Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br P A R E C E R I. C onsulta . II. Contextualização. III. O que é um precedente? IV. As salvaguardas institucionais e a tese do marco temporal adotadas n o caso Raposa Serra do Sol e seus efeitos V. Das possibilidades de revisão do precedente pelo Supremo Tribunal Federal. VI. Conclusão P ROF D R L ENIO L UIZ S TRECK R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 2 I C ONSULTA 1 Trata - se de consulta jurídica, encaminhada pelos ilustres advogados M ARCUS V INÍCIUS F URTADO C O Ê LHO e V ICTOR R UFINO , envolvendo o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC, de relatoria do ministro E DSON F ACHIN , em regime de repercussão geral, sob o Tema 1.031, no qual se discute a “definição do estatuto jurídico - constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação in dígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”. 2 O caso diz respeito, resumidamente, às possibilidades de revisão do precedente Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR) – um dos julgamentos históricos do Supremo Tribunal Federal, ocorrid o em 2009 – , ocasião em que se estabeleceram as dezenove condicionantes à demarcação de terras indígenas e se fixou a conhecida tese do marco temporal. 3 Levando em conta a amplitude e a complexidade do caso sub judice , para fi ns de delimita ção do objeto do parecer, os consulentes apresentam, objetivamente, dois quesitos: 1º Quesito: O caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR) , julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, pode ser considerado, tecnicamente, um precedente? Caso positivo, quais os ef eitos que ele produz (iu) no Direito brasileiro? 2º Quesito: O Supremo Tribunal Federal pode revisar sua posição sobre a matéria ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC, de relatoria do ministro E DSON F ACHIN , em regime de repercussão geral, sob o Tema 1.031? Caso positivo, sob quais condições pode rá ocorre r a revisão do precedente Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR)? 4 Como se vê, a controvérsia a ser aqui examinada difere - se – e muito – das abordagens que pautaram grande parte da produção d os demais pareceres jurídicos juntados aos autos do caso sub judice , visto que se circunscreve à discussão teórica e dogmática - processual relativa à estabilidade e autoridade das decisões judiciais, à segurança jurídica e às expectativas normativas da sociedade , sem adentrar , porém, o mérito da questão indígena R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 3 5 A fim de responder os quesitos apresentados , o estudo discorrerá sobre o papel do precedente e da doutrina do stare decis is na tradição da Common Law – recentemente incorporados pelo sistema processual brasileiro – ( Seção III ); a partir desses elementos , retomará o tema das salvaguardas institucionais e a tese do marco temporal , adotadas pelo precedente Raposa Serra do Sol , julgado em 2009, e dos efeitos que elas produziram no ordenamento jurídico ao longo da última década ( Seção IV ); por fim, abordará as possibilidades de revisão do referido precedente pelo Supremo Tribunal Federal (Seção V) 6 É importante destacar que , com isso, busca - se desempenhar o papel normativo designado à doutrina no paradigma do Estado Constitucional, por meio daquilo que se entende por constrangimentos epistemológicos ( Begrenzt ). Afinal, c omo disse B ERND R ÜTHERS 1 , eles são condiçã o de pos si bilidade à toda democracia autêntica que se respeite enquanto tal 7 Não se trata, portanto, de mero exercício de erudição filosófico - jurídica. A proposta deste trabalho coincide com aquela reivindicada, ainda na década de 70, por P IETRO P ERLINGI ERI 2 , quem lamentava a renúncia da doutrina a seu papel histórico. Dizia o renomado jurista napol i tano que se chegou ao paradoxo de ter a doutrina perdido prestígio e credibilidade ou haver desconhecido sua missão: a crítica das decisões judiciais e a con formação do sistema jurídico. 8 Nesse contexto , a função d este parecer é servir de farol à prestação juris - dicional, iluminando criticamente a intepretação das normas jurídicas , e, assim, contribuir efetivamente à construção intersubjetiva de uma decisão judicial mais equânime e, sobretudo, democrática. Eis o que cha mo resposta adequada à Constitui ção , ou resposta constitucional - mente adequada. II C ONTEXTUALIZAÇÃO 9 A questão indígena, especialmente no que se refere à demarcação d a s terr as tradicionalmente ocupad a s , alberga particularidades sociais, 1 R ÜTHERS , Bernd. Die Heimliche Revolution Vom Rechsstaat Zum Riechterstaat. Tübingen: Mohr, 2014. 2 P ERLINGIERI , Pietro. Profilo del diritto civili. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1994. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 4 culturais, antropológicas e de organização de Estado, cuja complexidade lhe atribui expressiva relevância nos campos jurídic o e político 10 É inquestionável que a história brasileira está marcada p ela violência e hostilidade que caracterizaram o processo de colonização, incluindo a tomada de territórios das comunidades indígenas. Esse passado não está superado e sequer pode ser apagado , ou ignorado Do mesmo modo, as conquistas e o s avanço s construídos a partir de decisões emblemáticas do Supremo Tribunal Federal em relação a essa matéria também não podem ser desconsiderados É sobre isso que trata este p arecer 11 Na jurisdição constitucional brasileira, a temática assumiu protagonismo a partir da Pet 3.388/RR, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, na qual foi discutida a demarcação do território indígena de nomi - nado Raposa Serra do Sol , homologada pela Portaria nº 534/2005 , do Ministério da Justiça , e pelo Decreto Presidencial de 15/4/2005. 12 Em 2009, o acórdão prolatado , de relatoria do m inistro A YRES B RITTO , com voto - vista do m inistro M ENEZES D IREITO , estabeleceu parâmetros à demarcação d a s t erras indígenas tradicionalmente ocupad a s, na forma de 19 ( dezenove ) salvaguardas institucionais , além de estipular a data da promulgação da Constituição de 1988 como limite às novas terras indígenas, inaugurando a chamada tese do marco temporal. 13 Com o julgamento dos embargos declaratórios, em 2013, de relatoria do m inistro R OBERTO B ARROSO , a controvérsia assumiu novos contornos, especialmente com relação à ausência de força v inculativa automática , apesar do reconhecimento de sua envergadura moral e persuasiva 1 4 A par disso , inúmeros e significativos foram seus reflexos normativos aos longos dos últimos doze anos No campo legislativo, por exemplo, a discussão a respeito da demarcação das terras indígenas por meio da alteração do Estatuto do Índio é suscitada pelo menos desde 2007, com o Projeto de Lei nº 490 da Câmara de Deputados. Além dos substitutivos propostos, dentre os vários projetos a ele apensados, destacam - se o Projeto de Lei nº 5.993/2009, de autoria do d eputado F ÉLIX M ENDONÇA , que prete nde a incorporação das dezenove salvaguardas institucionais estabelecidas pel a Suprem a Corte na Pet 3.388/RR ao Estatuto do Índio , assim como o Projeto de Lei nº 6.818/2013, de autoria do d eputado R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 5 G ERALDO S IMÕES , que se presta à inclusão da tese do marco t emporal, tomando por critério a data da promulgação da Constituição de 1988. 1 5 Administrativamente, a ratio decidendi do acórdão ensejou a edição da Portaria nº 303/2012 - AGU, com o propósito de uniformizar a atuação da Advocacia - Geral da União a partir dos parâmetros adotados pela Suprema Corte aos novos requerimentos de demarcação de terras, normatizando a aplicação das salvaguardas institucionais por todos os órgãos jurídicos da Administraçã o Pública. Sua eficácia foi suspensa em razão da oposição , à época, do julgamento d os embargos declaratórios. 1 6 Tendo em vista os l apsos de eficácia normativa d esta p ortaria , sobreveio o Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU, acolhido pela Advogada - Geral da Uni ão no Parecer GMF - 05 e aprovado pela Presidência da República em 15 de julho de 2017, ainda vigente No referido parecer , conclui - se pela necessária observância, por parte dos órgãos da Administração Pública Federal direta e indireta, de todas as condicion antes constantes do acórdão prolatado pela Suprem a Corte no caso Raposa Serra do Sol , em processos de demarcação de terras indígenas. 1 7 Atualmente, como medida de proteção ao coronavírus, todos os procedi - mentos administrativos de demarcação e autorização de entradas em território indígena foram suspensos por determinação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, por meio da Portaria n º 419/2 020. 1 8 Apesar d e tudo isso , a discussão sobre a demarcação de terras indígenas voltou ao debate nacional , com reconhecimento da repercussão geral, em 2019, a o RE 1.017.365/ SC , interposto pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI, em face de acórdão do Tribu nal Regional Federal da 4ª Região, que confirmou r eintegração de p osse requerida pela então Fundação do Meio Ambiente – FATMA 19 Em decisão liminar, de 7 de maio de 2020, o eminente r elator , ministro E DSON F ACHIN determinou a suspensão nacional das ações possessórias de demarcação de direitos territoriais dos povos indígenas, até o término da pandemia da covid - 19 ou o julgamento final da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.017.365 (Tema 1031), o que ocor rer por último. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 6 2 0 O eminente relator também concedeu tutela provisória para suspender todos os efeitos do Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, até o fim do julgamento, bem como para determinar que a FUNAI abstenha - se de rever procedimentos administrativos de demarcação de terras com base no referido p arecer. 2 1 Paralelamente, em 2020 , sobreveio o Parecer n º 00763/2020/CONJUR - MJSP/CGU/AGU , que recomenda aguard ar o julgamento do RE 1.017.365 /SC para que se proceda à tomada de decisões por parte da Administração Federal direta e indireta. 2 2 Até o presente momento, houve a admissão e o ingresso de dezenas de amic i curiae , cuja atuação busca ampliar e enriquecer o debate constitucional O julgamento foi incluído em sessão virtual iniciada no dia 11 de junho de 2021 23 O eminente relator, ministro E DSON F ACHIN , já lançou seu voto, no qual se propõe a desenvolver uma “hermenêutica constitucionalmente adequada do artigo 231 da Carta de 1988”, uma vez que a matéria – o tratamento jurídico das relações decorrentes das ocupações indígenas tradicionais – ainda não foi contemplada com eficácia vinculante. 24 Todavia, em razão de pedido de destaque do ministro A LEXANDRE DE M ORAIS , procedeu - se à inclusão do feito na sessão telepresencial d esignada para dia 30 de junho de 2021 . P osteriormente , o julgamento foi adiado para o próximo dia 25 de agosto. 2 5 Assim, diante do efeito vinculante que recai sobre o recurso extraor - dinário a ser julgado sob o regime da repercussão geral (Tema 1.031), levando em cont a as particularidades, interesses e conflitos que sempre envolvem a mudança de entendimentos sobre temas delicados – como a questão indígena , social, ambiental – , os consulentes indagam, tecnica - mente, a respeito das possibilidades de revisão do caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR) , julgado em 2009, pelo Supremo Tribunal Federal. III O QUE É UM PRECEDENTE ? 2 6 Deciding on the basis of what was done when the same matter had to be resolved in the past. When we decide in this way, we decide acco rding R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 7 to precedent 3 Essas são as palavras com as quais N EIL D UXBURY inicia seu livro , “Nature and Authority of Precedent”, um clássico sobre o tema. 2 7 Tal passagem demonstra que a pergunta sobre o que é um precedente remete, inicialmente, à compreensão das bases de uma tradição jurídica diferente da quela que conforma o Direito brasileir o – no caso, a Common Law – , o que pressupõe uma imersão teórica nos con ceitos e institutos que a estruturam historicamente 4 2 8 Como se sabe , a questão em torno da segurança jurídica sempre foi uma das preocupações comuns entre Civil Law e Common Law . No primeiro caso – nos sistemas jurídicos de origem romano - canônica – , o papel de garantir estabilidade (como previsibilidade) foi conferido à figura da lei ; no segundo – n a matriz jurídica anglo - saxão – , ela foi buscada na tradição e, por isso, vem associada à autoridade dos precedentes 5 2 9 A doutrina dos precedentes possui como elemento central a exigência de vinculação nos julgamentos de casos análogos. Caracteriza - se, desse modo, como “a evolução histórica da filosofia do Common Law , baseada na casuística” 6 Nesse sentido, a diferença e ntre a doutrina dos precedentes e a regra do stare decisis é muito sutil, estando essa última relacionada à identificação dos elementos de uma decisão judicial que serão vinculantes. É d aí que surge a diferença entre holding ( aquilo que materialmente justifica a decisão judicial em determinado sentido , e não outro) e dictum (elementos de persuasão cuja existência não é essencial ao provimento judicial) 30 O caráter vinculante dos precedentes e a sua justificação foi tema de grandes disputas teóricas. Um precedente não vincula apenas por autorictas Ele vincula por sua substância fundament adora universalizável. Isto é, de “dentro do precedente” devemos buscar o que 3 Tradução livre: “ Decidir sob fundamento do que foi feito quando a mesma matéria foi solucionada no passado. Quando decidimos desse modo, decidimos de acordo com um precedente” ( D UXBURY , Neil. Nature and Authority of Precedent Cambridge: Cambridge University Press, 2008 ) 4 Cf. S CHAWARTZ , Bernard. The Law in America . New York: McGraw - Hill, 1 974. 5 Ver, para tanto, M ERRYMANN , John Henry. The Civil Law Tradition . Redwood City: Stanford University Press, 1969. 6 S TRECK , Lenio; A BBOUD , Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 8 dele é generalizante independentemente dos fatos tratados. É o que se chama de ratio decidendi , a holding d a qual emana a universalização. 3 1 Nesse sentido, especialistas sobre o tema , como M ARTIN K RIELE 7 e W OLFGANG F IKENTSCHER 8 consideram a ratio decidendi de um caso como o mérito jurídico autonomamente reconhecido à quaestio disputata , recaindo sobre o juiz a responsabilidade pela tarefa da contínua reconstituição do conjunto que o conforma. 