1 Sérgio M Portugal Um Reles Réu O Réu Que Não Se Curvou Paulistano lá da zona leste, era doido esse Ramiro. Nem sei o porquê de ele ter vindo para 2 Curitiba. Não era “inocente de tudo”, sabe? Ele já havia estado preso anteriormente. Morava numa quitinete no bairro do Portão na cidade de Curitiba. Trabalhava como digitador. Ganhava pouco, mas o suficiente para manter a moradia. Esse mulato magro de 30 anos namorava a Belinha. Uma tetéia, viu? Tudo estava indo muito bem até o dia em que o casal de namorados foi abordado pela provocação de um cara folgado: – Ô Gostosa! Quanta saúde, hein? Cachorra! Ramiro percebeu que o sujeito tinha uma arma em suas costas, pois quando o mesmo começou a insultar, ele estava de perfil, possibilitando ser percebida a presença de um revólver em suas costas por trás da jaqueta. “Esse desgraçado é atrevido só porque tá armado! Ele vai pagar...” Pensou Ramiro. Belinha conhecia o “sem-futuro”. Era irmão de 3 um dono de boca de fumo (traficante local). Belinha começou a discutir: – Seu idiota! Pau-no-cu! Enquanto os dois discutiam, Ramiro deu um bote rápido na arma do babaca, desferindo um murro direto de direita no queixo do babaca. O gaiato estava caído no chão, perplexo e olhando para Ramiro empunhando o revólver de calibre 38 que tinha sido capturado. Após uma surra homérica, o fiel namorado de Belinha tirou as balas do tambor e jogou a arma para um lado da rua e a munição para outro. Depois daquele espetáculo de baixo nível, Belinha ficou desesperada e gritou: – Ramiro! Esse cara que você bateu é irmão do Toninho, o traficante lá da esquina! A gangue deles vai te matar! A única alternativa era fugir. Belinha tinha implorado para que ele fosse embora. Ele não 4 quis se humilhar e pedir dinheiro para ela. A namorada não sabia que o amado estava sem nenhuma moeda no bolso. A sensação era de corrosão por dentro. Era como estivesse desertando de uma guerra, mas pela garota ele fazia tudo. Foi parar na rodoviária de Curitiba com uma intenção: ir embora. Como ir para São Paulo sem um tostão sequer? Na rodoviária ele foi para o setor interestadual. Viu uma oportunidade: uma lanchonete. Duas moças trabalhavam lá. Uma delas saiu e a outra ficou no caixa e atendendo o público ao mesmo tempo.“ É agora!”, pensou Ramiro. Como não havia ninguém querendo comprar, ele logo pediu:– Me vê aquele salgadinho ... – Esse aqui? – indagou a moça. – Não. Aquele lá no fundo ... – Ah, tá ... 5 Quando a moça foi para o fundo do estabelecimento pegar o requerido alimento, Ramiro abriu furtivamente a gaveta do dinheiro e pegou uma quantia equivalente a um salário mínimo. A atendente trouxe a encomenda e Ramiro perguntou: – Quanto é? – Dois reais. A compra foi paga com o dinheiro exato, não necessitando de troco. Saiu sem levantar suspeita. O gatuno estava na fila do guichê para comprar passagem rumo a São Paulo, quando foi abordado por dois policiais militares. O policial mais velho foi logo falando alto: – Aí magrão! Acompanha “nóis” aí! O Suspeito em questão não demonstrou nervosismo. Os policiais revistaram o 6 recém-detido e acharam o maço de dinheiro envolto em um elástico. Na frente dos demais frequentadores da rodoviária, os policiais tentaram transparecer seriedade. Satisfeitos com a prisão, demonstraram cavalheirismo ao devolver o dinheiro para a moça da lanchonete. Se fossem seguidos os padrões da lei, um condutor de prisão não pode devolver o dinheiro ou objeto à vítima, pois é prova do processo. Esse tipo de gentileza sempre denota coisa estranha ou no mínimo irregular. Sob este ponto de vista Ramiro percebeu algo nítido através desta ação: olhares e tons de voz mostraram que um dos policiais estava paquerando a funcionária da “lanchô”. O polícia paquerador falou em tom orgulhoso na frente das funcionárias e espectadores: – É magrão... A mulher da limpeza viu você “ganhando” a grana! Acompanha “nóis” aí. Você tá preso. 