PARECER I. Consulta. II. Contextualização. III. O que é um precedente? IV. As salvaguardas institucionais e a tese do marco temporal adotadas no caso Raposa Serra do Sol e seus efeitos. V. Das possibilidades de revisão do precedente pelo Supremo Tribunal Federal. VI. Conclusão PROF. DR. LENIO LUIZ STRECK Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br I CONSULTA 1 Trata-se de consulta jurídica, encaminhada pelos ilustres advogados MARCUS VINÍCIUS FURTADO COÊLHO e VICTOR RUFINO, envolvendo o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC, de relatoria do ministro EDSON FACHIN, em regime de repercussão geral, sob o Tema 1.031, no qual se discute a “definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”. 2 O caso diz respeito, resumidamente, às possibilidades de revisão do precedente Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR) – um dos julgamentos históricos do Supremo Tribunal Federal, ocorrido em 2009 –, ocasião em que se estabeleceram as dezenove condicionantes à demarcação de terras indígenas e se fixou a conhecida tese do marco temporal. 3 Levando em conta a amplitude e a complexidade do caso sub judice, para fins de delimitação do objeto do parecer, os consulentes apresentam, objetivamente, dois quesitos: 1º Quesito: O caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR), julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, pode ser considerado, tecnicamente, um precedente? Caso positivo, quais os efeitos que ele produz(iu) no Direito brasileiro? 2º Quesito: O Supremo Tribunal Federal pode revisar sua posição sobre a matéria ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC, de relatoria do ministro EDSON FACHIN, em regime de repercussão geral, sob o Tema 1.031? Caso positivo, sob quais condições poderá ocorrer a revisão do precedente Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR)? 4 Como se vê, a controvérsia a ser aqui examinada difere-se – e muito – das abordagens que pautaram grande parte da produção dos demais pareceres jurídicos juntados aos autos do caso sub judice, visto que se 2 circunscreve à discussão teórica e dogmática-processual relativa à estabilidade e autoridade das decisões judiciais, à segurança jurídica e às expectativas normativas da sociedade, sem adentrar, porém, o mérito da questão indígena. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 5 A fim de responder os quesitos apresentados, o estudo discorrerá sobre o papel do precedente e da doutrina do stare decisis na tradição da Common Law – recentemente incorporados pelo sistema processual brasileiro – (Seção III); a partir desses elementos, retomará o tema das salvaguardas institucionais e a tese do marco temporal, adotadas pelo precedente Raposa Serra do Sol, julgado em 2009, e dos efeitos que elas produziram no ordenamento jurídico ao longo da última década (Seção IV); por fim, abordará as possibilidades de revisão do referido precedente pelo Supremo Tribunal Federal (Seção V). 6 É importante destacar que, com isso, busca-se desempenhar o papel normativo designado à doutrina no paradigma do Estado Constitucional, por meio daquilo que se entende por constrangimentos epistemológicos (Begrenzt). Afinal, como disse BERND RÜTHERS1, eles são condição de possibilidade à toda democracia autêntica que se respeite enquanto tal. 7 Não se trata, portanto, de mero exercício de erudição filosófico-jurídica. A proposta deste trabalho coincide com aquela reivindicada, ainda na década de 70, por PIETRO PERLINGIERI2, quem lamentava a renúncia da doutrina a seu papel histórico. Dizia o renomado jurista napolitano que se chegou ao paradoxo de ter a doutrina perdido prestígio e credibilidade ou haver desconhecido sua missão: a crítica das decisões judiciais e a conformação do sistema jurídico. 8 Nesse contexto, a função deste parecer é servir de farol à prestação juris- dicional, iluminando criticamente a intepretação das normas jurídicas, e, assim, contribuir efetivamente à construção intersubjetiva de uma decisão judicial mais equânime e, sobretudo, democrática. Eis o que chamo resposta adequada à Constituição, ou resposta constitucional- mente adequada. II CONTEXTUALIZAÇÃO 9 A questão indígena, especialmente no que se refere à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, alberga particularidades sociais, 3 1 RÜTHERS, Bernd. Die Heimliche Revolution Vom Rechsstaat Zum Riechterstaat. Tübingen: Mohr, 2014. 2 PERLINGIERI, Pietro. Profilo del diritto civili. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1994. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br culturais, antropológicas e de organização de Estado, cuja complexidade lhe atribui expressiva relevância nos campos jurídico e político. 10 É inquestionável que a história brasileira está marcada pela violência e hostilidade que caracterizaram o processo de colonização, incluindo a tomada de territórios das comunidades indígenas. Esse passado não está superado e sequer pode ser apagado, ou ignorado. Do mesmo modo, as conquistas e os avanços construídos a partir de decisões emblemáticas do Supremo Tribunal Federal em relação a essa matéria também não podem ser desconsiderados. É sobre isso que trata este parecer. 11 Na jurisdição constitucional brasileira, a temática assumiu protagonismo a partir da Pet 3.388/RR, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, na qual foi discutida a demarcação do território indígena denomi- nado Raposa Serra do Sol, homologada pela Portaria nº 534/2005, do Ministério da Justiça, e pelo Decreto Presidencial de 15/4/2005. 12 Em 2009, o acórdão prolatado, de relatoria do ministro AYRES BRITTO, com voto-vista do ministro MENEZES DIREITO, estabeleceu parâmetros à demarcação das terras indígenas tradicionalmente ocupadas, na forma de 19 (dezenove) salvaguardas institucionais, além de estipular a data da promulgação da Constituição de 1988 como limite às novas terras indígenas, inaugurando a chamada tese do marco temporal. 13 Com o julgamento dos embargos declaratórios, em 2013, de relatoria do ministro ROBERTO BARROSO, a controvérsia assumiu novos contornos, especialmente com relação à ausência de força vinculativa automática, apesar do reconhecimento de sua envergadura moral e persuasiva. 14 A par disso, inúmeros e significativos foram seus reflexos normativos aos longos dos últimos doze anos. No campo legislativo, por exemplo, a discussão a respeito da demarcação das terras indígenas por meio da alteração do Estatuto do Índio é suscitada pelo menos desde 2007, com o Projeto de Lei nº 490 da Câmara de Deputados. Além dos substitutivos propostos, dentre os vários projetos a ele apensados, destacam-se o 4 Projeto de Lei nº 5.993/2009, de autoria do deputado FÉLIX MENDONÇA, que pretende a incorporação das dezenove salvaguardas institucionais estabelecidas pela Suprema Corte na Pet 3.388/RR ao Estatuto do Índio, assim como o Projeto de Lei nº 6.818/2013, de autoria do deputado R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br GERALDO SIMÕES, que se presta à inclusão da tese do marco temporal, tomando por critério a data da promulgação da Constituição de 1988. 