3 2 Assim, mais do que uma decisão proferida por um Tribunal Superior, o precedente representa uma “depuração histórico - hermenêutica” por parte desses tribunais . Em outras palavras: o caráter vinculante de um precedente volta - se para os fundamentos jurídicos i mprescindíveis a justificar a solução do caso concreto – o que leva à holding d esse caso. 3 3 Precedente, assim, também significa “obediência hermenêutica” a uma decisão sobre um caso , em virtude de seu potencial de capilarização sistêmica. Daí porque uma d as funções dos precedentes consiste , justamente, em possibilitar a aplicação do D ireito de modo isonômico e coerente, exercendo o papel de “efeito vinculante persuasivo” 9 3 4 Assim, precedentes articulam passado e futuro em uma dupla dimensão: de história e de consequência , como adverte D UXBURY Contudo, p ara além do que afirma o jurista norte - americano, penso que outro aspecto não pode ser desconsiderado : a igualdade , à qual se associa – inevitavel - mente – a noção de equanimidade ( fairness ). 3 5 Pode - se concluir, portanto, que inexiste – a não ser que se trate, p or ex emplo , de uma s úmula – um elemento formal , técnica ou procedi - mento , que converta uma decisão judicial em um precedente. Na verdade, a decisão se transforma, de modo intencional ou não, em um precedente quando passa a ser reconhecida e aplicada em casos futuros pela força argumentativa que seus fundamentos assu m em num horizonte histórico. 7 K RIELE , Martin. Recht und praktische Vernunft Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979. 8 F IKENTSCHER , Wolfgang. Methoden des Rechts in verg leichender Darstellung Tübingen: Mohr, 1975. 9 S TRECK , A BBOUD , op. cit R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 9 3 6 Justamente em razão disso, ao contrário do que se pode imaginar, os precedentes proporcionam dinamicidade a o sistema jurídico, porque sua existência exige um esforço interpretativo de constante atualização , seja em favor da revitalização (de sua aplicação) ou de sua superação (de sua revogação). Nas palavras de C ASTANHEIRA N EVES , trata - se “do sábio dúctil equilíbrio, praticamente conseguido, entre estabilidade e a continuidade jurídicas, por um lado, e a abertura e a liberdade jurisdicionais, de outro ” 10 3 7 Mais uma vez: seguir um precedente, portanto, pressu põe avaliar a consistência de seu fundamento para a resolução de um novo caso. É por isso que, quando um precedente deixa de ser aplicado, ele gera um ônus argumentativo ao intérprete ; a ele cabe de demonstrar, explicitamente, os fundamentos que justificam, em concreto, o seu afastamento. 3 8 Eis o ponto. Como superar ou afastar um precedente? N a tradição jurídica da Common Law , há d uas maneiras de se desvincular de um precedente: distinguishing e overruling , ambos considerados espécie de judicial departures . No primeiro caso, tem - se apenas a modificação da ratio decidendi do precedente pela existência de elementos fáticos (elementos materiais) distintos ( distinguishing ); no segundo, verifica - se um repúdio a ratio decidendi , que causa a anulação /revogação do precedente ( overruling ). Ou seja, na última hipótese, por mais que os casos sejam materialmente idênticos, entende - se como necessário o estabelec imento de um padrão normativo diferente para a tom ada de decisão. Aliás, no D ireito brasileiro , a mbas as técnica s foram positivada s no inciso VI do § 1º d o artigo 489 do C ódigo de P rocesso C ivil 39 Conforme a lição de F ERNANDO P INTO B RONZE , o ponto nodal da definição de um precedente está no “prudencial reconhecimento da semelhança , ou diferença , da específica densidade jurídica dos casos que justificadamente se comparam, como o momento marcante e o filtro demarcante da procedência, ou da i mprocedência, de um precedente” 11 10 N EVES , António Castanheira. O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais . Coimbra, 1983 , p. 669. 11 B RONZE , op. cit. , p. 591. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 10 4 0 O renomado catedrático conimbricense , trazendo à colação o ensina - mento de seu mestre, C ASTANHEIRA N EVES 12 , sustenta que o direito radica na prática, uma vez que também se caracteriza pela incontornável historicidade que define o caráter nuclearmente analógico da reconstituição de qualquer dos dois horizontes em discussão. 