face da classificação das psychoses que até ao meiado do nosso seculo a França inteira adoptou. Ora, dentro d'esta classificação, não teem logar distincto e proprio, como se vê, os delirios systematisados: o de perseguições é descripto como uma variedade lypemaniaca, e o de grandezas é confundido com as manifestações symptomaticas de outras doenças mentaes. II—PHASE ANALYTICA De Lasègue a J Falret e de Griesinger a Snell e Sander—O delirio de perseguições; a megalomania; o delirio dos perseguidores; a Verrücktheit secundaria; a Verrücktheit originaria—Começo de interpretação pathogenica. Foi Lasègue em 1852 quem primeiro destacou do cahos da melancolia o delirio de perseguições para eleval-o á dignidade de «especie pathologica entre as alienações mentaes». No seu memoravel trabalho sobre este assumpto, o eminente alienista começa por notar que as idéas de perseguição apparecem como episodio symptomatico e a titulo de phenomeno incidente no alcoolismo , nas loucuras provocadas por certas substancias narcoticas e em muitos delirios parciaes ; na doença, porém, que elle descreve pela primeira vez essas idéas não são um syndroma fortuito, mas um facto constante e essencial, um phenomeno preponderante e fixo. A nova psychose tem, de resto, como titulos á autonomia nosographica, symptomas especiaes e uma evolução caracteristica. Estudando a marcha do delirio de perseguições, Lasègue reconhece-lhe dois periodos: um, de incubação, consistindo n'um mal-estar indefinido e vago, mas absorvente e inquietante, em que o doente se suspeita victima de hostilidades cuja origem não sabe ainda determinar; outro, de estado , em que o delirio definitivamente se installa e systematisa. Ao principio o doente não exprime a idéa de uma perseguição senão com uma certa reserva , hesitantemente, tentando ainda provar a si mesmo que ella é absurda ; mais tarde, porém, a duvida esbate-se e o systema delirante apparece definitivamente formado. A duração do primeiro d'estes periodos é essencialmente variavel: tão rapida em alguns doentes que a custo se lhe surprehende o primeiro grau , prolonga-se e arrasta-se em outros, que só muito gradualmente e por uma progressão bem sensivel e bem apreciavel attingem a construcção do seu romance delirante. Do mal-estar caracteristico do primeiro periodo diz Lasègue que elle se não parece em nada com a inquietação ainda a mais viva do homem normal ; é indefinivel, accrescenta, como os symptomas que annunciam e fazem presentir a invasão das doenças graves . O periodo de estado, esse, é como a floração da psychose: o romance systematico desenvolve-se pelo reconhecimento dos perseguidores—a policia, o jesuitismo, os magnetisadores, a maçonaria, os physicos, etc. Passando ao estudo dos symptomas, Lasègue põe em relevo o papel que desempenham na doença as falsas sensações auditivas. «O orgão do ouvido, escreve o eminente professor, fornece as primeiras sensações sobre que se exerce a intelligencia pervertida. O doente ouve retalhos de conversas que interpreta e se applica; os mesmos ruidos que naturalmente se produzem,—a passagem de um trem, os passos de uma pessoa que sobe ou desce uma escada, uma porta que se abre ou fecha, são objecto dos seus commentarios».[1] Fallando, em seguida, das allucinações auditivas, declara-as as unicas compativeis com o delirio de perseguições; e accrescenta: «Basta que um doente accuse visões para que eu não hesite em affirmar que elle pertence a outra cathegoria de delirantes»[2]. Na mesma ordem de idéas escreve ainda: «Qualquer que seja a epocha em que ellas se declarem, as allucinações pertencem sempre ao quadro das auditivas; não é demais a minha insistencia sobre este caracter, que considero pathognomonico»[3]. Todavia as allucinações do ouvido, tão importantes e de tão vasto papel, não são para Lasègue um phenomeno constante na psychose que descreve: «A allucinação do ouvido, diz elle, não é nem a consequencia obrigada, nem o antecedente necessario do delirio de perseguições»[4]. Os perseguidos podem, segundo elle, não experimentar nunca allucinações; limitando-se a fundar inducções delirantes sobre sensações anditivas reaes , alguns ha que percorrem todos os periodos da doença [1] Lasègue, Le délire des persécutions in Ètudes