1 Minha Filosofia Crônicas & Contos DOUGLAS ELEMAR 2019 Campo Grande/MS 2 “A troça é a maior arma de que nós podemos dispor e , sempre que a pudermos empregar, é bom e é útil. Nada de violência, nem barbaridades. Troça e simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo. O ridículo mata e mata sem sangue. É o que aconselho a todos os revolucionários de todo o jaez." Lima Barreto “O último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade.” Millôr Fernandes “A ironia é a expressão mais perfeita do pensamento.” Florbela Espanca 3 Advertência ao leitor O livro de crônicas e contos que o leitor, ou leitora (ou seja lá como você se de- fina) tem em mãos foi escrito em meios virtuais nos últimos cinco anos; vividos estes entre o Rio de Janeiro e Campo Grande. Muita coisa abaixo talvez o autor não tivesse escrito de novo. Porque o autor pensa que dizer , falar , escrever é tornar vida, é criar, é dar som à ideia, e de certas vidas, de certas ideias nós podemos ou devemos às vezes nos arrepender — e é comum que seja assim, mortais que somos, só aprendemos pelo erro, daí a perspicácia de alguns filósofos em dizer que filosofar é aprender a morrer. Em todo o caso, as crônicas e contos ora reunidos nasceram sob a luz do mais sincero e imaculado otium philosophicum. Quem os for ler, portanto que tenha o próprio entendimento para aqui julgar, criticar, guardar ou esquecer. Nunca foi minha intenção ser autor. Para dizer a verdade, eu me descobri escritor por acaso (leia Kardec, mas leia Deleuze e Descartes também), quero dizer que me descobri autor, cronista pelos outros , são sempre os outros que nos descobrem antes de descobrirmo-nos a nós mesmos, terrível ironia da vida; ou pode ser também que Sêneca e Salomão estejam certos, laus alit artes (o elogio alimenta a arte) e vanitas vanitatus, est omnia vanitas (vaidade de vaidades, tudo são vaidades). Fico com o Eclesiastes! Sendo assim, em virtude da mais pura vaidade dedico este livro a mim mesmo, aos meus amigos, familiares, colegas professores, alunos e at last but not least, aos futuros leitores desse opúsculo (que vem se somar a tantos outros opúsculos que não serão lidos nesse mundo, mundo este que não deixa de ser também um opúsculo em forma de planeta cujo sentido sempre nos escapa por mais que o inda- gamos), que eu nunca talvez nunca venha a conhecer, mas que já os admiro, estimo e congratulo na fraternidade que é a vida com leitura. Num mar de livros e manuscritos, que este seja mais um colocado dentro de uma garrafa e que fique à deriva, quem sabe descoberto por algum náufrago ou leviatã. 4 In memoriam Danilo, Sofia, Gutemberg, Lucília, Stefan e Bruno Alves. Para minha mãe e meu pai. Para o Luís Henrique, pela amizade desinteressada e as incontáveis conversas, koinonia gar he philia. A elas , sempre, que tornam o fardo leve e o mundo um lugar mais agradável 5 Sobre Direit a Muitos não sabem, mas eu sempre fui de esquerda. Sou esquerda desde pequenininho. Minha mãe conta que quando estava prenha de mim, meu pai chegou perto dela e disse, com a certeza dos profetas: ―Vai ser menino, se chamar Douglas, ter sobrancelha grossa e ser de esquerda‖. Excetuando-se a sobrancelha, que não é a única coisa grossa em mim (refiro-me ao meu temperamento, claro), meu velho pai acertou na mosca! De lá pra cá, cabe dizer também que sofri — e sofro ainda — por ser de esquerda. Afi- nal, está claro como um albino que o mundo não é de esquerda, é de direita. As pessoas trocam aperto de mãos com a mão direita; o câmbio do carro fica à direita do motorista; a manopla que acelera a motocicleta também fica à direita do piloto; quando que- remos alterar alguma coisa específica no computador, clicamos com o botão direito do mouse ; é com a mão direita que abrimos a porta da nossa amiga geladeira. E para não ficar