4 1 Portanto: quando um precedente é revogado – isto é, quando ocorre o overruling – , proporcionando uma mudança radical no entendimento da Corte, isso se deve ao fato de sua aplicação não se mostra r mais racionalmente justificável 13 . É por esse motivo, então , que o overruling também pode ser entendido como uma “ação judicial radical, a ser tomada somente em último caso” 14 4 2 De todo modo, é preciso deixar bem claro que a revisão de um precedente , sob quaisquer das hipóteses admitidas pela tradição anglo - saxã – distinguishing ou overruling – , sempre pressupõe o dever de exaustiva fundamentação. Em outras palavras: se o precedente não é aplicado por ausência de correspondência fática entre os julgados , ou se ele deve ser superado no que diz respeito à sua ratio decidendi , em ambas as situações, demanda - se a detalhada exposição das razões públicas para tanto. Isso exige que o afastamento ou a adaptação da aplicação do precedente seja m expressa e exaustiva mente tematizad o s 4 3 Muito embora vinculado a um a tradição jurídic a divers a ( Civil Law ), é inegável que D ireito brasileiro vem intensific ando sua aproximação com a Common Law , sobretudo a partir da positivação de um conjunto de institutos de matriz anglo - saxã, promovida em larga medida pelo Código de Processo Civil. Aliás, sobre esse tema, de há muito, v enho denun - ciando os problemas que envolvem a importação de teorias e institutos estrangeiros sem a adequada adaptação contextual, especialmente se d esprovida de uma virada paradigmática no plano hermenêutico. 4 4 Todavia, em face desse contexto, a autoridade das decisões de nosso Supremo Tribunal Federal também se conecta à coerência na aplicação 12 C ASTANHEIRA N EVES , António. Metodologia jurídica: problemas fundamentais Coimbra: Coimbra Editora, 1993. 13 B USTAMANTE , Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais São Paulo: Noeses, 2012. 14 “The fact is, nevert heless, that overruling often is considered to be radical judicial action, to be taken only as a last resort” ( D UXBURY , op. cit , p. 122 ) R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 11 do D ireito. E, então, essa exigência de que o conjunto das decisões d a Corte constituam um padrão decisório – que po ssa ser compreendido como vinculação interpretativa interna – passa, diretamente, pela criteriosa fundamentação dos motivos que levaram a o afastamento de determinado entendimento, isto é, as razões jurídicas que conduziram à alteração de posicionamento. É a is so que corresponde o dever de estabilidade , coerência e integridade , instituído pelo artigo 926 do Código de Processo Civil. 4 5 No entanto, é oportuno saber diferenciar, tecnicamente, o sentido de jurisprudência em relação aos precedentes . A jurisprudência caracte - riza - se por um conjunto de reiteradas decisões que, no seu todo, indica uma tendência , um comportamento dos t ribunais (de última instância ou não). Por isso, sua função principal consiste em delimitar e estabe - lecer regras jurídicas a serem consol idadas em verbetes ou enunciados sumulares. 4 6 Já o vocábulo precedente assume um sentido plurívoco no âmbito d o próprio Supremo Tribunal Federal . Por vezes, precedente é empregado como aquilo que efetiva e formalmente vincula, ou seja, a decisão que vincula em razão d e su a autoridade , e não p el a substância do padrão normativo que institui Entretanto, s e examinarmos o sentido originário na Common Law , veremos que não existe nenhuma regra que explicite a obrigatoriedade de aplicação dos precedentes. O que há, hist o rica - mente , é a doutrina do stare decisis , reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive expressamente em mais de um julgado d a lavra do ministro E DSON F ACHIN 15 4 7 Isso já seria o suficiente para indagar: quando a Corte admite que o novo Código de Processo Civil instituiu uma espécie de stare decisis no D ireito brasileiro, esse fato já não constitui, ainda que ob i ter dictum, um precedente? Penso que sim. Afinal, quan do o Supremo Tribunal Federal afirma que existe um stare decisis , ele o faz para justificar a vinculação do caso que está julgando a um caso anterior. 15 Nesse sentido: RE 655.265, Rel. Min. L UIZ F UX , Red. Min. E DSON F ACHIN , Tribunal Pleno, STF, julgado em 13/4/2016. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 12 4 8 Por isso, um precedente implica o reconhecimento de que determinado pronunciamento judicial é paradigmático por seus fundamentos. Veja - se: é por seus fundamentos que ele se torna paradigmático, e não pelos fatos dos quais trata. Ou seja , é o julgamento que se torna paradigmático por causa de sua ratio decidendi . E, assim, materialmente, assume a forma de um padrão normativo a ser seguido (ou a ser revisado, sob critérios de rigorosa fundamentação jurídica). N ão é à toa que, ao julgar, o Supremo Tribunal Federal frequentemente fundamenta seus acórdãos sobre os seus precedentes , que, em verdade, significam os casos já decididos p ela Corte em dado sentido. IV A S SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS E A TESE DO MARCO TEMPORAL ADOTAD A S N O CASO R APOSA S ERRA DO S OL E SEUS EFEITOS 49 Em 19 de março de 2009, o Supremo Tribunal Federal julgou a Pet 3.388/RR, de relatoria do ministro A YRES B RITTO , ocasião em que decidiu pela constitucional idade da Portaria nº 534/2005, expedida pelo Ministério da Justiça, e do Decreto Presidencial de 15/4 /2005. Em seu conjunto, esses atos administrativos homologa va m a demarcação promovida pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI, referente à terra indígena Raposa Serra do Sol , localizada no Estado de Roraima. 