médicales , tom. 1., pag. 554. [2] Lasègue, Loc. cit. , pag. 555. [3] Lasègue, Loc. cit. , pag. 555. [4] Lasègue, Loc. cit. , pag. 555. Lasègue não refere allucinações além das auditivas: «As outras sensações de que os perseguidos se queixam, diz elle, reduzem-se a impressões nervosas»[3]. De resto, estas mesmas impressões devem antes lançar-se á conta do hysterismo que á do delirio de perseguições: «As mulheres, diz elle, offerecem os exemplos mais frequentes—sopros internos, subitos calores, entorpecimentos, dores atrozes e passageiras e os outros accidentes tão moveis da hysteria»[4]. [3] Lasègue, Loc. cit. , pag. 556. [4] Lasègue, Loc. cit. , pag. 557. Como a symptomatologia e a marcha da doença, a pathogenia d'ella mereceu tambem as attenções de Lasègue. Segundo elle, o delirio procederia sempre da necessidade que o alienado sente de explicar as sensações anormaes do periodo inicial, e resultaria, portanto, de uma consciente elaboração logica. «A crença n'uma perseguição, diz elle, não é senão secundaria; provoca-a a necessidade de dar uma explicação a impressões morbidas provavelmente communs a todos os doentes e que todos referem á mesma causa»[1]. Por um raciocinio, pois, passaria o perseguido do vago mal-estar do periodo prodromico ao delirio systematisado e quasi invariavel que caracterisa a doença em plena floração. O facto inicial seria um phenomeno confuso da sensibilidade, uma perturbação emotiva, o phenomeno intellectual, o delirio, seria ulterior e nascido do primeiro. «É, diz Lasègue, depois de um certo tempo de preoccupação e de resistencia que o alienado procura remontar á causa dos seus soffrimentos, e passa assim do primeiro ao segundo periodo. A transição faz-se então por este invariavel raciocinio: os males que soffro são extraordinarios; tenho experimentado bem mais duros golpes, mas concebia-os, descobria- lhes mais ou menos o motivo; agora encontro-me em condições extranhas que não dependem nem da minha saude, nem da minha posição, nem do meio em que vivo: é preciso que alguma coisa de exterior, de independente de mim intervenha; ora eu soffro e sou desgraçado: só inimigos podem ter interesse em me magoar; devo, pois, crêr que intenções hostis são a causa das impressões que experimento»[2]. [1] Lasègue, Loc. cit. , pag. 552. [2] Lasègue, Loc. cit. , pag. 552. Decorrido o periodo prodromico e attingida a systematisação delirante, a doença deixaria, segundo Lasègue, de acompanhar-se de grandes perturbações de sentimentos . Ha perseguidos que, mudando constantemente de casa, fatigando incessantemente magistrados e auctoridades com interminaveis queixas, conservam , todavia, uma certa egualdade de humor «Nunca vi nenhum, diz o auctor, cahir em melancolia continua, reagir por odios violentos ou meditar vinganças»[3]. [3] Lasègue, Loc. cit. , pag. 551. Occupando-se da etiologia, Lasègue nota que o maximo de frequencia do delirio de perseguições se realisa entre os 35 e os 50 annos e que esta psychose ataca de preferencia as mulheres: segundo a sua estatistica, 25% das alienadas, comprehendidas as idiotas e imbecis, seriam perseguidas. As causas proximas seriam, em regra, de uma completa insignificancia: uma insomnia, uma phrase inoffensiva, uma refeição de sabôr desagradavel, etc. Emfim, estudando o delirio em relação ao caracter anterior do doente, Lasègue nota que «os espiritos mais timidos não são os mais predispostos»; no delirio de perseguições vê o eminente clinico, não o exaggero de uma prévia tendencia natural, mas um elemento pathologico novo introduzido no organismo moral e sem equivalente no estado de saude. Procurando apenas «estabelecer um typo clinico e determinar os caracteres que devem entrar na sua definição», o notavel alienista declara abster-se de estudar «a marcha decrescente da doença e as suas indicações therapeuticas». Tal é nos seus traços capitaes e na sua mesma essencia a extraordinaria memoria de Lasègue. Sem nada accrescentar a este quadro clinico, Morel fez, todavia, desde 1853 umas importantes observações sobre a historia dos perseguidos, affirmando que muitos d'elles principiam por ser hypocondriacos e acabam por delirar n'um sentido ambicioso. Exposta pela primeira vez d'uma maneira dogmatica e n'um certo grau de generalidade