SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros MAGALHÃES, RCS. A erradicação do Aedes aegypti: febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016. História e Saúde collection, 413 p. ISBN: 978-85-7541-479-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. A erradicação do Aedes aegypti febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) Rodrigo Cesar da Silva Magalhães A Erradicação do Aedes aegypti febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Gadelha Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação Nísia Trindade Lima EDITORA FIOCRUZ Diretora Nísia Trindade Lima Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Carlos Machado de Freitas e Gilberto Hochman Conselho Editorial Claudia Nunes Duarte dos Santos Jane Russo Ligia Maria Vieira da Silva Maria Cecília de Souza Minayo Marilia Santini de Oliveira Moisés Goldbaum Pedro Paulo Chieffi Ricardo Lourenço de Oliveira Ricardo Ventura Santos Soraya Vargas Côrtes Coleção História e Saúde Editores Responsáveis: Gilberto Hochman Flavio C. Edler Jaime L. Benchimol Rodrigo Cesar da Silva Magalhães A Erradicação do Aedes aegypti febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) coleção Saúde Históriae Copyright © 2016 do autor Todos os direitos reservados à fundação oswaldo cruz / editora Revisão Augusta Avalle Myllena Paiva Normalização de referências Clarissa Bravo Capa e projeto gráfico Carlota Rios e Guilherme Ashton Editoração eletrônica Daniel Pose Vazquez Produção gráfico-editorial Phelipe Gasiglia Catalogação na fonte Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde Biblioteca de Saúde Pública 2016 EDITORA FIOCRUZ Av. Brasil, 4036, Térreo, sala 112 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ Tels: (21) 3882-9039 e 3882-9041 | Telefax: (21) 3882-9006 e-mail: editora@fiocruz.br | www.fiocruz.br/editora M188e Magalhães, Rodrigo Cesar da Silva A Erradicação do Aedes aegypti : febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968). / Rodrigo Cesar da Silva Magalhães – Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016. 420 p. : il. (Coleção História e Saúde) ISBN: 978-85-7541-479-8 1. Aedes. 2. Febre Amarela - prevenção & controle. 3. Febre Amarela – história. 4. Saúde Pública - história. 5. História do Século XX. 6. Médicos - história. 7. Programas de Imunização - história. I. Título. CDD - 22.ed. – 614.54109 Editora filiada Para Teresinha, Tiago e Dilza ( in memoriam ) Sumário Prefácio........................................................................................................... 9 Apresentação.................................................................................................. 15 Introdução ...................................................................................................... 27 1. A Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller e as Origens da Saúde Internacional ................. 45 2. Fred Soper e a Reorganização da Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller nos Anos 1930 ............................................................................................ 87 3. Cooperação Sanitária Latino-Americana e as Origens da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti ................. 115 4. Da América do Sul aos Campos de Batalha na Europa: novas campanhas, novas instituições e a reabilitação do conceito de erradicação ............................................................................ 147 5. O Novo Cenário Internacional no Pós-Segunda Guerra Mundial e o Lançamento da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti .......................................................................................... 177 6. A “Era Soper de Erradicação” e o Apogeu da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti ..................................... 223 7. A Guerra Fria Chega às Américas: origens, controvérsias e consequências do Programa de Erradicação do Aedes aegypti dos Estados Unidos ................................................................................... 