apenas nos laicos exemplos: para que os pescadores conseguissem pe- gar os peixes, Cristo ordenou-os que lançassem a rede à direita do barco (João 21:6); a orelha de Malco, servo do sumo sacerdote, decepada pela espada de Simão Pedro, foi a da direita (João 18:10); e adivinhem qual foi a orelha cortada pelo mestre Van Gogh? A direita! Eu poderia ficar aqui até o fim dos tempos dizendo o tanto de coisas que fazemos com a mão direita. Eu não sei se é tão errado assim ser de esquerda quando tudo à nossa volta dá provas do contrário, mas quando fiquei sabendo que a palavra right , do idioma inglês que tanto gosto, além de significar o termo ―direita‖ significa também ―certo, correto‖, eu fiquei mesmo muito chateado, all right ?! Ser canhoto, isto é, ser de esquerda, escrever com a mão esquerda como eu escrevo e tal como o vaticinou meu pai, é um verdadeiro fardo. Mas o nosso mundo é um mundo de fardos, infelizmente. As Bacantes Além do absurdo que é o tratamento recebido pelos alunos das universidades públicas do Rio, o descaso e escárnio com o universitário não param por aí. Greve de professores, greve de alunos, ascensoristas sem salário, aluno sem elevador; poucos não são os obstáculos para fazer o pobre universitário desistir da tão sonhada carreira acadêmica e poder, finalmente, entregar o canudo ao papai e à mamãe. Porque a namorada já tem o dela guardado. Junto à sobremesa que serviram ontem no bandejão (o prato foi bife à rolê), um peque- no aviso informava: "Duo de Frutas - Abacaxi e Uva". Terminada a refeição, o aluno de filosofia, já ansioso por comer apenas as uvas — quem sabe colhidas por finas e delicadas mãos de ascendência europeia — , pega da sobremesa, tira- lhe a tampa e o que vê? Uma única e roliça uva entre dezenas de cubos de abacaxi. A pobre uva estava mais solitária que piano em orquestra. Quem o reitor pensa que é? Sumo sacerdote de Baco, pronto a distribuir miseráveis uvas como se fossem hóstias? Uma única uva! E pior, ainda tinha caroço. Depois desse exemplo de mesquinhez, não quis pagar para ver. Peguei o palito que es- tava espetado no bife, e fui-me embora palitando os dentes — ainda tenho esse deplorável cos- tume que a sociedade tanto abomina: palitar os dentes. 6 Pequeno Diálogo do Casal Moderno — João, posso te fazer uma pergunta? — Claro, amor... — Você não me curte mais? — Como assim, Maria? Você sabe que eu te curto desde o primeiro dia em que te adici- onei. — Ah, não sei... Você já não olha mais para o meu perfil, não compartilha mais dos meus posts... — Não diga isso, tolinha... Mas é que a bolsa de monitoria tem ocupado muito meu tempo. — Mas antes não era assim, qualquer coisa que eu postasse você curtia, compartilhava, comentava... e sempre colocava um coraçãozinho no final. — Você está muito sensível hoje, amor... Por acaso você já está ―naqueles dias‖? — O quê? Claro que não, seu grosso, machista... Só estou dizendo que alguma coisa mudou, antes nós íamos para todos os eventos juntos, agora nem isso mais acontece. Todo even- to que te convido você não comparece mais. — Não compareço? Mas você quer o que, hein? O último evento que você me convidou foi ―Comemoração dos 226 anos da Queda da Bastilha‖... — E qual o problema? O pessoal lá da faculdade não viu nada demais. Pior é você que comemora no dia 25 de dezembro o aniversário de alguém que já morreu há mais de dois mil anos. — Pelo amor de Deus! Você não quer comparar Jesus Cristo com Robespierre, né? — E daí? Cada um escolhe para si o salvador que bem entender... Uma Carta de Natal para Dickens ― Querido Papai Noel, Eu sei que você não existe e que essa carta é fruto exclusivo do meu ócio hiperbólico, mas vamos e convenhamos — que Natal! Ah, se o meu aparelho digestivo e excretor falasse! Que belos cânticos ele não entoaria em teu nome! Sim, Papai Noel, em