5 0 Ao julgar o caso, o Tribunal Pleno proferiu u ma decisão histórica , tanto por seu conteúdo quanto p ela fixação de uma posição institucional relativa à matéria, considerada de acordo com a Constituição. Ou seja , materialmente, o Supremo Tribunal Federal promoveu um grande avanço na tutela das comunidad es indígenas, ao passo que também criou condições formais – regras e procedimentos – para a sua implementação 5 1 É nesse sentido que o referido julgamento possui um grande diferencial: como decorrência das discussões jurídicas relacionadas ao mérito do caso e conectadas a elas, a Corte normativizou seu entendimento no dispositivo do acórdão , sob a forma de 19 (dezenove) salvaguardas institucionais (ou condicionantes) , além da adoção d a conhecida tese do marco temporal 5 2 Como se sabe, a tese do marco temporal delimitou o reconhecimento do direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas à data da promulgação R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 13 da Constituição de 1988 , nos termos d e seu artigo 231. Associadas a isso, as salvaguardas institucionais , propostas pelo ministro A YRES B RI TTO e ampliadas pelo voto do ministro M ENEZES D IREITO , trataram de outros aspectos mais diretamente relacionadas às terras (posse, usufruto, competência para demarcação, etc. ). 5 3 A justificativa para essa sistematização normativa dos principais component es materiais do decisum – em seu conjunto, a tese central do marco temporal aliada à s 19 salvaguardas institucionais – está amparada em dois argumentos assumidos expressamente : ( i ) a “importância histórico - cultural da causa”; ( ii ) a consolidação do entendimento “com repercussão para o futuro” 5 4 A estrutura redacional desse quadro normativo que compõe o dispositivo da decisão revela a presença de um componente notadamente legislativ o na atuação do Supremo Tribunal Federal, em razão de sua generalidade, d iante d o grau de universalização e abstração que a caracterizam . Aliás, essa foi a crítica que realizei na primeira análise que fiz do caso, na obra 30 Anos da Constituição em 30 julg amentos: uma radiografia do STF 16 5 5 Para além das minhas objeções no plano teórico, há duas conclusões incontestáveis em relação a essa decisão: a primeir a é que ela representa um grande avanço em termos de conquistas civilizatórias; a segund a diz respeito justamente a essas características – generalidade, universalizaçã o e abstração – , que também correspondem aos elementos que conduzem à configuração de um precedente. É disso que se trata: há algo no precedente que transcende. Por isso, mesmo alter ando os fatos no futuro, a ratio decidendi funciona como um princ í pio, um padrão – a holding da qual se irradia m efeitos normativos 5 6 Em outras palavras: é certo que um precedente ganha força normativa – ou seja, adquire a condição , ou status , de preced ente – independente das pretensões de sua aplicabilidade pro futuro Isso significa dizer que um p recedente não nasce “precedente”. Ora, precedentes são manifestações do C ase L aw , da casuística; são decisões que, por sua relevância no passado e pela inegável consistência de seus fundamentos, passam a ser 16 S TRECK , Lenio Luiz. 30 Anos da Constituição em 30 julgamentos: uma radiografia do STF. São Paulo: Forense, 2018, Cap. 10. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 14 reconhecidas como refer e nci al sobre como melhor decidir e, assim, assumem a dimensão de substância de um precedente, como algo a ser observado e, então, seguido. 5 7 Por isso, tornar - se um precedente é algo que não acontece no plano enunciativo - explicativo, mas tem como condição de possibilidade a dimensão hermenêutica . Ou seja: para que um precedente se forme, não basta que sua autoridade seja afirmada ou declarada como tal; é preciso que ele adquira a força argumentativa de um precedente . Quando isso acontece, então, são geradas expectativas legítimas nos cidadãos – e também ao próprio Estado – , que passam a agir orientados a partir daquilo que foi deliberado pela Corte 17 58 C ASTANHEIRA N EVES 18 , cuja maestria contribuiu à derrubada dos assentos com força vinculante , justamente porque eram conceitos abstratos , destaca importantíssimos aspectos qu e demonstram que o elemento vinculante decorre do caso concreto naquilo que denomina objetivação normativo - dogmática . É ela que torna, ao fim e ao cabo, um precedente normativamente vinculante, ou seja, converte o precedente em fonte de direito, traduzido em Juristenrecht ( direito judicial ), sobretudo nos casos complexos, marcados pela ausência uma normatividade preestabelecida. 