271 Conclusão: saúde internacional, erradicação de Aedes aegypti e o fortalecimento das relações interamericanas....................................317 Imagens ......................................................................................................331 Notas ...........................................................................................................347 Fontes e referências...................................................................................391 9 Prefácio Neste livro aborda-se a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti , iniciativa pioneira e de mais longa duração como plano internacional de erradicação. Os primórdios desse programa datam de 1914, quando a Fundação Rockefeller concebeu a Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela, implementada em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial. No intervalo entre as décadas de 1910 e 1930, a Campanha esteve voltada para as Américas e a África, sofrendo uma série de mudanças durante o desenvolvimento do programa que redundou, no pós-Segunda Guerra Mundial, no relançamento da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti , sob a égide da Organização Sanitária Pan-Americana (OSP). Até o fim da década de 1960, os países americanos deveriam ter como meta a eliminação do vetor da febre amarela. O cuidadoso e circunstanciado estudo de Rodrigo Cesar Magalhães reconstitui a história da proposta de enfrentamento da febre amarela formulada pelo médico brasileiro Heitor Praguer Fróes, então diretor do Departamento Nacional de Saúde (DNS) e representante do Brasil na Reunião do Conselho Diretor da Organização Sanitária Pan-Americana (OSP), realizada em Buenos Aires, em 1947. Aprovada pela organização multilateral, a iniciativa de Fróes deu sequência ao programa de combate à febre amarela da Fundação Rockefeller, inaugurado no intervalo do 10 entreguerras, envolvendo significativas mudanças do pós-Segunda Guerra Mundial e indicando um padrão inédito de interação entre organizações internacionais, governo norte-americano e países da América Latina, particularmente o Brasil. Ao longo da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti , emerge um personagem central na direção da OSP: trata-se do médico-sanitarista Frederick Lowe Soper (1893-1977). A trajetória de Soper como funcionário da saúde pública cobriu grande parte do século XX, incluindo-se as questões sanitárias relevantes do período. Nesse sentido, um dos méritos do livro de Rodrigo é destacar que a importância de Soper não se limitou à longa carreira no campo da saúde internacional, mas também ao seu protagonismo no desenvolvimento da cooperação internacional nas Américas. Conforme a investigação de Rodrigo, parte do êxito da cooperação está ligada à maior facilidade de se produzir consenso em áreas como a saúde e a ciência quando comparadas com os domínios da economia ou da política, a exemplo das relações entre as repúblicas americanas quando do lançamento da Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela em 1918, sob a liderança da Fundação Rockefeller. Esse processo de cooperação se expandiria entre as décadas de 1920 e 1940 derivando, no pós-Segunda Guerra Mundial, num acordo entre as nações da região de combate à febre amarela. Para tornar inteligível tais arranjos político-institucionais e seus desdobramentos, no livro destaca-se o papel das relações internacionais, abordando-se o conjunto da campanha contra a febre amarela nas Américas com base em chave explicativa que privilegia os aspectos de permanência ao examinar os avanços, retrocessos e mudanças na Campanha, em variados contextos políticos e sanitários. Das ações concertadas das nações americanas em face da adoção de políticas de combate à febre amarela, os Estados Unidos exerceram papel de relevo, especialmente no que tange à interação com o Brasil. A análise desse processo de cooperação, uma das novidades apresentadas no volume, sofreu a mediação de organizações internacionais, especialmente a Fundação Rockefeller no entreguerras e a Organização Sanitária Pan- Americana no pós-Segunda Guerra Mundial, inspiradas pelo otimismo sanitário, pela era do desenvolvimento nas Américas, pelas políticas da Guerra Fria, pelas disputas no campo sanitário envolvendo o conceito de erradicação, pela emergência de novas organizações internacionais, a exemplo da Organização Mundial da Saúde (OMS), pela reorganização da OSP e por uma alteração no foco da política da Fundação Rockfeller, que 11 limitou suas atividades no domínio da saúde internacional. No contexto nacional, por sua vez, os aspectos a serem destacados dizem respeito às experiências exitosas do combate à febre amarela, o debate quanto ao tipo de colaboração entre o Brasil e os Estados Unidos no pós-guerra e a relevância de se preservar o desenvolvimento econômico naquele momento, em face da redução dos