nos seus Estudos Clinicos, a observação de Morel tinha, contudo, precedentes na sciencia. Pinel, com effeito, illustrando o que elle chamava a transição da melancolia depressiva á melancolia ambiciosa , expozera em 1809 alguns casos de doentes que, tendo-se julgado por mais ou menos tempo victimas de hostilidades e de manejos criminosos, acabaram por crêr-se grandes personagens; pelo seu lado, Esquirol notára tambem desde 1838 que da hypocondria póde passar-se á lypemania e d'esta á monomania da vaidade , apresentando como exemplos alguns interessantes vesanicos primeiro hypocondriacos, depois perseguidos e por ultimo ambiciosos. Entre os casos de Pinel ha o de um alienado que durante oito annos delirou como perseguido, crendo-se em constante imminencia de morte por envenenamento, não ingerindo senão alimentos que furtava na cosinha do asylo, e que acabou por crêr-se igual ao Creador e soberano do mundo; entre as observações de Esquirol figura a de um doente que, excessivamente inquieto sobre o seu estado de saude durante mais de dois annos, entra em seguida no caminho das perseguições, imaginando-se objecto de tentativas de envenenamento por parte da familia, e termina, decorrido um anno, por crêr-se filho de Luiz XVI. Mas, por valiosas e instructivas que sejam em si mesmas, estas observações não desempenham nos livros de Pinel e de Esquirol mais que um papel episodico e sem alcance. Morel foi indiscutivelmente o primeiro a vêr n'uma tal successão de delirios, não apenas um curioso accidente, mas uma verdadeira lei de evolução vesanica, segundo a qual a passagem regular da hypocondria ao delirio de perseguições e d'este ao delirio ambicioso seria um facto constante nos alienados hereditarios. D'aqui a affirmar a existencia de uma psychose degenerativa de que os delirios hypocondriaco, persecutorio e ambicioso, succedendo-se, não constituiriam senão étapes ou phases evolutivas, vae uma pequena distancia que Morel percorreu, como veremos, desde a publicação dos Estudos Clinicos em 1853 até á do Tratado das Doenças Mentaes em 1860. Outros auctores franceses, entre os quaes Renaudin, Broc e Dagonet, notaram a successão de delirios diversos, nomeadamente de perseguições e de grandezas, n'um mesmo alienado; todavia, por desconhecimento ou incomprehensão do alcance dos trabalhos de Morel, nenhum d'elles se preoccupou com a interpretação do phenomeno. Só em 1869 Foville, retomando a questão na sua excellente memoria sobre a Loucura com predominio ao delirio de grandezas , procurou interpretar, sobretudo, a passagem —tão frequentemente observada agora que a attenção dos clinicos incidia sobre ella—do delirio de perseguições ao de grandezas. Marcando na historia dos delirios systematisados um periodo importante, o trabalho de Foville merece deter-nos um momento. Depois de ter mostrado que o delirio de grandezas póde apparecer a titulo episodico na maioria das doenças mentaes e com mais ou menos relevo constituir um syndroma de algum dos seus periodos evolutivos, Foville estabelece que elle se torna preponderante e reveste inconfundiveis caracteres semeioticos em dois casos: na loucura parcial e na demencia paralytica. Pondo de parte, por alheio ao nosso estudo, este ultimo caso, vejamos o que Foville pensava do primeiro. A loucura parcial, que importa não confundir com a monomania de Esquirol, representaria, segundo Foville, as alienações caracterisadas pelo conjuncto d'estes caracteres: presença de um delirio systematisado, ausencia de um estado habitual depressivo ou expansivo, existencia de perturbações sensoriaes, e chronicidade. O delirio de perseguições descripto por Lasègue é um dos representantes d'este grupo; um outro seria, segundo Foville, a megalomania , que elle define como um delirio de grandezas logicamente coordenado, associando-se a allucinações chronicas e, no seu periodo de estado, a idéas de perseguição. Em rigor, nem o termo é novo, porque antes o tinham empregado, entre outros, Broc e Dogonet, nem a definição da doença absolutamente original, porque desde Esquirol se havia reconhecido a existencia de um delirio ambicioso idiopatico. O que de original e novo existe no trabalho de Foville é a maneira de estudar a génese do delirio de grandezas e as relações