7 Os PMs levaram o recém-preso para a salinha do posto da Polícia Militar no segundo andar da Rodoviária. Ao fechar a porta da sala, os policiais começaram a espancar Ramiro. Este, com as mãos algemadas para trás, conseguiu acertar um chute no rádio de comunicação da polícia. O rádio caiu no chão espatifado em vários pedaços. O policial mais velho esbravejou: – Desgraçado! Os dois policiais continuaram a espancar o cativo, desta vez com mais raiva. O réu Ramiro foi conduzido ao Distrito Policial situado no bairro das Mercês, uma vez que o escrivão do distrito policial do centro de Curitiba se recusou a aceitar o preso sem o exame de lesão corporal. Um ladrãozinho de rodoviária merece levar porrada segundo a mentalidade folclórica de grande parte dos policiais no Brasil. Lá o escrivão perguntou nome, endereço etc. Ramiro negou-se a responder as perguntas. Quando os 8 policiais da delegacia insistiram, ele limitou-se a dizer: –Vocês já têm meus documentos. Não vou responder nem assinar nada. O Escrivão, furioso, gritou: – O quê?! Você não vai assinar a nota de culpa?! Um policial desferiu um tapa no pescoço dele. Ramiro, num ato de rebeldia, avançou na direção do escrivão e quebrou o computador e a impressora. Após uma baita surra o réu foi conduzido ao cárcere daquela delegacia. Os policiais jogaram o corpo quase desfalecido de Ramiro junto aos outros presos. Um dos policiais, para produzir intriga, gritou: – Esse cara aí é estuprador, cagüeta (delator), vocês não vão deixar barato, vão? 9 Quando o polícia fechou a grade, um dos presos perguntou: – E daí maluco?! Qual é a sua? Pelo jeito você deve, né? Ramiro respondeu, seguro de si: – Olha, se vocês quiserem me bater, tudo bem, mas vocês preferem acreditar na polícia ou no ladrão? Por acaso eu trouxe alguém preso comigo? Mano, acabei de quebrar o computador do escrivão, apanhei muito!Um preso mais velho comentou com serenidade: – Olha, o maluco tá certo. A gente não tem que abraçar idéia de porco, tá ligado? Na minha vida já vi muito inocente apanhar porque a polícia “botou pilha”. Os presos não espancaram Ramiro. Perceberam que era mais uma vítima da covardia do Estado coator. Vinte e poucas horas mais tarde, o 10 recém-réu foi conduzido ao centro de triagem. Esse órgão tem por finalidade distribuir presos para presídios do departamento penitenciário. Os pensamentos de Ramiro dentro do camburão, como são conhecidas as viaturas ultra desconfortáveis do Brasil, lhe serviu como fuga para o sofrimento: “Ah, Belinha! Minha deusa inspiradora de bons pensamentos! Meu abrigo contra qualquer tormenta! Te amo para sempre, meu amor!” Dentro do camburão ele pensava na namorada como se fosse um navio que há muito partiu. Belinha era o único remédio contra inúmeras violências. A doçura da lembrança do passado era intercalada com um sentimento de culpa: “Eu estraguei tudo! Nunca mais vou poder ver minha deusa! Se voltar lá vou matar ou ser morto! Acabou nosso namoro!” Ao desembarcar no centro de triagem, um agente penitenciário ordenou que o preso 11 tirasse toda a roupa para revista. Ramiro obedeceu calado. O agente penitenciário perguntou nome, endereço, profissão etc. Ramiro não respondeu nada. Em seguida foi conduzido até outra cela com outros presos. O agente penitenciário o advertiu com hostilidade: – Se você continuar a não responder o que eu te pergunto, você vai “arranjar pra cabeça”, seu verme! Dentro da cela ele ficava calado o tempo todo, era misterioso, intrigante... Os presos que tentavam conversar com ele obtinham apenas respostas curtas e evasivas. Horas passaram e ele foi convocado a sair