teu obeso e polar nome! Tu que és o símbolo inconteste dessa grande festa onde os principais convidados são a fome, a vaidade e o sorriso amarelo. Que tenho eu a ver com a desnutrição das criancinhas des- validas da Namíbia ou do Curdistão? Que me importa a AIDS, os leilões de cabaço pela internet e a emissão de CO2 mundo afora? Às favas com isto tudo! Eu só quero saber de uma coisa: esse Prosecco aí na mesa... É Prosecco mesmo ou é espumante hein? E me passa logo um pedaço desse Chester que o pobre do frango ficou parasi- tando meses e meses só para o meu deleite. Ah, o Natal! Soubesse o Cristo no que se transformaria essa reunião sagrada e ele teria pedido para ser crucificado antes dos trinta e três. Mas o melhor do Natal mesmo é o amigo oculto! Tudo bem que em alguns lugares ele seja chamado de amigo secreto, amigo desconheci- do ou outra coisa que o valha. Mas ter o seu nome elevado aos píncaros da virtude e da moral por um membro da família, isso não tem preço! E ainda ganha-se presente... é mole ou quer mais? Esse ano quem me tirou foi meu cunhado, aquele traste. Coitada da minha irmã, merecia coisa melhor. Mas como diz o velho adágio popular: se cunhado fosse bom, não começaria com as letras ―c‖ e ―u‖. Concordo. Você acredita que eu pedi um filme do Steve McQueen de amigo oculto e o infeliz me traz ―Sete homens e um destino‖?! 7 O canalha ainda teve a desfaçatez de me dizer que ―com‖ e ―do‖ são a mesma coisa. Não se pode mesmo confiar em quem só vê filme dublado e tem o nome da esposa tatuado no antebraço. Salvo esses desprazeres, tudo ocorreu muito bem. No próximo ano, ficou decidido que o Natal vai ser aqui em casa. Faltam 365 dias e já cortei uns dez nomes da lista. Que Deus me perdoe, mas gente sebosa e falsa eu não quero perto de mim. ‖ O Grito do Ypiranga Não sei vocês, mas a mim em nada espantou a notícia de um grupo de pessoas ter ido às ruas, em São Paulo, e reivindicado a volta do regime militar, impeachment da Dilma, ou até mesmo a redução do elevadíssimo preço do pãozinho francês — sim, eu consegui achar numa foto publicada por um jornal, um papel cartolina onde está escrito com caneta pilot : "ABAIXO A DITADURA DO SEU MANOEL DA PADARIA!". Ora, vamos e convenhamos, se Adão, que foi o primeiro entediado da Terra, não se contentou com o paraíso que Deus lhe deu, por que nós haveríamos de nos contentar com o que está aí hoje? O gosto pela oposição nos é tão natural quanto a irreprimível vontade de flatular em público, e, mesmo assim, envergonhamo-nos por isso; afinal de contas, somos feitos à imagem e semelhança de Deus. E como deuses que somos, não ficaria bem sair peidando por aí. Ademais, o direito ao protesto aqui em Pindorama é livre e gratuito, ao contrário do que acontece na China, aquela grande pastelaria socialista. Lá é preciso ter o "Bolsa Protesto"; é verdade, o sujeito que inventar de protestar, sem a anuência do governo chinês, é fuzilado à moda do macarrão miojo, isto é, de maneira instantânea. Eu tenho cá com meus botões que seja uma pena que aqui não haja semelhante prática. Não me refiro ao fuzilamento, mas sim ao "Bolsa Protesto". Poupar-nos-ia de grandes e cons- trangedores embaraços. Mas a vida é assim mesmo, meus caros. Não devemos levar as coisas tão a sério. O ser humano — disse uma vez Nelson Rodrigues — é capaz de tudo, até de uma boa ação. Minha Filosofia Eu vejo um calouro de Filosofia e logo penso: "Pobre alma! Mal nasceu e vai já mor- rer!" Morrer para a família, morrer para os amigos, para o namorado, para a namorada, ou seja, vai viver só. Porque estudar filosofia é isso: viver solitário. Vai viver solitário porque vai morrer para os outros e renascer para si, somente. Vai finalmente ouvir aquela tímida e acanha- da voz do fundo de sua alma a lhe dizer: "Você não vai concordar com essa besteira que