15 Administrativamente, a ratio decidendi do acórdão ensejou a edição da Portaria nº 303/2012-AGU, com o propósito de uniformizar a atuação da Advocacia-Geral da União a partir dos parâmetros adotados pela Suprema Corte aos novos requerimentos de demarcação de terras, normatizando a aplicação das salvaguardas institucionais por todos os órgãos jurídicos da Administração Pública. Sua eficácia foi suspensa em razão da oposição, à época, do julgamento dos embargos declaratórios. 16 Tendo em vista os lapsos de eficácia normativa desta portaria, sobreveio o Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU, acolhido pela Advogada-Geral da União no Parecer GMF-05 e aprovado pela Presidência da República em 15 de julho de 2017, ainda vigente. No referido parecer, conclui-se pela necessária observância, por parte dos órgãos da Administração Pública Federal direta e indireta, de todas as condicionantes constantes do acórdão prolatado pela Suprema Corte no caso Raposa Serra do Sol, em processos de demarcação de terras indígenas. 17 Atualmente, como medida de proteção ao coronavírus, todos os procedi- mentos administrativos de demarcação e autorização de entradas em território indígena foram suspensos por determinação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, por meio da Portaria nº 419/2020. 18 Apesar de tudo isso, a discussão sobre a demarcação de terras indígenas voltou ao debate nacional, com reconhecimento da repercussão geral, em 2019, ao RE 1.017.365/SC, interposto pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI, em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que confirmou reintegração de posse requerida pela então Fundação do Meio Ambiente – FATMA. 19 Em decisão liminar, de 7 de maio de 2020, o eminente relator, ministro EDSON FACHIN determinou a suspensão nacional das ações possessórias de demarcação de direitos territoriais dos povos indígenas, até o término 5 da pandemia da covid-19 ou o julgamento final da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.017.365 (Tema 1031), o que ocorrer por último. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 20 O eminente relator também concedeu tutela provisória para suspender todos os efeitos do Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, até o fim do julgamento, bem como para determinar que a FUNAI abstenha-se de rever procedimentos administrativos de demarcação de terras com base no referido parecer. 21 Paralelamente, em 2020, sobreveio o Parecer nº 00763/2020/CONJUR- MJSP/CGU/AGU, que recomenda aguardar o julgamento do RE 1.017.365/SC para que se proceda à tomada de decisões por parte da Administração Federal direta e indireta. 22 Até o presente momento, houve a admissão e o ingresso de dezenas de amici curiae, cuja atuação busca ampliar e enriquecer o debate constitucional. O julgamento foi incluído em sessão virtual iniciada no dia 11 de junho de 2021. 23 O eminente relator, ministro EDSON FACHIN, já lançou seu voto, no qual se propõe a desenvolver uma “hermenêutica constitucionalmente adequada do artigo 231 da Carta de 1988”, uma vez que a matéria – o tratamento jurídico das relações decorrentes das ocupações indígenas tradicionais – ainda não foi contemplada com eficácia vinculante. 24 Todavia, em razão de pedido de destaque do ministro ALEXANDRE DE MORAIS, procedeu-se à inclusão do feito na sessão telepresencial designada para dia 30 de junho de 2021. Posteriormente, o julgamento foi adiado para o próximo dia 25 de agosto. 25 Assim, diante do efeito vinculante que recai sobre o recurso extraor- dinário a ser julgado sob o regime da repercussão geral (Tema 1.031), levando em conta as particularidades, interesses e conflitos que sempre envolvem a mudança de entendimentos sobre temas delicados – como a questão indígena, social, ambiental –, os consulentes indagam, tecnica- mente, a respeito das possibilidades de revisão do caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR), julgado em 2009, pelo Supremo Tribunal Federal. III 6 O QUE É UM PRECEDENTE? 26 Deciding on the basis of what was done when the same matter had to be resolved in the past. When we decide in this way, we decide according R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br to precedent3. Essas são as palavras com as quais NEIL DUXBURY inicia seu livro, “Nature and Authority of Precedent”, um clássico sobre o tema. 27 Tal passagem demonstra que a pergunta sobre o que é um precedente remete, inicialmente, à compreensão das bases de uma tradição jurídica diferente daquela que conforma o Direito brasileiro – no caso, a Common Law –, o que pressupõe uma imersão teórica nos conceitos e institutos que a estruturam historicamente4. 28 Como se sabe, a questão em torno da segurança jurídica sempre foi uma das preocupações comuns entre Civil Law e Common Law. No primeiro caso – nos sistemas jurídicos de origem romano-canônica –, o papel de garantir estabilidade (como previsibilidade) foi conferido à figura da lei; no segundo – na matriz jurídica anglo-saxão –, ela foi buscada na tradição e, por isso, vem associada à autoridade dos precedentes5. 29 A doutrina dos precedentes possui como elemento central a exigência de vinculação nos julgamentos de casos análogos. Caracteriza-se, desse modo, como “a evolução histórica da filosofia do Common Law, baseada na casuística”6. Nesse sentido, a diferença entre a doutrina dos precedentes e a regra do stare decisis é muito sutil, estando essa última relacionada à identificação dos elementos de uma decisão judicial que serão vinculantes. É daí que surge a diferença entre holding (aquilo que materialmente justifica a decisão judicial em determinado sentido, e não outro) e dictum (elementos de persuasão cuja existência não é essencial ao provimento judicial). 30 O caráter vinculante dos precedentes e a sua justificação foi tema de grandes disputas teóricas. Um precedente não vincula apenas por autorictas. Ele vincula por sua substância fundamentadora universalizável. Isto é, de “dentro do precedente” devemos buscar o que 3 Tradução livre: “Decidir sob fundamento do que foi feito quando a mesma matéria foi solucionada no passado. Quando decidimos desse modo, decidimos de acordo com um precedente” (DUXBURY, Neil. Nature and Authority of Precedent. Cambridge: 7 Cambridge University Press, 2008). 4 Cf. SCHAWARTZ, Bernard. The Law in America. New York: McGraw-Hill, 1974. 5 Ver, para tanto, MERRYMANN, John Henry. The Civil Law Tradition. Redwood City: Stanford University Press, 1969. 