da cela e acompanhar o carcereiro penitenciário até a sala de cadastro prisional. Lá é feito o registro biométrico dos réus para se tirar impressões digitais, foto, altura etc. Nesse tipo de ambiente o ser humano cataloga o próprio ser humano como 12 mero gado de abate para fins de catalogação. Antes de entrar na sala de biometria e foto, Ramiro foi mais uma vez advertido por um agente: – Se você não responder as perguntas, vai pro latão, ouviu? O “latão” é o apelido vulgar para cela solitária de castigo com pouquíssima iluminação. Havia mais dois presos na fila para tirar foto e passar as digitais dos dedos no scanner. Ramiro continuou quieto o tempo todo. Havia naquela sala apenas o fotógrafo catalogador e um carcereiro. Ao chegar a vez de Ramiro o fotógrafo ordenou: – Encoste a cabeça na parede. Na parede estavam pintados vários números para que ficasse registrada a altura do réu. O fotógrafo estava regulando o tripé fotográfico e, quando foi acoplar a câmera na base, Ramiro de súbito a arrancou da mão do fotógrafo. A câmera foi 13 arremessada contra o chão, sendo espatifada em vários pedaços. Em seguida quebrou o computador e o scanner para digitais. O chefe de segurança do centro de triagem ficou furioso com os agentes: – Como podem vocês, seus incompetentes, deixar este louco quebrar tudo?! Os carcereiros deram uma surra em Ramiro e o conduziram à cela solitária escura de castigo. No dia seguinte era dia de visita dos presos que ali estavam por medida de segurança (ex-policiais, delatores, advogados, empresários que receavam convívio com bandidos, estupradores etc.).Ramiro aproveitou a fragilidade da ocasião e entupiu o vaso sanitário com um pano de chão imundo, apertou a descarga e fez transbordar água por todo o centro de triagem, um ambiente de apenas um corredor (galeria), com vinte celas com uns cinco presos cada. Foi água por todo lado, provocando uma confusão 14 generalizada.O chefe de segurança foi categórico: – Tirem este louco daqui! Mandem ele pra Casa de Custódia ou pra qualquer cadeia que tenha vaga! Vamos! Agora! No mesmo dia o réu, após ser espancado mais uma vez, foi para a Casa de Custódia de Curitiba, um presídio de segurança máxima. A cena seguinte é a da entrada do preso num furgão ultra-desconfortável. Após uns 40 minutos dentro de um cubículo apertadíssimo e escuro, chegou ao destino. Ao desembarcar na Casa de Custódia de Curitiba, teve que tirar a roupa e lhe entregaram uniforme cor laranja, junto com uma sacola com um kit contendo sabonete, toalha, camiseta, travesseiro e fronha, escova de dentes, barbeador, pasta de dentes, cobertor, lençol, travesseiro e colchão. Um agente penitenciário perguntou: – Qual é o seu nome e a data de nascimento? 15 – Tá tudo aí no prontuário. – respondeu Ramiro secamente. – Que desgraçado! Ainda por cima não tem nenhuma foto no prontuário desse ladrão! Passaram cinco minutos e um agente veio com uma câmera digital para catalogar o interno. – Vamos, interno! Encoste as costas na parede. – Gritou o agente. Ramiro esboçou obediência, mas não resistiu à fúria: desferiu um pontapé certeiro na maldita câmera, quebrando-a em mil pedaços. Logo depois, adivinhe! Levou outra surra! Após a reprimenda física, o preso foi levado para uma galeria com estilo futurístico, onde não havia grades, e sim acrílico transparente de alto impacto e portas de aço. Era por volta de 2006, e não fazia muitos anos que aquele presídio tinha sido inaugurado. 