está sendo dita, vai?!". Estudar filosofia não é só ler os livros de filosofia, ver filmes sobre filosofia e muito menos publicar no Instagram aquela coleção maneira do Deleuze que você nunca vai ter saco para ler. Não! Estudar filosofia é estudar a si mesmo. Estudar filosofia é tomar o próprio corpo como objeto do pensamento. Não vou dizer tomar a própria alma, porque essa já pertence ou a Deus ou a Satanás. Ser filósofo é, como uma vez disse-me um amigo, ser um gambá de festa. É quando, naquele momento que todo mundo está feliz e contente, você chega e diz: "Não é bem assim não, hein!". E pronto, todo mundo já começa a notar o mau cheiro que você há pouco exalara. Filosofia não é a busca pelo saber, não. Filosofia é a perda do que você achou que sa- bia. 8 A Filosofia é como aquela mulher que você namora, e, enquanto ela fala, você diz para si mesmo: "Nossa... mas ela é muita gata"! Filosofia é deslumbramento, é perder a si mesmo quando não há nada mais a se perder. É viver pelos cantos, como um rato da Cinelândia, pensando em como tal ou qual coisa se suce- deu e ver depois que o mundo pode (e vai) passar muito bem sem o seu questionamento. É pensar, pensar e pensar, até as têmporas lhe doerem bastante, você achar que é fome ou dor de cabeça, e tudo voltar como se fosse um eterno instante. É só ler livros de literatura e ver que ali há muito mais filosofia do que uma aula sobre Aristóteles ou Descartes. A verdade é que todos os livros de filosofia são descartáveis. Todas as aulas de filosofia são prescindíveis. A verdadeira filosofia é aquela que te leva a fazer o que você sempre quis e nunca teve coragem para fazer. É o que levou também um velho alemão a dizer: "Sou demasiado curioso, demasiado problemático, demasiado insolente, para me contentar com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores...". Se isso não é filosofia, se isso não é morrer para os outros e renascer para si mesmo, então eu já não sei de mais nada. De Homino Imitatione O homem é mimético ("macaco de imitação", para os não-iniciados nos inúteis estudos da Filosofia), não só por natureza, mas também pela natureza. Ele viu o pássaro voando pelos céus, veio-lhe a inveja e inventou o avião. Ele viu o cachalote, o tubarão e o golfinho nadando velozmente nos mares, veio-lhe a inveja e inventou, respectivamente, o navio, o iate e o jetski Ele viu o cavalo trotando feliz pelas planícies desérticas, veio-lhe a inveja e inventou o carro. Não só inventou o carro, como ainda estabeleceu o horse power como medida de potência do mesmo. Ele viu o porco, feliz e inocente, chafurdar na lama, e resolveu ele também chafurdar na própria vida, fazendo desta um lamaçal sem sentido e sem propósito; por escolha, não por inve- ja. . E quando cansou do mau cheiro e da sujeira em que se viu metido, criou para si — e para os outros — um Deus eternamente justo e misericordioso (qualidades infinitas perseguem o homem). Mas até aí tudo bem. O problema foi quando ele começou a comer e digerir os próprios modelos de suas invenções. Se o motivo do enfado foi o fato de não mais querer comer as plan- tas ou os frutos das árvores que lhe caíam sob os pés, é coisa que ninguém sabe nem nunca sa- berá. O fato é que ele comeu e continua comendo. E ai de quem contrariá-lo. Ele é capaz de matar, não de comer. Salvo exceções, como uma queda de avião na Cordilheira dos Andes, por exemplo. Mas e daí? Se numa floresta estivermos apenas eu e a onça-pintada, quem será que come quem? Ela, claro! Sim, se ela estiver com fome (e ela ou os filhotes dela estão sempre com fome). Ora, então! Se ela, quando está com fome, pode me matar e comer, por que não poderei eu fazer o mesmo? E é nessa hora que costuma entrar na discussão aquela velha senhora a quem chama- mos pelo nome de Razão . Eu sou um ser racional e penso — embora