d'elle com a doença de Lasègue. Segundo Foville, na loucura parcial, de que são escólas o delirio de perseguições e a megalomania, toda a symptomatologia essencial se reduz a concepções delirantes e erros sensoriaes, podendo estas duas ordens de factos manter entre si relações diversas, que importa muito considerar para a comprehensão da pathogenia. Ou as concepções delirantes se apresentam primeiro, apparecendo as illusões e allucinações como um facto secundario da doença, ou, pelo contrario, a esphera sensorial é primitivamente affectada e só depois irrompem as concepções chimericas. Ora, segundo Foville, não é de modo nenhum indifferente para a natureza mesma da doença que a successão das duas ordens de symptomas se realise n'um sentido ou n'outro, porque o allucinado- delirante é, em regra, um perseguido que póde tornar-se megalomano, ao passo que o delirante- allucinado é mais vezes um megalomano que póde vir a ter idéas de perseguição. A razão d'isto, no dizer de Foville, vem de que na loucura parcial as allucinações primitivas são, como estabelecera Lasègue, preponderantemente, senão exclusivamente as do ouvido, de um caracter, em regra, penoso ao principio e de molde, portanto, a gerarem um delirio depressivo. Ora, sendo a hypothese do allucinado-delirante mais frequente que a do delirante-allucinado, é tambem mais vulgar o perseguido-megalomano que o megalomano-perseguido. Posto isto, que serve para mostrar que não é meramente accidental a passagem de um delirio a outro, Foville, estreitando mais o assumpto, deriva á explicação do modo intimo por que ella se realisa. A transição (mais frequente, como foi dito) do delirio de perseguição ao de grandezas opera-se, ao vêr de Foville, por um processo logico. «Depois, diz elle, de terem por mais ou menos tempo attribuido as proprias allucinações a inimigos desconhecidos, contentando-se com explical-as por uma palavra mais ou menos obscura e mysteriosa, certos lypemaniacos allucinados dizem a si mesmos: Factos d'esta ordem não podem passar-se, no estado social em que vivemos, sem a intervenção de pessoas influentes e altamente collocadas; essas só, portanto, são as instigadoras dos nossos tormentos. Outros, ao contrario, reconhecendo que não succumbem nunca de um modo completo aos perigos de que se sentem cercados; suppõem ter amigos occultos, mas de um grande poder, que os protegem. Esta ordem de idéas imprime desde então o seu cunho ao conjunto das concepções e allucinações: os doentes fallam de grandes personagens que vêem por toda a parte, desconhecem a identidade real dos individuos, que os cercam e crêem que imperadores, imperatrizes e principes os visitam ou lhes enviam mensagens. No meio do delirio melancolico as idéas de grandeza adquirem realmente uma importancia preponderante. Mas as coisas podem ir mais longe ainda. Impressionados pela desproporção entre a sua posição burgueza e o poder de que devem dispôr os seus inimigos para os attingirem, a despeito de tudo; entre o apagado papel que desempenham no mundo e os moveis imperiosos que podem explicar o encarniçamento com que são perseguidos, alguns d'estes doentes acabam por a si proprios perguntarem se realmente são tão pouco importantes como parecem. Uma nova perspectiva se abre diante do seu atormentado espirito: não é já a dos outros, mas a propria personalidade que aos seus olhos se transforma. Para que os persigam d'este modo, dizem elles, é preciso que um alto interesse se dê, e isso só se comprehende porque elles façam sombra a gente rica e poderosa, porque tenham, elles proprios, direito a uma fortuna e a uma posição de que fraudulentamente os despojaram, porque pertençam a uma classe elevada de que foram afastados por circumstancias mais ou menos mysteriosas, porque não sejam seus verdadeiros paes os que como taes consideram, porque pertençam, emfim, a uma alta estirpe, as mais das vezes real»[1]. [1] Foville, La folie avec prédominence du délire des grandeurs , pag. 345. E accrescenta: «Estas idéas terão, sobretudo, tendencia a produzir-se nos casos em que, já antes de doente, o individuo teve de soffrer no seu orgulho ou nos seus interesses pelo facto da irregularidade ou do mysterio do proprio nascimento. Assim, temos notado que esta fé n'uma