16 O réu, agora chamado de interno, ficou impressionado. Nem parecia terceiro mundo. Todos os presos estavam com uniforme cor de laranja, e os próprios internos fechavam as portas das celas quando solicitados por alto-falantes. A arquitetura do presídio era estilo norte-americano, só que no lugar que originalmente era pra dois por cela, a arquitetura tupiniquim “espremeu” fazendo caber cinco detentos! Na cela havia uma pia de aço inox emendada com um vaso sanitário também do mesmo material. O espaço era apertado: 2 metros e pouco de comprimento por dois de largura. No fundo os presos tinham a visão de duas janelas estreitas de acrílico de alto impacto e, acima próximo ao teto, uma pequena abertura para ventilação. A porta da cela abria com comando eletrônico a partir da sala de controle de segurança. Esta sala era revestida de acrílico transparente de alto impacto onde um agente abria as portas de todas as celas das três galerias do presídio, com 36 celas cada. 17 A porta da cela era de aço com uma pequena janelinha de acrílico transparente com uma abertura abaixo para que os alimentos e correspondências fossem entregues. A sala de controle só não conseguia fechar a porta. Os presos tinham o dever de fechar a porta da cela quando solicitados. A cela, quando estava fechada, não poderia em hipótese alguma ser aberta sem que isso fosse percebido pelo painel eletrônico da sala de controle. Havia câmeras de vídeo de segurança por todo os lados. No passado só havia uma falha de segurança: a ausência de muro. Mas após uma fuga bem sucedida promovida em 2005, foi construído um muro muito alto com guardas “armados até os dentes”. A fuga ocorreu devido a um grupo de criminosos destemidos que cortaram os alambrados em volta. Os bandidos arrebatadores trocaram tiros com os guardas e quebraram algumas paredes de celas com marretadas... Mas isso é outro fato. O que importa é que depois dommuro e da colocação de cabos de aço suspensos, para impedir 18 aterrissagem de helicópteros, a Casa de Custódia tornou-se uma fortaleza anti-fuga. A CCC, como era conhecida, também era à prova de rebelião, por causa do sistema de abertura de portas. Ramiro ficou sozinho numa cela com quatro camas de concreto. A porta ficou aberta depois que ele entrou. No alto falante o guarda falou: – Atenção interno da cela 206! favor fechar a porta! Depois ouvia-se uma campainha com som de aeroporto:“Ding-dong”... – Atenção interno da cela 206, feche a porta agora! Um preso que trabalhava na faxina gritou: – Ô mano! Aqui a gente é obrigado a fechar a porta, faz favor, coopere! 19 – Se eles quiserem me dar outra surra, é tudo com eles! – respondeu Ramiro. – Mas irmão, o sistema na “CCC” é assim, todos os presos tem que fechar a porta, por que é que você tem que ser diferente?– retrucou o preso da faxina. – Irmão, não leva a mal, mas eu não sou carcereiro, sou preso! Eles é que fechem, se eles quiserem me botar no castigo,“demorou”! Todos os presos da faxina tiveram que se recolher para o agente penitenciário entrar e fechar a porta da cela do Ramiro. O novo interno era um estranho no ninho, não cedia às pressões de maneira alguma. Permanecia calado, sozinho, só saía para tomar banho de chuveiro. Os chuveiros ficavam fora da cela. Não tinham torneira. A ducha era controlada pela torre de controle. O banho durava três minutos apenas. Era água fria. 20 Uma semana passou, e os guardas juntamente com os presos da faxina se viram em apuros. Toda vez que o interno Ramiro ia para o chuveiro, todos os demais tinham que se recolher aos seus respectivos cubículos para obedecerem à regra de segurança. Depois, a porta de segurança abaixo da sala de controle abria paraos agentes entrarem e fecharem a porta do preso rebelde. Lino, um réu preso por tráfico de drogas, morava com dois doentes mentais na cela. Era muito paciente e calmo, e tinha fama de apaziguador. Agentes junto com os presos da faxina perguntaram se ele topava morar com mais um louco. Lino respondeu de imediato: – “Demorou”! Pode mandar esse maluco aqui que ele será bem-vindo.