os atos e palavras da mi- nha incipiente/insipiente vida provem justamente o contrário. Penso que a onça-pintada seja um ser vivo, e, se não fui eu que a dei vida, por que hei de ser eu a tirar-lhe? Questões e mais ques- tões. Enquanto isso, mundo afora, outros seres vivos morrem com terremotos, tornados e outras desgraças. Desgraças essas que os kardecistas querem positivamente nos fazer crer não 9 ter problema algum. Eles não são discípulos de Leibniz, mas também acham que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Se fosse aprovada uma lei que trocasse o verbete vida nos dicionários escolares pelo ponto de interrogação ? , ninguém se daria conta da troca. A única certeza mesmo é a morte. O resto, pura e inútil conjectura. Os Filhos do Caos Lembram dos trinta primeiros segundos da música B.Y.O.B do System of a Down ? En- tão, foi o que aconteceu ontem à noite, por volta das 22 horas, em uma das salas do nono andar da UERJ: caos e desordem. Eu estava no imemorial Cafil passando algumas músicas do notebook para o celular. E já estava também um pouco cansado por conta das mais de três horas de orientação passadas na sala da minha preceptora na parte da tarde. De repente, eu e o resto das poucas almas que ali habitavam o Cafil, ouvimos uns gritos. Pelo tom agudo dos mesmos, imaginei que fossem de mulheres. Depois fiquei sabendo que estava certo. Bem, o que aconteceu no momento seguinte é fácil de deduzir: todos levantaram e foram lá, correndo, ver do que se tratava aquela mixórdia. Todos, com exceção de mim, claro. Não é preciso ser Públio Terêncio para saber que, se sou um homem, nada do que é humano me deverá ser estranho. "Vão vocês... vou ficar aqui", eu disse, com a onisciência dos deuses. E todos foram e logo em seguida todos voltaram: tristes, revoltados e desamparados. Tristes pelo que viram; revoltados porque não puderam fazer nada; e desamparados porque se reconheceram, enfim, como sendo da racionalíssima espécie humana. Ao que parece, um grupo do PSTU (!) atacou, covardemente, um outro grupo de estudantes que estavam numa assembleia. Ao que parece também, anteriormente a assembleia estava ocorrendo no hall do nono (essa eu vi), depois foi para uma sala — cabe averiguar. E foi nesse momento que a horda pstuista fez questão de se comportar como os nossos ancestrais das cavernas — os homo agressivus . Invadiram a sala e, como diz o vulgo, a porrada lombrou geral. Houvesse armas no local, e todos estariam mortos por essa hora. Depois, tomado talvez por um tipo de revelação divina, alguém asseverou: "Nossa, os caras levam a sério mesmo esse lance de esquerda e direita, né?!". A minha vontade foi de per- guntar se num clássico entre Palmeiras e Corinthians, ou Flamengo e Vasco, os torcedores tam- bém levam a sério o Campeonato Brasileiro, porque, afinal, como tem porrada, né? Mas aí me lembrei do argumento da linguagem privada do velho Ludovico e me calei. Na hora de ir embora, passei pela sala. Já estava tudo acabado. A impressão que tive foi a de um camponês romano quando viu sua aldeia queimada pelo exército de Átila. Cadeiras quebradas, gotas de sangue no chão, um monte de lixo, ou seja, mais parecia um octógono do que uma sala de aula. Mas o que mais me marcou foi o cheiro do local. Era um cheiro pesado, cheiro de suor misturado com sangue, coisa horrível. Fui-me embora, e no hall do queijo encontrei um amigo que participou da batalha san- grenta. Estava com o dedo machucado, ensanguentado, e as costas machucadas. Uma outra me- nina tinha um galo enorme na testa. Não foram só homens que atacaram; havia mulheres entre os agressores também. Resumo da ópera: agora, os bravos defensores do povo, os que lutam contra os burgue- ses e votam 16 , estão negando o ocorrido. Sim, negando tal como Pedro negou a Cristo e José Dirceu a Lula. Resta