6 STRECK, Lenio; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br dele é generalizante independentemente dos fatos tratados. É o que se chama de ratio decidendi, a holding da qual emana a universalização. 31 Nesse sentido, especialistas sobre o tema, como MARTIN KRIELE7 e WOLFGANG FIKENTSCHER8 consideram a ratio decidendi de um caso como o mérito jurídico autonomamente reconhecido à quaestio disputata, recaindo sobre o juiz a responsabilidade pela tarefa da contínua reconstituição do conjunto que o conforma. 32 Assim, mais do que uma decisão proferida por um Tribunal Superior, o precedente representa uma “depuração histórico-hermenêutica” por parte desses tribunais. Em outras palavras: o caráter vinculante de um precedente volta-se para os fundamentos jurídicos imprescindíveis a justificar a solução do caso concreto – o que leva à holding desse caso. 33 Precedente, assim, também significa “obediência hermenêutica” a uma decisão sobre um caso, em virtude de seu potencial de capilarização sistêmica. Daí porque uma das funções dos precedentes consiste, justamente, em possibilitar a aplicação do Direito de modo isonômico e coerente, exercendo o papel de “efeito vinculante persuasivo”9. 34 Assim, precedentes articulam passado e futuro em uma dupla dimensão: de história e de consequência, como adverte DUXBURY. Contudo, para além do que afirma o jurista norte-americano, penso que outro aspecto não pode ser desconsiderado: a igualdade, à qual se associa – inevitavel- mente – a noção de equanimidade (fairness). 35 Pode-se concluir, portanto, que inexiste – a não ser que se trate, por exemplo, de uma súmula – um elemento formal, técnica ou procedi- mento, que converta uma decisão judicial em um precedente. Na verdade, a decisão se transforma, de modo intencional ou não, em um precedente quando passa a ser reconhecida e aplicada em casos futuros pela força argumentativa que seus fundamentos assumem num horizonte histórico. 8 7 KRIELE, Martin. Recht und praktische Vernunft. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979. 8 FIKENTSCHER, Wolfgang. Methoden des Rechts in vergleichender Darstellung. Tübingen: Mohr, 1975. 9 STRECK, ABBOUD, op. cit. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 36 Justamente em razão disso, ao contrário do que se pode imaginar, os precedentes proporcionam dinamicidade ao sistema jurídico, porque sua existência exige um esforço interpretativo de constante atualização, seja em favor da revitalização (de sua aplicação) ou de sua superação (de sua revogação). Nas palavras de CASTANHEIRA NEVES, trata-se “do sábio dúctil equilíbrio, praticamente conseguido, entre estabilidade e a continuidade jurídicas, por um lado, e a abertura e a liberdade jurisdicionais, de outro”10. 37 Mais uma vez: seguir um precedente, portanto, pressupõe avaliar a consistência de seu fundamento para a resolução de um novo caso. É por isso que, quando um precedente deixa de ser aplicado, ele gera um ônus argumentativo ao intérprete; a ele cabe de demonstrar, explicitamente, os fundamentos que justificam, em concreto, o seu afastamento. 38 Eis o ponto. Como superar ou afastar um precedente? Na tradição jurídica da Common Law, há duas maneiras de se desvincular de um precedente: distinguishing e overruling, ambos considerados espécie de judicial departures. No primeiro caso, tem-se apenas a modificação da ratio decidendi do precedente pela existência de elementos fáticos (elementos materiais) distintos (distinguishing); no segundo, verifica-se um repúdio a ratio decidendi, que causa a anulação/revogação do precedente (overruling). Ou seja, na última hipótese, por mais que os casos sejam materialmente idênticos, entende-se como necessário o estabelecimento de um padrão normativo diferente para a tomada de decisão. Aliás, no Direito brasileiro, ambas as técnicas foram positivadas no inciso VI do § 1º do artigo 489 do Código de Processo Civil. 39 Conforme a lição de FERNANDO PINTO BRONZE, o ponto nodal da definição de um precedente está no “prudencial reconhecimento da semelhança, ou diferença, da específica densidade jurídica dos casos que justificadamente se comparam, como o momento marcante e o filtro demarcante da procedência, ou da improcedência, de um precedente”11. 9 10 NEVES, António Castanheira. O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais. Coimbra, 1983, p. 669. 11 BRONZE, op. cit., p. 591. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 40 O renomado catedrático conimbricense, trazendo à colação o ensina- mento de seu mestre, CASTANHEIRA NEVES12, sustenta que o direito radica na prática, uma vez que também se caracteriza pela incontornável historicidade que define o caráter nuclearmente analógico da reconstituição de qualquer dos dois horizontes em discussão. 41 Portanto: quando um precedente é revogado – isto é, quando ocorre o overruling –, proporcionando uma mudança radical no entendimento da Corte, isso se deve ao fato de sua aplicação não se mostrar mais racionalmente justificável13. É por esse motivo, então, que o overruling também pode ser entendido como uma “ação judicial radical, a ser tomada somente em último caso”14. 42 De todo modo, é preciso deixar bem claro que a revisão de um precedente, sob quaisquer das hipóteses admitidas pela tradição anglo- saxã – distinguishing ou overruling –, sempre pressupõe o dever de exaustiva fundamentação. Em outras palavras: se o precedente não é aplicado por ausência de correspondência fática entre os julgados, ou se ele deve ser superado no que diz respeito à sua ratio decidendi, em ambas as situações, demanda-se a detalhada exposição das razões públicas para tanto. Isso exige que o afastamento ou a adaptação da aplicação do precedente sejam expressa e exaustivamente tematizados. 43 Muito embora vinculado a uma tradição jurídica diversa (Civil Law), é inegável que Direito brasileiro vem intensificando sua aproximação com a Common Law, sobretudo a partir da positivação de um conjunto de institutos de matriz anglo-saxã, promovida em larga medida pelo Código de Processo Civil. Aliás, sobre esse tema, de há muito, venho denun- ciando os problemas que envolvem a importação de teorias e institutos estrangeiros sem a adequada adaptação contextual, especialmente se desprovida de uma virada paradigmática no plano hermenêutico. 44 Todavia, em face desse contexto, a autoridade das decisões de nosso Supremo Tribunal Federal também se conecta à coerência na aplicação 10 12 CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. 13 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. 