origem illustre, que esta crença n'uma imaginaria fortuna é relativamente frequente nos filhos naturaes que véem a cahir na loucura. São elles principalmente os preparados para ás idéas de perseguição juntarem um novo romance em que dominam as concepções de grandeza, as substituições ao nascer, as confusões de pessoas»[1]. [1] Foville, Loc. cit. , pag. 346. Como se vê, Foville não faz senão seguir a orientação psychologica de Lasègue, que explicava pela intervenção de um raciocinio a passagem, no delirio de perseguições, do periodo prodromico ao de estado. Um processo logico, essencialmente deductivo e syllogistico preside tambem, segundo Foville, á génese das idéas ambiciosas que derivam de um delirio persecutorio. Mas não é este, reconhece-o Foville, o unico modo por que o delirio de grandezas póde produzir-se; algumas vezes succede que as concepções ambiciosas se installam primitivamente, dando-se então o caso de surgirem depois idéas de perseguição, por uma sorte de propagação regressiva que, ao fim de um certo tempo, acaba por nivelar as situações. Qual é agora o mecanismo de transição? «É difficil, escreve Foville, crêr-se um doente na posse de direitos á fortuna e ao mando, figurar-se descendente de uma familia illustre, e não se sentir vexado pela modestia da posição que occupa ou pela exiguidade dos recursos de que dispõe. N'isto vê elle um signal de injustiça, que attribue á acção de inimigos poderosos; crê-se, pois, victima de manobras hostis e fabrica assim um systematico delirio de perseguições, secundario agora e consequencia das idéas de grandezas»[1]. [1] Foville, Loc. cit. , pag. 347. É ainda, como se vê, um processo logico o destinado; segundo Foville, a explicar a passagem do delirio ambicioso ao de perseguições; toda a vesania parcial, portanto, qualquer que tenha sido o seu ponto de partida e qualquer que haja de ser o seu termo, se desenrola sob a dependencia do raciocinio e dentro da esphera consciente da ideação. Os casos em que o delirio de grandezas succede immediatamente a allucinações de caracter agradavel e lisongeiro, são extremamente raros; a interpretação dos erros sensoriaes, isto é, um processo consciente e reflectido, é ainda d'esta vez origem da doença. Referindo-se á doutrina de Morel, Foville declara não a acceitar, porque o delirio hypocondriaco, ponto de partida necessario, segundo aquelle auctor, dos delirios de perseguições e de grandezas, só excepcionalmente o encontrou. De quanto vem de ser exposto a conclusão a tirar é esta: Existe um delirio systematisado de grandezas que, no seu periodo de estado, se combina sempre com idéas de perseguição, que é invariavelmente acompanhado de allucinações auditivas e que tanto póde originar-se, por via deductiva, de um preexistente delirio persecutorio, como nascer d'emblèe . Não sendo um episodio morbido, nem mesmo a phase evolutiva de uma vesania anterior, porque póde ser e é muitas vezes primitivo, esse delirio constitue uma doença com foros de autonomia e direitos a uma designação privativa: a megalomania Tal é, em resumo, a memoria de Foville na parte consagrada ao delirio parcial de grandezas. Depois dos importantes trabalhos de Lasègue e Foville, a psychiatria franceza não nos offerece, dentro d'este periodo de analyse, estudo que tenha feito progredir pela interferencia de pontos de vista novos o conhecimento dos delirios systematisados. O livro publicado por Legrand du Saulle, sob o titulo de Delirio de perseguições , em 1871, valioso, certamente, pela copia de observações e pelos detalhes de analyse clinica, nada tem, no fundo, de original, embora tentem proclamar o contrario estas ambiciosas palavras do prefacio: «A despeito da sua extrema frequencia e dos seus tão claros caracteres distinctivos, o delirio de perseguições achou-se confundido com a melancolia de Pinel, com a lypemania de Esquirol, com a monomania depressiva de Baillarger; é ahi que eu vou buscal-o para o estudar nas suas diferentes phases, para o constituir de toutes pièces e fazer d'elle uma especie á parte»[1]. Dezenove annos antes fizera Lasègue, como vimos, o que n'esta passagem se annuncia. O trabalho de Legrand du Saulle, excepção feita dos capitulos consagrados ao tratamento, á medicina legal e ao contagio