investimentos norte-americanos no país. A pesquisa do papel dos Estados Unidos na Campanha evidencia a concepção metodológica utilizada por Rodrigo ao criticar a vertente imperialista , de acordo com a qual se entendem as atividades de organizações internacionais, a exemplo da Fundação Rockefeller, como parte de um suposto plano do imperialismo científico e sanitário dos Estados Unidos. Na contramão dessa chave explicativa, Rodrigo adotou perspectiva de análise orientada pelo princípio de troca, uma via de mão dupla , que pautaria as relações entre os governos nacionais e tais organizações. Tal perspectiva pressupõe o reconhecimento da existência de distintos cenários, interesses, pressões que emergem em diferentes circunstâncias e por um leque de atores, instituindo trocas médico-científicas entre sanitaristas norte- americanos e, especialmente, latino-americanos. A compreensão de tal dinâmica requer, portanto, análise circunstanciada com base nas interfaces entre ideias, atores e instituições vinculados a determinados domínios sócio-políticos. Nesse sentido, a obra de Rodrigo está afinada com uma historiografia que interpela a visão de que a corporação médica local adotaria acriticamente a ciência originada nas metrópoles europeias e nos Estados Unidos, conferindo assim validade à hipótese difusionista. Contudo, um conjunto de estudos mais recentes, incluindo-se este, reforçam argumentos contrários ao difusionismo ao identificarem exemplos de descobertas científicas originais na periferia, em que se evidencia a maneira pela qual o discurso médico e sanitário contemporâneo foi reconfigurado seletivamente e de maneira criativa, de modo a atender as prioridades produzidas pelas dinâmicas nacionais, regionais e locais. O recorte temporal da pesquisa de Rodrigo inicia-se no ano de 1918, quando foi deslanchada a campanha pela Fundação Rockefeller, e termina em 1968, momento em que a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti da OSP foi suspensa, como consequência da decisão do governo norte-americano de encerrar o seu programa nacional de erradicação, não obstante – e em aparente paradoxo/contradição – a reinfestação do continente pelo mosquito a partir dos Estados Unidos. Para tratar dos 12 cinquenta anos de vigência da Campanha, Rodrigo atém-se a três planos de análise: as mudanças operadas nas doutrinas e práticas de combate às doenças, com destaque para a febre amarela; o rico contexto da saúde internacional da época e a inserção da questão da cooperação internacional em saúde nele; as ações e medidas adotadas visando à implementação da Campanha Continental para Erradicação do Aedes aegypti nas Américas, no pós-Segunda Guerra Mundial, como uma forma de dar continuidade à Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela, lançada pela Fundação Rockefeller em 1918 e continuamente desenvolvida até princípios dos anos 1940. A pesquisa de Rodrigo evidencia o papel de destaque desempenhado pelo Brasil nas atividades de erradicação do mosquito Aedes aegypti das Américas ao longo do século XX. Nesse período, a meta de erradicar a espécie do território brasileiro e, posteriormente, do continente, foi perseguida pelas autoridades políticas e sanitárias do país. No começo do novo milênio, contudo, tal objetivo deixou de figurar na agenda de saúde pública do governo brasileiro. A recente epidemia causada pelo vírus zika reverteu esse quadro, colocando novamente na ordem do dia o combate sem tréguas a Aedes aegypti , também responsável pela transmissão da dengue e da febre chicungunha. O livro em tela nos oferece uma análise original dos esforços envidados no passado recente e subsídios para realizarmos com sucesso este enfrentamento no presente. Que desta vez, no entanto, como nos alerta Rodrigo, a guerra ao mosquito não relegue ao segundo plano o enfrentamento de questões sociais importantes para a proliferação da espécie, tais como a urbanização, saneamento básico, coleta de lixo e fornecimento de água encanada. A erradicação do Aedes aegypti : febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) é fruto de uma tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, em 2013. Em 2014, ela recebeu o prêmio de melhor tese pela Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC). Trata-se de obra densa, abrangente e criativa, que apresenta novo capítulo da história da cooperação internacional no campo da saúde pública, destacando o papel de instituições, atores, ideias, ações e sobretudo a