14 “The fact is, nevertheless, that overruling often is considered to be radical judicial action, to be taken only as a last resort” (DUXBURY, op. cit., p. 122). R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br do Direito. E, então, essa exigência de que o conjunto das decisões da Corte constituam um padrão decisório – que possa ser compreendido como vinculação interpretativa interna – passa, diretamente, pela criteriosa fundamentação dos motivos que levaram ao afastamento de determinado entendimento, isto é, as razões jurídicas que conduziram à alteração de posicionamento. É a isso que corresponde o dever de estabilidade, coerência e integridade, instituído pelo artigo 926 do Código de Processo Civil. 45 No entanto, é oportuno saber diferenciar, tecnicamente, o sentido de jurisprudência em relação aos precedentes. A jurisprudência caracte- riza-se por um conjunto de reiteradas decisões que, no seu todo, indica uma tendência, um comportamento dos tribunais (de última instância ou não). Por isso, sua função principal consiste em delimitar e estabe- lecer regras jurídicas a serem consolidadas em verbetes ou enunciados sumulares. 46 Já o vocábulo precedente assume um sentido plurívoco no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal. Por vezes, precedente é empregado como aquilo que efetiva e formalmente vincula, ou seja, a decisão que vincula em razão de sua autoridade, e não pela substância do padrão normativo que institui. Entretanto, se examinarmos o sentido originário na Common Law, veremos que não existe nenhuma regra que explicite a obrigatoriedade de aplicação dos precedentes. O que há, historica- mente, é a doutrina do stare decisis, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive expressamente em mais de um julgado da lavra do ministro EDSON FACHIN15. 47 Isso já seria o suficiente para indagar: quando a Corte admite que o novo Código de Processo Civil instituiu uma espécie de stare decisis no Direito brasileiro, esse fato já não constitui, ainda que obiter dictum, um precedente? Penso que sim. Afinal, quando o Supremo Tribunal Federal afirma que existe um stare decisis, ele o faz para justificar a vinculação do caso que está julgando a um caso anterior. 11 15 Nesse sentido: RE 655.265, Rel. Min. LUIZ FUX, Red. Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, STF, julgado em 13/4/2016. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 48 Por isso, um precedente implica o reconhecimento de que determinado pronunciamento judicial é paradigmático por seus fundamentos. Veja- se: é por seus fundamentos que ele se torna paradigmático, e não pelos fatos dos quais trata. Ou seja, é o julgamento que se torna paradigmático por causa de sua ratio decidendi. E, assim, materialmente, assume a forma de um padrão normativo a ser seguido (ou a ser revisado, sob critérios de rigorosa fundamentação jurídica). Não é à toa que, ao julgar, o Supremo Tribunal Federal frequentemente fundamenta seus acórdãos sobre os seus precedentes, que, em verdade, significam os casos já decididos pela Corte em dado sentido. IV AS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS E A TESE DO MARCO TEMPORAL ADOTADAS NO CASO RAPOSA SERRA DO SOL E SEUS EFEITOS 49 Em 19 de março de 2009, o Supremo Tribunal Federal julgou a Pet 3.388/RR, de relatoria do ministro AYRES BRITTO, ocasião em que decidiu pela constitucionalidade da Portaria nº 534/2005, expedida pelo Ministério da Justiça, e do Decreto Presidencial de 15/4/2005. Em seu conjunto, esses atos administrativos homologavam a demarcação promovida pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI, referente à terra indígena Raposa Serra do Sol, localizada no Estado de Roraima. 50 Ao julgar o caso, o Tribunal Pleno proferiu uma decisão histórica, tanto por seu conteúdo quanto pela fixação de uma posição institucional relativa à matéria, considerada de acordo com a Constituição. Ou seja, materialmente, o Supremo Tribunal Federal promoveu um grande avanço na tutela das comunidades indígenas, ao passo que também criou condições formais – regras e procedimentos – para a sua implementação. 51 É nesse sentido que o referido julgamento possui um grande diferencial: como decorrência das discussões jurídicas relacionadas ao mérito do caso e conectadas a elas, a Corte normativizou seu entendimento no dispositivo do acórdão, sob a forma de 19 (dezenove) salvaguardas institucionais (ou condicionantes), além da adoção da conhecida tese do 12 marco temporal. 52 Como se sabe, a tese do marco temporal delimitou o reconhecimento do direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas à data da promulgação R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br da Constituição de 1988, nos termos de seu artigo 231. Associadas a isso, as salvaguardas institucionais, propostas pelo ministro AYRES BRITTO e ampliadas pelo voto do ministro MENEZES DIREITO, trataram de outros aspectos mais diretamente relacionadas às terras (posse, usufruto, competência para demarcação, etc.). 53 A justificativa para essa sistematização normativa dos principais componentes materiais do decisum – em seu conjunto, a tese central do marco temporal aliada às 19 salvaguardas institucionais – está amparada em dois argumentos assumidos expressamente: (i) a “importância histórico-cultural da causa”; (ii) a consolidação do entendimento “com repercussão para o futuro”. 54 A estrutura redacional desse quadro normativo que compõe o dispositivo da decisão revela a presença de um componente notadamente legislativo na atuação do Supremo Tribunal Federal, em razão de sua generalidade, diante do grau de universalização e abstração que a caracterizam. Aliás, essa foi a crítica que realizei na primeira análise que fiz do caso, na obra 30 Anos da Constituição em 30 julgamentos: uma radiografia do STF16. 55 Para além das minhas objeções no plano teórico, há duas conclusões incontestáveis em relação a essa decisão: a primeira é que ela representa um grande avanço em termos de conquistas civilizatórias; a segunda diz respeito justamente a essas características – generalidade, universalização e abstração –, que também correspondem aos elementos que conduzem à configuração de um precedente. É disso que se trata: há algo no precedente que transcende. Por isso, mesmo alterando os fatos no futuro, a ratio decidendi funciona como um princípio, um padrão – a holding da qual se irradiam efeitos normativos. 56 Em outras palavras: é certo que um precedente ganha força normativa – ou seja, adquire a condição, ou status, de precedente – independente das pretensões de sua aplicabilidade pro futuro. Isso significa dizer que um precedente não nasce “precedente”. Ora, precedentes são manifestações do Case Law, da casuística; são decisões que, por sua relevância no 13 passado e pela inegável consistência de seus fundamentos, passam a ser 16 STRECK, Lenio Luiz. 30 Anos da Constituição em 30 julgamentos: uma radiografia do STF. São Paulo: Forense, 2018, Cap. 10. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br reconhecidas como referencial sobre como melhor decidir e, assim, assumem a dimensão de substância de um precedente, como algo a ser observado e, então, seguido. 57 Por isso, tornar-se um precedente é algo que não acontece no plano enunciativo-explicativo, mas tem como condição de possibilidade a dimensão hermenêutica. Ou seja: para que um precedente se forme, não basta que sua autoridade seja afirmada ou declarada como tal; é preciso que ele adquira a força argumentativa de um precedente. Quando isso acontece, então, são geradas expectativas legítimas nos cidadãos – e também ao próprio Estado –, que passam a agir orientados a partir daquilo que foi deliberado pela Corte17. 58 CASTANHEIRA NEVES18, cuja maestria contribuiu à derrubada dos assentos com força vinculante, justamente porque eram conceitos abstratos, destaca importantíssimos aspectos que demonstram que o elemento vinculante decorre do caso concreto naquilo que denomina objetivação normativo-dogmática. É ela que torna, ao fim e ao cabo, um precedente normativamente vinculante, ou seja, converte o precedente em fonte de direito, traduzido em Juristenrecht (direito judicial), sobretudo nos casos complexos, marcados pela ausência uma normatividade preestabelecida. 59 Nessa mesma linha, PINTO BRONZE19 afirma que os precedentes representam “referentes circunstancialmente mobilizáveis” que traduzem essa historicidade, desonerando o juiz, ainda que parcialmente, e concorrendo para assegurar a racionalidade da tarefa do seu experencial enriquecimento. Assim, quando se conclui pela aplicação de um precedente – ou seja, pela semelhança entre o fundamento da decisão de um problema-objetivado e o de um novo problema –, então isso significa afirmar a respetiva vinculação normativa. 60 Tudo isso para dizer – objetiva e categoricamente – que o caso Raposa Serra do Sol possui os elementos conformadores de um autêntico precedente, reunindo todas os requisitos necessários para ser aplicado 14 17 Ver, para tanto, ABBOUD, Georges. Direito constitucional pós-moderno. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 651. 18 CASTANHEIRA NEVES, O instituto dos “assentos”, op. cit. 19 BRONZE, op. cit., p. 591. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br em casos semelhantes, enquanto não houver razões – de fato, mas, sobretudo, de direito – que legitimem a sua revisão e eventual superação. 61 Desse modo, a compreensão do julgamento do caso Raposa Serra do Sol em sua dimensão histórica, por si só, indica a confiança depositada na estabilidade de seu provimento judicial, cujo propositum jamais se dissociou da pacificação dos conflitos, ainda que sabidamente limitada no mundo prático. Sem precisar adentrar aqui nos avanços normativos por ele produzidos, ou ainda no peso argumentativo de sua ratio decidendi, há um plus: ao julgar esse caso, o Supremo Tribunal Federal projetou, deliberadamente, o âmbito da proteção normativa para o futuro, ao estipular as 19 salvaguardas institucionais e fixar a tese do marco temporal, elevando esse quadro normativo à condição de regras jurídicas a serem aplicadas prospectivamente. 62 Sob outra perspectiva, contrario sensu, também seria possível argumentar que o julgamento dos embargos declaratórios opostos à Pet 3.388/RR definiu que, por se tratar de ação popular, os efeitos do julgamento do caso Raposa Serra do Sol são desprovidos de força vinculante em sentido técnico. 63 Ora, sobre isso não há dúvidas. É evidente que, em sentido formal, a decisão não produz efeito vinculante, característica de provimentos judiciais típicas de controle concentrado e do regime da repercussão geral. A controvérsia, aqui, não trata disso. O plano de discussão é outro: o julgamento do caso Raposa Serra do Sol constitui – materialmente – um precedente. 64 Ademais, a própria decisão em sede de embargos declaratórios fez ressalvas quanto à ausência de efeito vinculante. São elas: (a) a ausência de força vinculante da decisão deve ser compreendida tão somente sob a perspectiva técnica; (b) a ratio decidendi adotada pela Corte pode, sim, ser extensível a outros casos similares, desde que isso não ocorra de modo automático; (c) como consequência, o provimento judicial “ostenta força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do 15 País”; (d) portanto, a superação de suas razões demanda um “elevado ônus argumentativo”. Como se vê, a Corte aponta para a existência de um verdadeiro precedente, o que pode ser observado a partir de três R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br assertivas: a possibilidade de extensão; a força moral e persuasiva; a exigência de elevado ônus argumentativo. 65 Mais uma vez: por seus próprios termos – seja pelo ineditismo de seu conteúdo, seja pelo que a própria Corte definiu sobre os critérios para a sua aplicação pro futuro –, o julgamento do caso Raposa Serra do Sol pode ser reconhecido como um autêntico e genuíno precedente, caracterização essa que independe da existência de um verniz formal (ou técnico) para a produção de efeito normativos. 66 Tanto é assim que o precedente – o julgamento do caso Raposa Serra do Sol – produziu impactos nas esferas administrativa, legislativa e judicial. No âmbito administrativo, o provimento foi incorporado à Portaria nº 303/2012-AGU, bem como ao Parecer n. 001/2017/GAB/ CGU/AGU, reestabelecendo as condicionantes como parâmetros à Administração Pública Federal direta e indireta. 67 No plano judicial, por sua vez, o precedente foi seguido e aplicado no julgamento dos seguintes casos: RMS 29.542/DF (Rel. Min. CARMEN LUCIA), RMS 29.087/DF (Rel. Min. GILMAR MENDES), ARE 803.462/MS (Rel. Min. TEORI ZAVASCKI) e o RE 106.7542/RS (Rel. Min. LUIZ FUX). Em todos esses julgamentos, a ratio decidendi utilizada no julgamento da Pet 3.388/RR esteve em estrita conformidade com o parâmetro interpretativo instituído pela Pet 3.388/RR. 68 Aliás, nesse sentido, cumpre referir que, em 2016, na ocasião do julgamento do RMS 29.087/DF, o ministro CELSO DE MELLO caracterizou como “altamente conveniente” a aplicação das condicionantes fixadas pela Pet 3.388 “sempre que se tratar de demarcação administrativa de terras indígenas”. Ainda no mesmo julgamento, o ministro GILMAR MENDES reiterou que as orientações fixadas pelo caso Raposa Serra do Sol não são apenas “direcionadas a esse caso específico, mas a todos os processos sobre o mesmo tema”, inclusive porque muitos dos enunciados produzidos “não se aplicam à Raposa Serra do Sol, até porque já estava realizado”. Igualmente, a ministra CARMEN LUCIA 16 consignou que as diretrizes delineadas pela Pet 3.388 “haveriam de ser consideradas em casos futuros, pela força jurídico-constitucional do precedente histórico”. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 69 Como se pode perceber, ao julgar o caso Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal produziu norma jurídica, resultante da interpretação autêntica levada a cabo pelo guardião da Constituição. A controvérsia a respeito do seu caráter formalmente vinculante, ou não, revela-se um problema secundário. Isso porque, a partir dessa decisão – que se tornou um precedente, porque instituiu notável padrão normativo –, a Corte e os demais tribunais do país passaram a julgar controvérsias similares. O mesmo se estendeu à Administração Pública, cuja atuação restou pautada pelo precedente ao longo dos últimos doze anos. 70 Portanto, desde 2009, quando julgado o mérito da Pet 3.388/RR (Raposa Serra do Sol), fixou-se um padrão normativo sobre como o Estado deve se comportar na demarcação das terras indígenas, consubstancializado por meio de 19 salvaguardas institucionais e, igualmente, pela tese do marco temporal. Não há dúvidas de que esse julgamento deve ser reconhecido como um precedente. E, assim sendo, sua revisão exsurge como possibilidade, porém implica o ônus argumentativo de explicitar, concretamente, por que sua ratio decidendi deveria ser superada. V DAS POSSIBILIDADES DE REVISÃO DO PRECEDENTE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 71 Com efeito, a atuação da Suprema Corte nos Estados Unidos torna possível a compreensão sobre o valor de um precedente. Ao longo da história, seus pronunciamentos foram emblemáticos e, por certo período, definitivos em relação a temas controversos: Dred Scott v. Sandford (1857), uma das mais polêmicas atuações da Suprema Corte, sustentou juridicamente a escravidão; Miranda v. Arizona (1966) incorporou uma série de garantias ao acusado durante a persecução penal; Roe vs. Wade (1973) reconheceu a constitucionalidade do direito ao aborto. 72 Naturalmente, o Direito norte-americano é vasto em exemplos de 17 precedentes que foram revisados pela própria Corte. Para ilustrar, West Coast Hotel v. Parish (1937) superou Lochner v. Nova Iorque (1905), que declarava inconstitucional as medidas dos governos estatais que R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br definiam o limite máximo da jornada de trabalho; Brown v. Board of Education (1954) revisou Plessy v. Fergunsson (1896), que autorizava a segregação racial sob a doutrina “iguais, porém separados”; Lawrence v. Texas (2003) revisou Bowers v. Hardwick (1986), que admitia legislação estadual no sentido da criminalização da prática da sodomia entre pessoas do mesmo sexo. 73 Muitos são os exemplos, todos da Common Law. Afinal, lá foi onde se desenvolveu a cultura do precedente. Por isso, os norte-americanos têm bem presente a dimensão da responsabilidade política que marca as decisões da Suprema Corte, sobretudo quando se põe em marcha o movimento de revisar e superar um precedente. 74 Ora, se precedentes não fossem passíveis de revisão – e engessassem o sistema jurídico com uma posição insuperável sobre determinada matéria –, a escravidão perduraria até os dias de hoje, tal qual sustentada por Dred Scott v. Sandford (1857). Por outro lado, se fosse tão simples revogar um precedente, Brown v. Board of Education (1954) não seria considerada uma das decisões mais difíceis da história da Suprema Corte, com a construção da unanimidade dos votos, sem divergência, e de uma estratégia temporalmente moderada para a produção de seus efeitos. 75 Com isso, quero dizer que a guinada interpretativa, pela via da superação de precedente, é possível – e muitas vezes necessária –, porém um processo nada simples, ou fácil. 76 Talvez essa seja a dificuldade brasileira. De fato, não faz parte de nossa tradição jurídica compreender as decisões judiciais como fontes prioritárias na definição de temas sensíveis. Aqui, historicamente, essa responsabilidade foi destinada ao Parlamento, via elaboração de códigos e estatutos, ou melhor, a lei escrita. Como se sabe, esse fenômeno de aproximação com a Common Law, que reconhece a força normativa de um precedente, ainda é bastante recente. E, por isso mesmo, exige um cuidado redobrado. 18 77 No fundo, para além da contínua simbiose que vem ocorrendo entre a Common Law e a Civil Law, existem preocupações comuns a essas duas tradições. Uma delas, certamente, é a tensão entre passado e futuro à luz R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br da segurança jurídica, presente em sofisticadas produções teóricas, cujos autores transcendem as distinções entre essas duas matrizes do pensa- mento jurídico ocidental. 78 Afinal, o ideal moderno de segurança jurídica não conduz a uma concepção estática do Direito. Portanto, é nesse constante diálogo entre a estática – que institui – e a dinâmica – que possibilita a oxigenação do instituído – que reside a pergunta sobre a possibilidade de superação de um precedente. E, a toda evidência, por mais paradigmática que seja uma decisão – como é o julgamento do caso Raposa Serra do Sol –, ela nunca está imune a rupturas interpretativas. 79 Assim, se a ausência de atribuição de eficácia vinculante na forma como prevê o sistema jurídico brasileiro não subtrai do julgamento da Pet 3.388/RR o status de precedente, a questão central a saber pode ser formulada do seguinte modo: no caso sob exame (RE 1.017.365/SC), existem as condições necessárias para a revisão daquilo que foi decidido no caso Raposa Serra do Sol? 80 Com efeito, a compreensão do que sejam essas condições necessárias para que se proceda ao overruling envolve duas dimensões, que se encontram juridicamente conectadas: a existência de razões de fato e de razões de direito para que o precedente Raposa Serra do Sol seja objeto de revisão. 81 As razões de fato correspondem, por um lado, à demonstração da existência de um contexto fático análogo ou similar entre o precedente e o novo caso sob judice. É essa análise pontual que confere condições para que o precedente seja aplicado ou não, o que, consequentemente, poderá conduzir à realização do distinguishing, se verificadas diferenças entre as situações concretas. 82 Na especificidade da controvérsia, isso implica(ria) confrontar os elementos concretos do caso Raposa Serra do Sol com aqueles do RE 1.017.365/SC. Assim, a exposição das razões de fato – para que se possa 19 aplicar ou revisar um precedente – corresponde à análise, por exemplo, das pretensões jurídicas dos litigantes (inclusive se possuem iguais fundamentos ou não); do comportamento estatal no processo de demarcação; da forma de ocupação tradicional das terras, especialmente R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br em relação à presença dos indígenas na data da promulgação da Constituição, entre outros aspectos. 