59 Nessa mesma linha, P INTO B RONZE 19 afirma que os precedentes representam “referentes circunstancialmente mobilizáveis” que traduzem essa historicidade, desonerando o juiz, ainda que parcialmente, e concorrendo para assegurar a racionalidade da tarefa do seu experencial enriquecimento. Assim, quando se conclui pela aplicação de um precedente – ou seja, pela se melhança entre o fundamento da decisão de um problema - objetivado e o de um novo problema – , então isso significa afirmar a respetiva vinculação normativa 60 Tudo isso para dizer – objetiva e categoricamente – que o caso Raposa Serra do Sol possui os elem entos conformadores de um autêntico precedente , reunindo todas os requisitos necessários para ser aplicado 17 Ver, para tanto, A BBOUD , Georges. Direito constitucional pós - moderno . São Paulo: Thomson Reuters, 2021 , p. 651. 18 C ASTANHEIRA N EVES , O instituto dos “ assentos” , op. cit. 19 B RONZE , op. cit. , p. 591. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 15 em casos semelhantes , enquanto não houver razões – de fato , mas, sobretudo, de direito – que legitimem a sua revisão e eventual superação. 61 Desse modo, a compreensão d o julgamento do caso Raposa Serra do Sol em sua dimensão históric a , por si só, indica a confiança depositada na estabilidade de seu provimento judicial, cujo prop ositum jamais se dissociou da pacificação dos conflitos, ainda que sabid a mente limitada no mundo prático. Sem precisar adentrar aqui nos avanços normativos por ele produzidos , ou ainda n o peso argumentativo de sua ratio decidendi , há um plus : ao julgar ess e caso, o Supremo Tribunal Federal projetou, deliberadamente, o âmbito da proteção normativa para o futuro , ao estipular as 19 salvaguardas institucionais e fixar a tese do marco temporal, elevando esse quadro normativo à condição de regras jurídicas a serem aplicadas pr o spectivamente 62 S ob outra perspectiva, contrario sensu , também seria possível argument a r que o julgamento dos embargos declaratórios opostos à Pet 3.388/RR definiu que, por se tratar de ação popular, os efeitos d o julgamento do caso Raposa Serra do Sol são desprovidos de força vinculante em sentido técnico 63 Ora, sobre isso não há dúvidas. É evidente que, em sentido formal, a decisão não produz efeito vinculante, característica de provimentos judiciais típicas de controle concentrado e do regime da repercussão geral A controvérsia , aqui, não trata disso. O plano de discussão é outro : o julgamento d o caso Raposa Serra do S o l constitui – materialmente – um precedente. 64 Ademais, a própria decisão em sede de embargos declaratórios f e z ressalvas quanto à ausência de efeito vinculante. São elas: ( a ) a ausência de força vinculante da decisão deve ser comp reendida tão somente sob a perspectiva técnica; ( b ) a ratio decidendi adotada pela Corte pode, sim, ser extensível a outros casos similares, desde que isso não ocorra de modo automático ; ( c ) como consequência, o provimento judicial “ostenta força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País”; ( d ) portanto, a superação de suas razões demanda um “elevado ônus argumentativo”. Como se vê, a Corte aponta para a existência de um ve rdadeiro precedente, o que pode ser observado a partir de três R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 16 assertivas: a possibilidade de extensão ; a força moral e persuasiva ; a exigência de elevado ônus argumentativo. 65 Mais uma vez: por seus próprios termos – seja pelo ineditismo de seu conteúdo , seja pelo que a própria Corte definiu sobre os critérios para a sua aplicação pro futuro – , o julgamento do caso Raposa Serra do Sol pode ser reconhecido como um autêntico e genuíno precedente, caracterização essa que independe da existência de um verniz formal (ou técnico) para a produção de efeito normativos 66 Tanto é assim que o precedente – o julgamento do caso Raposa Serra do Sol – produziu impactos nas esferas administrativa , legislativa e judicial. No âmbito administrativo, o provimento foi incor porado à Portaria nº 303/2012 - AGU, bem como ao Parecer n. 001/2017/GAB/ CGU/AGU, reestabelecendo as condicionantes como parâmetros à Administração Pública Federal direta e indireta. 