importância da presença dos médicos brasileiros na “concertação sanitária” nas Américas sob a liderança de Fred Soper. Com base em amplas e diversificadas fontes documentais inéditas, pesquisadas em arquivos brasileiros e norte-americanos, Rodrigo demonstra 13 de forma competente como os contextos locais, as relações entre região e nação e as interfaces entre o local e o global, especialmente no campo da saúde pública, são temas obrigatórios. Apesar do rigor acadêmico, o leitor é brindado com a boa escrita de Rodrigo e uma narrativa clara. O livro que ora sai pela Editora Fiocruz é uma grande oportunidade de difundir este belo trabalho que, com certeza, é uma referência no campo de estudos da história da ciência e da saúde pública no Brasil. Marcos Chor Maio Pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz 15 Apresentação O presente livro se originou da minha tese de doutorado em história das ciências e da saúde, desenvolvida sob a orientação de Marcos Chor Maio, no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (PPGHCS/COC/Fiocruz), entre 2009 e 2013. Trata da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti , o primeiro e mais duradouro programa internacional de erradicação já implementado. As origens desse programa remontam ao ano de 1914, quando Wycliffe Rose, o primeiro diretor da Comissão de Saúde Internacional (CSI) da Fundação Rockefeller, idealizou a Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela. Iniciada oficialmente em 1918, após o término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Campanha se desenvolveu entre as décadas de 1910 e 1930, nas Américas e na África, tendo sido marcada por uma série de inflexões até ser reformulada nos anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e relançada, em 1947, sob os auspícios da Organização Sanitária Pan-Americana (OSP), 1 com o nome Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti . Desse momento até o fim dos anos 1960, a meta de erradicar o vetor da febre amarela das Américas foi perseguida, com maior ou menor intensidade, por praticamente todas as repúblicas americanas. A nova etapa da luta contra a febre amarela nas Américas foi proposta pelo médico brasileiro Heitor Praguer Fróes – então diretor do 16 Departamento Nacional de Saúde (DNS) e representante do Brasil na Reunião do Conselho Diretor da OSP, realizada em Buenos Aires, em 1947. Rapidamente aprovada e lançada ainda em 1947, a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti deu continuidade ao programa de combate à febre amarela da Fundação Rockefeller, implementado no período entreguerras, sintetizando as importantes transformações do pós-Segunda Guerra Mundial e sinalizando um novo padrão de relacionamento das organizações internacionais e do governo norte-americano com os países da América Latina, especialmente o Brasil, com maior preponderância destes. A Campanha assinalou o início dessa fase de transição. Durante grande parte do período de vigência da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti , a OSP foi dirigida pelo médico norte-americano Frederick Lowe Soper (1893-1977). Entre 1920 e 1942, Fred Soper trabalhou em campanhas contra a ancilostomíase, a febre amarela e a malária na América do Sul, sobretudo no Paraguai e no Brasil, como membro da CSI da Fundação Rockefeller. Em 1927, inclusive, ele foi nomeado chefe do Escritório Regional da organização filantrópica norte- americana, localizado no Rio de Janeiro. Em 1930, tornou-se também diretor do Serviço Cooperativo de Febre Amarela (SCFA), agência administrada conjuntamente pelo governo brasileiro e pela Fundação Rockefeller, cujo objetivo era combater a doença no Brasil. Além de liderar a Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller no Brasil, a partir dos anos 1930, durante a sua permanência no país Soper também coordenou o trabalho de combate ao mosquito de origem africana Anopheles gambiae , vetor da malária, que havia infestado regiões do Ceará e do Rio Grande do Norte. No curso dessas atividades, desenvolveu laços estreitos com a comunidade médica e sanitária nacional. 2 No período em que atuou no país, Fred Soper e os seus colaboradores observaram que Aedes aegypti desaparecia completamente de determinadas áreas, o que reorientaria a campanha contra a febre amarela (Soper & Wilson, 1942; Soper, 1968; Soper & Duffy, 1977). As atividades de combate a Anopheles gambiae no Nordeste brasileiro, por sua vez, o convenceram de que ele tinha desenvolvido as técnicas e os métodos necessários para alcançar a completa eliminação das duas doenças pela erradicação dos seus vetores, convertendo-se, assim, no principal proponente do conceito de erradicação das espécies nas décadas de 1930 e 1940. 