83 As razões de direito dizem respeito à explicitação dos fundamentos jurídicos para a revisão do precedente. Isso demanda justificar, primeiro, à luz do que já foi definido no passado, porque a nova controvérsia pode ser considerada um leading case. Ainda, apresentar as razões de direito pressupõe a identificação da ratio decidendi do precedente, para que então seja possível confrontá-la com nova discussão judicial. O propósito disso é evidenciar, com clareza, por que o precedente precisa ser modificado, isto é, por que ele se tornou frágil ou inadequado diante do caso concreto. Por fim, todo esse movimento também implica um esforço hermenêutico para demonstrar – se for o caso – em que medida, no lapso temporal entre o precedente e o novo caso a ser julgado, houve alteração do sentido normativo relacionada à matéria, no plano da intersubjetividade. 84 Nesse contexto, uma adequada fundamentação exige a exposição das razões de direito que ensejam a superação do precedente. Isso demanda, por exemplo: (a) demonstrar quais os motivos para que o RE 1.017.365/SC seja considerado a oportunidade ideal de revisar o precedente, ou seja, explicitar o que faz dele um autêntico leading case; (b) justificar por que a decisão no julgamento do caso Raposa Serra do Sol – um acórdão prolatado com o selo da unanimidade – necessita de revisão depois de doze anos sendo observado, tanto na esfera judicial quanto adminis- trativa, em razão de sua inegável força normativa; (c) reconstruir os elementos fáticos do caso Raposa Serra do Sol e, sobretudo, identificar sua ratio decidendi; (d) explicitar por que o precedente foi seguido e aplicado em outras decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal e qual a diferença para nova situação, que enseja a sua revisão; (e) sopesar os efeitos resultantes da superação do precedente Raposa Serra do Sol, uma vez que toda decisão da Suprema Corte sempre produz determinada violência. 85 Ocorre que, examinando o voto do eminente relator, ministro EDSON 20 FACHIN – o único proferido até então em face do início do julgamento virtual –, não é possível identificar, a priori, as razões de direito – e R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br muito menos as razões de fato – que levaram à revisão do precedente Raposa Serra do Sol por meio desse caso específico (RE 1.017.365/SC). 86 Nesse sentido, valeria aprofundar o exame de alguns pontos específicos, que podem ensejar a interação entre o caso Raposa Serra do Sol e a discussão promovida pelo RE 1.017.365/SC (Tema 1.031). Por exemplo: em seu voto, o eminente relator, ministro EDSON FACHIN, afirma que a decisão tomada na Pet 3.388/RR não produziu a pacificação almejada, mas, longe disso, provocou o “acirramento dos conflitos e piora sensível da qualidade de vida dos índios no Brasil”. A partir de quais indícios e elementos é possível concluir que a situação atual resulta, necessariamente, dessa decisão prolatada pela Corte? A meu ver, esse é um argumento muito sério que demanda demonstração concreta, material. Afinal, se verificarmos efetivamente que o caso Raposa Serra do Sol não trouxe avanços – e, portanto, não representa uma conquista no plano normativo –, mas, ao contrário, ainda causou maior prejuízo à questão indígena, então talvez tenhamos que reconhecer, de fato, a necessidade de revisar o precedente. Tudo isso dependeria, todavia, de elementos concretos. Ademais, seria necessário adentrar o campo da prognose, da investigação, o que, concessa venia, refoge ao escopo da questão posta no recurso sob análise – no qual, sublinhe-se, nenhuma das partes busca a revisão do precedente Raposa Serra do Sol. 87 Afinal, qual é o sentido do precedente instituído pelo caso Raposa Serra do Sol? Qual a pré-compreensão do mérito do problema de direito que importa decidir no RE 1.017.365/SC? Qual é a questão normativamente relevante, da qual fala JOACHIM HRUSCHKA20? Nada disso aparece no voto do eminente Relator. 88 Tudo indica que o problema passa por saber o que o próprio Supremo Tribunal Federal concebe como precedente. Se entende que precedente possui a função de regra, efetivamente o ministro EDSON FACHIN pode ter razão, como explicarei em seguida. Porém, se a Corte entende que o precedente é mais do que isso, porque contém princípios fundados na lei e na Constituição, então o ministro EDSON FACHIN não tem razão. 21 20 HRUSCHKA, Joachim. Das Verstehen von Rechtstexten: zur hermeneutischen Transpositivität des positiven Rechts. München: Beck, 1972. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 89 É por isso que, com base nessa premissa – a meu ver, equivocada –, o voto lançado pelo eminente relator, ministro EDSON FACHIN, não avança na direção de um overruling do caso Raposa Serra do Sol. Para ele, repito, um precedente equivale a uma regra. Tal ponto de vista alia-se à doutrina de alguns doutrinadores como DANIEL MITIDIERO e LUIZ GUILHERME MARINONI21, segundo os quais precedentes são produto de atos de vontade das Cortes (de Vértice). 90 Todavia – e esse é o ponto fulcral –, se precedentes são o resultado de atos de vontade, então nada que vem antes vincula propriamente o julgador. Não nos esqueçamos que a tese segundo a qual a interpre- tação é um ato de vontade encontra-se enraizada no pensamento de um jurista que não se opõe ao decisionismo, HANS KELSEN22, para quem o juiz, mesmo fora da moldura, pode decidir livremente e, assim, produzir norma jurídica. 91 Ora, caso se leve às últimas consequências a ideia de que o precedente é uma regra, então será preciso reconhecer que sua vinculação ao futuro torna-se uma tarefa praticamente impossível. Essa posição é tributada a ARTHUR GOODHART23, quem considera a ratio decidendi como os fatos materiais e a decisão judicial que se baseou em tais fatos. 92 Ocorre que, nesses termos, há dúvidas até mesmo sobre a necessidade de se falar em ratio decidendi, porque a vinculação estaria adstrita aos fatos do caso anterior. Nessa circunstância, por exemplo, o célebre caso Marbury v. Madison, de 1803, jamais poderia ser considerado um precedente, porque nunca mais se repetiu algo semelhante na história. 21 Essa crítica faço ao ilustre processualista, quando fala em Cortes de Vértice e que estas estatuem precedentes para o futuro (MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da Corte Suprema. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013). Todavia, mesmo autores que compartilham das teses de MARINONI dizem que: “os juízes e tribunais interpretam para decidir, mas não existem para interpretar; a função de atribuição de sentido ao Direito ou de interpretação é reservada às Cortes Supremas. No momento em que os juízes e tribunais interpretam para resolver os casos, colaboram para o acúmulo e a discussão de razões em torno do significado do texto legal, mas, depois da decisão interpretativa elaborada para atribuir sentido ao Direito, estão obrigados perante o precedente" (MITIDIERO, Daniel. Dos modelos de Cortes de Vértice: cortes superiores y cortes supremas. In: TARUFFO, 22 Michele et al. La mision de los tribunales supremos. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 108). No mesmo sentido: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; ARENHART, Sérgio Cruz. O novo processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 22 KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. Wien: Deuticke, 1960. 23 GOODHART, Arthur. Determining the Ratio Decidendi of a Case. Yale Law Journal, v. 40, n. 2, p. 161-183, 1930. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 93 Na verdade, o que se repetiu foi aquilo que se tem como ratio decidendi, ou seja, sua holding principiológica. Na mesma linha, vale lembrar o famoso caso Riggs v. Palmer. Qual é a holding? O que vincula? Seria o fato de que um neto matou o avô? Não. A holding – que transcende o fato – é ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza. Ou seja, não importa como se deu, exatamente, o assassinato do avô. É a ratio decidendi que vincula. Tanto é que, desde seu julgamento, em 1889, o padrão normativo instituído por esse precedente vem sendo aplicado aos mais diversos campos do Direito, ainda quando não haja avôs, nem assassinatos. Assim também é no caso Raposa Serra do Sol. O caso e seus fatos são irrepetíveis. O que é repetível, isso sim, é o princípio, a ratio decidendi que exsurge desse caso. 94 É por essa razão que, quando se discute como o papel e o funcionamento dos precedentes nos sistemas jurídicos contemporâneos – inclusive na tradição da Civil Law –, a lição de RUPERT CROSS24 continua válida: o que sobreleva em um precedente é o princípio que serve de base à decisão, porque a ratio decidendi é definida pela norma jurídica, expressa ou implicitamente, tratada pelo julgador como um elemento imprescindível para alcançar sua conclusão judicial. Ou seja, a linha de raciocínio adotada pelo julgador constitui parte fundamental para se reconstruir o percurso da decisão. 95 Veja-se, insisto, um precedente é sempre provisório. O mesmo ocorre inclusive com as súmulas. A questão a saber, entretanto, é como identi- ficar o momento em que se dá o turning point hermenêutico? Mais do que isso: essa guinada interpretativa deve ser dotada de certo potencial prospectivo, tanto no que se refere à universalidade quanto à tempora- lidade. Por outro lado, ela não pode conduzir à insegurança jurídica e tampouco ignorar os impactos que levará a cabo no mundo da vida. 96 Dito de outro modo: a questão que se coloca – e que, aqui, revela-se central – pode ser assim sintetizada: já se chegou ao hermenêutico ponto de viragem da reflexão judicativa, isto é, àquele extremo limite em que o sentido jurídico da controvérsia não carece de ser mais amadurecida 23 e o critério para ele ser discernido não precisa mais reajustado para que se possa romper com o estatuído em norma válida anteriormente? 24 CROSS, Rupert. Precedent in English Law. Oxford: Clarendon Press. 1961. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 97 Por isso, toda pergunta sobre a possível mudança da posição da Corte tem de levar em conta o processo de construção do precedente. Há expressões objetivas que conformam a decisão, assim como intenções que orientaram a formatação do precedente. Aqui reside, segundo PINTO BRONZE25, a irremissível dimensão subjetiva decorrente da ineliminável participação do julgador na posição da pergunta constitutiva do concreto caso decidendo. Afinal, o precedente Raposa Serra do Sol é da Suprema Corte. E toda Corte é também feita – assim como efeito – de suas decisões. VI CONCLUSÃO 98 Em atenção à consulta a mim dirigida pelos ilustres advogados MARCUS VINÍCIUS FURTADO COÊLHO e VICTOR RUFINO após o estudo da matéria submetida a exame e todas as circunstâncias que envolvem o caso, concluo: Resposta ao 1º Quesito: Sim, o caso Raposa Serra do Sol, referente ao histórico julgamento da Pet 3.388/RR, em 2009, pela importância do padrão normativo fixado pelo Supremo Tribunal Federal, pode ser considerado tecnicamente um precedente, sobretudo porque possui força normativa em sentido material. O status de precedente não advém da atribuição de efeitos vinculantes em sentido formal, mas do reconheci- mento da força normativa de sua ratio decidendi. É nisso que reside a sua autoridade e a possibilidade de que ele seja aplicado e seguido, o que, aliás, ocorreu em diversas oportunidades, tanto no Supremo Tribunal Federal, quanto em outros tribunais da federação. Em suma, o julgamento do caso Raposa Serra do Sol consubstancia um autêntico e genuíno precedente no Direito brasileiro. Resposta ao 2º Quesito: Sim, o caso Raposa Serra do Sol pode ser revisado e superado, assim como pode ocorrer com outros precedentes. Não é o que se verifica no caso sob exame. Tradicionalmente, no sistema jurídico norte-americano, abundam exemplos dessa atualização do Direito pela via judicial. Todavia, para isso, é imprescindível que haja 24 detalhada fundamentação sobre as razões de fato e de direito que 25 BRONZE, Fernando José. A metodonomologia entre a semelhança e a diferença. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br justificam o overruling. Isso implica a reconstrução argumentativa da holding do precedente, com a clara explicitação de sua ratio decidendi, analisando as condições – fáticas e jurídicas – de sua aplicação no julgamento do novo caso, especialmente se ele pode ser considerado um leading case, evidenciando, com clareza, por que o precedente se tornou frágil ou inadequado diante do caso concreto que demanda modificação, além de ser necessário demonstrar em que medida, no lapso temporal entre o precedente e o novo caso a ser julgado, houve alteração do sentido normativo relacionada à matéria, no plano da intersubje- tividade. Ocorre que, no caso sob exame, em especial no voto já lançado pelo eminente relator, ministro EDSON FACHIN, não é possível identificar, a priori, as razões de direito – e muito menos as razões de fato – que levaram à sua proposta de revisão do precedente Raposa Serra do Sol por meio desse caso específico cuja repercussão geral foi reconhecida sob o Tema 1.031. Em suma: o Recurso Extraordinário 1.017.365/SC não pode ser pretexto para, abdicando do exame do caso concreto subjacente e renunciando à discussão sobre a ratio decidendi do precedente, simplesmente se alterar um histórico julgamento da Corte Suprema brasileira. É o parecer. Porto Alegre, 18 de agosto de 2021. LENIO LUIZ STRECK Pós-doutorado em Direito Constitucional (FDUL/Portugal) Professor Titular dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS e da UNESA Membro Catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) Professor Emérito da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) Advogado – OAB/RS 14.439 25 R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br
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