67 N o plano judicial, por sua vez, o precedente foi seguido e aplicado no julgamento dos seguintes casos : RMS 29.542/DF ( Rel. Min. C ARMEN L UCIA ), RMS 29.087/DF (Rel. Min. G ILMAR M ENDES ), ARE 803.462/MS (Rel. Min. T EORI Z AVASCKI ) e o RE 106.7542/RS (Rel. Min. L UIZ F UX ). Em todos esses julgamentos, a ratio decidendi ut ilizada no julgamento da Pet 3.388/RR esteve em estrita conformidade com o parâmetro interpretati v o instituído pela Pet 3.388/RR 68 Aliás, n esse sentido, cumpre referir que, em 2016, na ocasião do julgamento do RMS 29.087/DF, o m inistro C ELSO DE M ELLO caracterizou como “altamente conveniente” a aplicação das condicionantes fixadas pela Pet 3.388 “sempre que se tratar de demarcação administrativa de terras indígenas”. Ainda n o mesmo julgamento, o m inistro G ILMAR M ENDES reiterou que as orientações f ixadas pelo caso Raposa Serra do Sol não são apenas “direcionadas a esse caso específico, mas a todos os processos sobre o mesmo tema”, inclusive porque muitos dos enunciados produzidos “não se aplicam à Raposa Serra do Sol , até porque já estava realizado” Igualmente, a ministra C ARMEN L UCIA consignou que as diretrizes delineadas pela Pet 3.388 “haveriam de ser consideradas em casos futuros, pela força jurídico - constitucional do precedente histórico”. R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 17 6 9 Como se pode perceber, a o julgar o caso Raposa Serra do Sol , o Supremo Tribunal Federal produziu norma jurídica, resultante da interpretação autêntica levada a cabo pelo guardião da Constituição. A controvérsia a respeito do seu caráter formalmente vinculante, ou não, revela - se um problema secundário . Isso porque, a partir dessa decisão – que se tornou um precedente, porque instituiu notável padrão normativo – , a Corte e os demais tribunais do país passaram a julgar controvérsias similares. O mesmo se estendeu à Administração Pública, cuja atuação restou pau tada pelo precedente ao longo dos últimos doze anos. 70 Portanto, desde 2009, quando julgado o mérito da Pet 3.388/RR ( Raposa Serra do Sol ), fixou - se um padrão normativo sobre como o Estado deve se comportar na demarcação das terras indígenas, consubstancializado por meio de 19 salvaguardas institucionais e , igualmente, pela tese do marco temporal. Não há dúvidas de que esse julgamento deve ser reconhecido como um preceden te. E, assim s endo, sua revisão exsurge como possibilidade, porém implica o ônus argumentativo de explicitar , concretamente, por que su a ratio decidendi deve ria ser superada V D AS POSSIBILIDADES DE REVISÃO DO PRECEDENTE PELO S UPREMO T RIBUNAL F EDERAL 71 Com efeito, a atuação da Suprema Corte nos Estados Unidos torna possível a compreensão sobre o valor de um precedente Ao longo da história, seus pronunciamentos foram emblemáticos e, por certo período, definitivos em relação a temas controversos : Dred Scott v. Sandfor d (1857) , uma das mais polêmicas atuações da Suprema Corte, sustentou juridicamente a escravi dão ; Miranda v. Arizona (1966) incorporou uma série de garantias ao acusado durante a persecução penal ; Roe vs. Wade (1973) reconheceu a constitucional idade d o direito ao aborto. 72 Naturalmente , o D ireito norte - americano é vasto em exemplos de precedentes que foram revisados pela própria Corte. Para ilustrar , West Coast Hotel v. Parish (1937) superou Lochner v. Nova Iorque (1905) , que dec larava inconstitucional as medidas dos governos estatais que R. Jardim Cristofel 15 | Studio 6 | Moinhos de Vento, Porto Alegre , RS | CEP 90510.030 • (51) 3519.7154 | www.streckadvogados.com.br 18 definiam o limite máximo da jornada de trabalho ; Brown v. Board of Education (1954) revisou Plessy v. Fergunsson (1896) , que autorizava a segregação racial sob a doutrina “iguais, porém separados”; Lawrence v. Texas (2003) revisou Bowers v. Hardwick (1986) , que admitia legislação estadual no sentido d a criminalização da prática da sodomia entre pessoas do mesmo sexo 73 Muitos são os exemplos, todos da Common Law . Afinal, lá foi onde se desenvolveu a cultura do precedente . Por isso, os norte - americanos t ê m bem presente a dimensão da responsabilidade política que marca as decisões da Suprema Corte, sobretudo quando se põe em marcha o movimento de revisar e supe rar um precedente. 74 Ora, s e precedentes não fossem passíveis de revisão – e engess assem o sistema jurídico com um a posição insuperável sobre determinada matéria – , a escravidão perduraria até os dias de hoje , tal qual sustentada por Dred Scott v. Sandford (1857). Por outro lado, se fosse tão simples revogar um precedente , Brown v. Board of Education (1954) não seria considerada uma das decis ões mais difíc eis da história da Suprema Corte , com a construção da unanimidade dos votos , sem dive rg ê n cia , e de um a estratégia temporalmente moderad a para a produção de seus efeitos. 75 Com isso, quero dizer que a guinada interpretativa , pela via da superação de precedente, é possível – e muitas vezes necessária – , porém um processo nada simples, ou fácil. 76 Talvez essa sej a a dificuldade brasileira De fato, não faz parte de nossa tradição jurídica compreender as decisões judiciais como fontes prioritárias na definição de temas sensíveis Aqui