17 Nos anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Soper foi enviado para a Europa, onde, como consultor da Secretaria da Guerra dos Estados Unidos e integrante da Comissão de Tifo do Exército Norte- Americano, atuou no Egito e na Itália, liderando campanhas contra o tifo e a malária. Nessas campanhas, ele foi o primeiro a testar o poder do diclorodifeniltricloretano, um novo inseticida de ação residual que ficaria conhecido como DDT, no controle das doenças, o que aumentou a sua convicção de que era possível erradicá-las. Terminada a guerra, Soper levou a sua filosofia erradicacionista para a OSP, da qual foi eleito diretor por três mandatos consecutivos (1947-1958). Sob a sua responsabilidade, a organização aumentou consideravelmente o seu orçamento, número de funcionários e atividades, especialmente o lançamento de campanhas de erradicação de doenças como a bouba, a malária e a varíola. A primeira e principal dessas campanhas no pós-Segunda Guerra Mundial, no entanto, foi a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti , lançada em 1947, formulada e encampada pelos mesmos homens que participaram das atividades de combate à febre amarela e à malária no Brasil. Dois anos depois, em 1949, quando a OSP se tornou Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) nas Américas, Soper pôde influenciar a decisão da OMS de lançar, em 1955, o Programa de Erradicação da Malária (Malaria Eradication Program). Após a sua saída da OSP, ele se dedicou a implementar um programa de erradicação de Aedes aegypti nos Estados Unidos, país que havia se comprometido com a Campanha Continental quando do seu lançamento, mas que até meados da década de 1950 nada tinha feito para implementá-la em seu território. A carreira de Soper como funcionário da saúde pública se estendeu por grande parte do século XX, dando-lhe a possibilidade de participar de todas as grandes questões sanitárias da época. 3 Sua trajetória profissional também nos permite vislumbrar o processo de cooperação internacional em saúde nas Américas. Partindo da hipótese de que a cooperação interamericana foi construída em áreas como a ciência e a saúde, mais consensuais e menos propensas a conflitos se comparadas com as esferas econômica ou política stricto sensu , a Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela, lançada pela Fundação Rockefeller em 1918, estreitou as relações entre as repúblicas americanas que, nas primeiras décadas do século XX, mantinham poucos contatos diplomáticos e praticamente não dialogavam internacionalmente em áreas como a política e a economia. Com o seu lançamento, inaugurou-se 18 uma fase de maior diálogo entre os países do continente, sobretudo em torno do problema da febre amarela, que afetava a todos, na medida em que a doença incidia diretamente sobre o comércio internacional. Essa cooperação interamericana na área da saúde se estreitaria entre as décadas de 1920 e 1940, desembocando, no pós-Segunda Guerra Mundial, em uma proposta acordada entre as nações da região para erradicar a febre amarela das Américas, expressa na Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti que, como procuro mostrar, constituiu-se em uma nova fase da campanha da Fundação Rockefeller, só que em outro contexto internacional. Privilegio, então, a dimensão das relações internacionais, oferecendo uma abordagem de conjunto da campanha contra a febre amarela nas Américas, antes e depois da Segunda Guerra Mundial, sob esse viés da continuidade. A reformulação da Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller nos anos da Segunda Guerra Mundial e o seu relançamento, em 1947, com o nome de Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti , resultaram de uma articulação inédita das repúblicas americanas para combater conjuntamente um problema sanitário que afetava todas elas. Desse modo, para discutir a crescente cooperação internacional em saúde que foi se estabelecendo nas Américas ao longo do seu desenvolvimento, parto da análise da Campanha, com os seus avanços, retrocessos e inflexões, em diferentes contextos políticos e sanitários. Também estou interessado nos impactos dessa cooperação sobre o campo da saúde pública no Brasil e nos Estados Unidos, bem como sobre