do delirio, que nada teem que vêr com a constituição scientifica da doença, não é senão um desenvolvimento da memoria de Lasègue, cuja ordem de exposição adopta e cujas expressões mesmo não raro se apropria. [1] Legrand du Saulle, Le Délire des persécutions, pag. 11. Como Lasègue, Legrand du Saulle descreveu dois periodos no delirio de perseguições: um, de começo, exteriorisado por uma inquietação indefinivel e de nenhum modo comparavel á do homem normal que tem um grande interesse compromettido; outro, de estado, caracterisado pela definitiva systematisação das idéas delirantes formando um romance invariavel para cada doente. Como Lasègue, Legrand du Saulle caracterisa a inquietação do primeiro periodo comparando-a á cephalalgia e ao arrepio que são muitas vezes os precursores de graves doenças communs, mas que em si mesmos nada teem de preciso. Como Lasègue, Legrand du Saulle explica a transição do primeiro ao segundo periodo por um acto de reflexão do perseguido, por um verdadeiro raciocinio. «O doente, escreve Legrand du Saulle, diz a si proprio e aos outros que não são naturaes as inquietações e angustias que experimenta, que lhes não encontra causa no meio em que vive, no estado da propria saude, no da propria fortuna. No seu passado experimento grandes infortunios, mas sabia o motivo d'elles e não eram os mesmos os seus soffrimentos, não tinham o caracter vago e indefinido dos actuaes. Este mal-estar tão grande, estas impressões tão penosas e tão injustificadas devem ter uma causa secreta. E é assim que o doente se sente naturalmente levado a pensar que inimigos occultos, interessados em perdel-o, se reunem e procuram fazel-o soffrer»[1]. [1] Legrand du Saulle, Obr. cit. , pag. 17. Como Lasègue, Legrand du Saulle dá na symptomatologia da doença um logar preponderante ás allucinações auditivas, precedidas frequentemente de illusões do mesmo sentido. «O doente, escreve o auctor, começa por dar uma falsa significação aos ruidos reaes que escuta: uma porta que se abre, pessoas que fallam na rua, uma palavra pronunciada ao pé d'elle, os passos de alguem, tudo é materia do delirio. As verdadeiras allucinações só começam, em geral, mais tarde e n'uma epocha variavel»[2]. [2] Legrand du Saulle, Obr. cit. , pag. 43. Como Lasègue, Legrand du Saulle admitte um periodo de declinação na doença, que, sendo, em regra, incuravel, póde terminar pela cura n'uma quinta parte dos casos. Na etiologia, Legrand du Saulle constata, como Lasègue, que a doença é mais frequente nas mulheres e se realisa preferentemente na epocha por excellencia das grandes luctas da vida. Algumas considerações que faz sobre a hereditariedade , o onanismo e as perseguições infantis são de um caracter vago. Como se vê, em tudo quanto póde servir para caracterisar como especie o delirio de perseguições—na symptomatologia, na marcha, na etiologia, Legrand du Saulle não faz senão seguir a memoria de Lasègue. Vamos vêr que n'um ponto de maxima importancia, não tratado pelo eminente professor da faculdade de Paris no seu trabalho de 1852, Legrand du Saulle acompanha a memoria de Foville. Refiro-me á passagem do delirio de perseguições ao de grandezas, explicada, como vimos, por Legrand du Saulle acceita esta mesma pathogenia. «Depois, diz elle, de ter soffrido tantas hostilidades da parte de implacaveis inimigos, depois de ter sido victima de tantas intervenções devidas á magia ou ao electro- magnetismo, o perseguido recolhe-se por vezes e pensa: Como podem em pleno seculo XIX produzir-se factos d'esta natureza? É preciso admittir no fundo de tudo isto uma energica vontade superior, a de um alto personagem, a de um principe ou, talvez, de um rei! Deve ter sido necessaria, com effeito, para explicar o meu caso uma auctoridade verdadeira, que só póde existir nas mãos de millionarios, de ministros e de imperadores: quem ordenou tudo é, pois, um grande senhor ou um notavel personagem. Um outro perseguido pensará: Armam-me redes, mas eu evito-as; expõem-me a coalisões formidaveis, mas eu saio-me bem d'ellas; attentam contra a minha vida, mas eu resisto; alguem, pois, de um alto poder vela por mim e me protege; esse alguem é o chefe do estado. Eis, a partir d'aqui, toda uma ordem nova de idéas imprimindo uma outra dir