as relações científicas, sanitárias e políticas mantidas entre os dois países e entre eles e as demais repúblicas americanas em torno da questão da febre amarela. Tal cooperação foi mediada por organizações internacionais como a Fundação Rockefeller no entreguerras (1918-1939) e a OSP no pós- Segunda Guerra Mundial e ocorreu em meio a um cenário caracterizado por uma atmosfera de otimismo sanitário, pela emergência de planos e ideias de desenvolvimento nas Américas, pelos desígnios da Guerra Fria, pelas disputas no campo sanitário envolvendo o conceito erradicação, pelo surgimento de novas organizações internacionais, com destaque para OMS no campo sanitário, pela reestruturação da OSP, pelo fortalecimento do pan-americanismo, por disputas entre OMS e OSP e por uma mudança de foco da Fundação Rockefeller, que restringiu as suas atividades no terreno da saúde internacional, disponibilizando uma série de especialistas para as organizações recém-criadas. No plano nacional, os aspectos mais 19 relevantes foram a experiência parcialmente bem-sucedida de combate à febre amarela, o debate sobre o tipo de parceria que o Brasil teria com os Estados Unidos no pós-guerra e a necessidade de manter o crescimento econômico naquele contexto, caracterizado pela diminuição do aporte financeiro norte-americano. Os anos 1918, quando a Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela foi lançada pela Fundação Rockefeller, e 1968, quando a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti da OSP foi abandonada, em virtude da decisão do governo norte-americano de encerrar o seu programa nacional de erradicação, em meio a um cenário de reinfestação do continente pelo mosquito a partir dos Estados Unidos, são os marcos cronológicos deste estudo. A análise do desenvolvimento da campanha contra a febre amarela ao longo desses cinquenta anos me permitiu avaliar a crescente articulação das repúblicas americanas no plano das relações internacionais em geral e sanitárias em particular, bem como os seus impactos na área da saúde no continente. Para tanto, procurei articular três planos de análise: (a) as transformações operadas nas doutrinas, políticas e práticas de combate às doenças, com destaque para a febre amarela; (b) o rico contexto da saúde internacional da época e a inserção da questão da cooperação internacional em saúde nele; (c) as ações e medidas adotadas visando à implementação da Campanha Continental para Erradicação do Aedes aegypti nas Américas, no pós-Segunda Guerra Mundial, como uma forma de dar continuidade à Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela, lançada pela Fundação Rockefeller em 1918 e continuamente desenvolvida até princípios dos anos 1940. Este volume é composto de sete capítulos. No primeiro, serão analisados os dez anos iniciais da Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller, nas Américas e na África, desde o seu lançamento, em 1918, até 1928, quando uma grave crise nos âmbitos prático e teórico ameaçou a continuidade das suas atividades. Esse capítulo está dividido em quatro seções. Na primeira, traço um histórico da Fundação Rockefeller, abordando as origens e os primeiros programas sanitários desta que foi a maior organização filantrópica da primeira metade do século XX e a responsável pelo lançamento e implementação da Campanha no período entreguerras. Em seguida, a ênfase recai sobre as articulações que levaram à elaboração e ao lançamento da Campanha, suas primeiras atividades nas Américas e na África e as principais ideias epidemiológicas e práticas que orientavam a luta contra a febre amarela nas décadas de 1910 e 1920. 20 Em um terceiro momento, desloco o foco da análise para o Brasil, último país das Américas a receber a cooperação da Fundação Rockefeller e onde a Campanha Mundial deveria ser finalizada. Na última seção, discuto o impacto de alguns acontecimentos e descobertas, na África e nas Américas, na Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller que impediram que a meta fosse alcançada, abalaram as suas bases epidemiológicas e práticas e ameaçaram a sua continuidade. O assunto do segundo capítulo é a reorganização da Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela, empreendida por Fred Soper, no Brasil, na década de 1930, em meio a um cenário de desabamento de todas as certezas existentes sobre a doença e a melhor maneira de combatê-la. Para tanto, percorro o período de dez anos compreendidos entre 1929, quando a Fundação Rockefeller e o Estado brasileiro renegociaram as bases da cooperação existente desde 1923, e 1939, quando a organização filantrópica norte-americana transferiu a responsabilidade pelo combate à febre amarela no país ao governo federal, encerrando uma parceria de 16 anos. Esse período foi marcado pelo desenvolvimento de novas técnicas laboratoriais que possibilitaram a realização de um mapeamento da extensão da febre amarela nas Américas, durante o qual novas descobertas sobre a enfermidade foram feitas. Desse modo, em um primeiro momento explicito as novas bases da cooperação entre a Fundação Rockefeller e o governo brasileiro, firmadas na transição da década de 1920 para os anos 1930. Em seguida, minha análise recai sobre as novas descobertas relacionadas à febre amarela realizadas no país que, somadas àquelas que estavam sendo feitas no continente africano desde meados dos anos 1920, levariam a uma reorganização da Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela. No terceiro momento, o foco se desloca para as consequências de uma grave crise sanitária que se abateu sobre o Nordeste do Brasil, nos anos 1930, em virtude da chegada à região do mosquito Anopheles gambiae , um dos principais vetores da malária, atingindo as ideias e práticas então vigentes acerca da melhor forma de combate às doenças transmitidas por vetores. O capítulo se encerra com uma discussão sobre o conceito de erradicação das espécies, fortalecido durante as campanhas contra Aedes aegypti e Anopheles gambiae no Brasil. Examino, no terceiro capítulo, a crescente cooperação em prol do combate à febre amarela entre os países da América do Sul na área da saúde pública, no início da década de 1940, relacionando-a com as primeiras articulações das repúblicas americanas para o lançamento de uma 21 campanha de erradicação do mosquito Aedes aegypti do continente. O cenário é o combate à doença na América do Sul após o fim da cooperação entre a Fundação Rockefeller e o Estado brasileiro. Embora tenha transferido as atividades de combate à doença para o governo brasileiro, ao longo da década de 1940 a Fundação Rockefeller continuou participando de campanhas de erradicação de Aedes aegypti em diversos países da região. Nesse período, os Laboratórios de Febre Amarela da organização localizados no Brasil e na Colômbia passaram a centralizar as investigações entomológicas e o mapeamento da enfermidade em todo o continente, de modo a identificar sua real extensão e, assim, desenvolver formas mais eficazes de combatê-la. O Serviço Nacional de Febre Amarela (SNFA), inclusive, que havia assumido a responsabilidade pela campanha no Brasil após a saída da Fundação Rockefeller, passou a atuar em muitos países das Américas como consultor e/ou coordenador de programas de erradicação de Aedes aegypti na região, formando e treinando pessoal em cada um deles, o que estreitou ainda mais as relações entre as nações do continente no campo da saúde pública. Com isso, um novo modelo de combate à febre amarela, calcado na erradicação do mosquito Aedes aegypti e em um planejamento minucioso das atividades, criado no Brasil, nos anos 1930, se internacionalizava, sendo exportado para outros países do continente. A crescente cooperação das repúblicas americanas no combate à febre amarela teve como resultado as primeiras proposições de uma campanha contra o vetor da doença em escala continental. No quarto capítulo, me detenho na Europa e no norte da África, para onde Fred Soper foi enviado em 1942, como membro da Comissão de Tifo do Exército Norte-Americano. Nos anos da Segunda Guerra Mundial, ele participou de importantes campanhas contra essa enfermidade e a malária no Egito e na Itália. Após o sucesso obtido no combate a Anopheles gambiae no Nordeste brasileiro, na década de 1930, tais campanhas se constituíram na primeira tentativa de aplicação do que Soper considerava a sua “filosofia de erradicação dos vetores” fora do continente americano. As bem-sucedidas campanhas contra Anopheles gambiae que ele liderou no Egito e na Sardenha consolidaram em muitos especialistas em saúde pública a crença de que a erradicação das espécies era a melhor forma de combater enfermidades transmitidas por vetores. O objetivo desse capítulo, então, é analisar as campanhas contra o tifo e a malária nesses países, nos anos da Segunda Guerra Mundial, relacionando-as com a reabilitação da ideia de erradicação, que no pós-guerra se transformaria em um conceito-chave nas campanhas