saber se o galo ― a ave, não o caroço na testa da menina ― vai cantar ou não. 10 Casa de Festas Fariseando Jesus não era malandro, mas também não era burro. Ele, quando criança, comeu a sua primeira coxinha de galinha (estragada) na festinha de aniversário de 7 anos do seu amigo Ju- das, na casa de festas chamada Fariseando De lá pra cá, Jesus se ligou que coxinha não estava com nada. Mas, libriano que era, não continha o sangue revolucionário nas grossas veias. Um dia, viu na praia um barco, com uns pescadores inimigos seus que voltavam de uma pesca infeliz. Trocista que era, disse-lhes: — O que aconteceu e por que essas carinhas tristes? — Jogamos a rede à esquerda do barco, mas nada pescamos... — Por que vocês não tentam jogar a rede à direita do barco? — Coé , Nazareno, é papo reto isso? — E eu sou de dar papo torto, José? — Tudo bem... vamos voltar e fazer isso! 13 minutos depois. — Não falei? — É verdade! Pegamos muitos peixes à direita do barco. Não tinha nada do lado es- querdo. O lado esquerdo só tinha lula. Não aguentamos mais comer lula. No dia seguinte, os pescadores todos morreram de indigestão. Os peixes estavam enve- nenados. Maconha Grega Num subúrbio qualquer da cidade de Atenas na Grécia: — Fumando maconha de novo, Sócrates? — Mãe! Eu já não pedi pra você bater na porta antes de entrar no meu quarto? — Quando eu estiver na sua casa, Sócrates, eu bato na porta antes de entrar. — É... Bem que o professor da eletiva de sociologia disse ontem que os regimes totalita- ristas ainda estão por aí, disfarçados, mas precisamos seguir em frente e combatê-los arduamen- te. — Sócrates, meu filho, até quando você vai continuar com esse lixo? — A eletiva de sociologia? — Não, meu filho... com a maconha! Até quando você vai continuar usando drogas? — Ah mãe! Só você não sabe que os grandes gênios da humanidade também usaram drogas. — Ah é?! Então me diga dois desses grandes gênios, por favor. — Sigmund Freud e Edgar Allan Poe, por exemplo. Eles eram usuários contumazes de ópio, a droga mais consumida pelos intelectuais do século XIX. — Meu filho... primeiro: o Freud formou-se em medicina, uma profissão que dá dinhei- ro e um prestígio divino, não em filosofia; segundo: o Poe ficou órfão aos dois anos de idade, e logo em seguida foi adotado por um rico casal que o mandou para os melhores colégios da In- glaterra. O pequeno Edgar ainda aprendeu a falar latim e grego. Agora você, seu desgraçado, estudou a vida toda em escola pública, mal sabe o português e, de grego e latim, só sabe dizer Φιλοσοφία e errare humanum est — Ah, mãe... — Meu filho, por que você não faz como o seu amigo, aquele que tem as omoplatas largas? — O Platão? — Isso! Por que você não faz como ele e escreve uns livros também? Você só fica de conversa fiada por aí, bebendo cerveja com aquele pau-d ́água do Críton e indo à praia de Mi- konos, no posto 10, para ficar manjando os rapazes de sunga. Largue dessa vagabundagem, meu filho. 11 — Vagabundagem não! Ócio contemplativo, como diria um amigo meu que acabou de chegar do estrangeiro, o Aristóteles. — Vagabundagem sim! Fica o dia inteiro aí nesse Facebook , dando uma de revolucio- nário, reclamando das mazelas e injustiças do mundo, mas não é capaz de ajudar a sua mãe em casa. O cocô que você fez no vaso ainda está lá, boiando como uma gorda de maiô na praia. Já estou cansada de dar descarga nas cagadas que você faz na sua vida, Sócrates... — Ah, mãe, deixa de ser maluca! — ―Maluca‖? Se eu falasse com a minha mãe da maneira que você fala comigo, no dia seguinte ela me daria cicuta com iogurte para tomar no café da manhã, seu ingrato. — Ah, sai pra lá... — E vem cá, já pagou os cinquenta reais das cervejas que você bebeu fiado lá no bote- quim do seu Asclépio, na semana passada? — Não paguei não, mãe. Ainda tô devendo um galo pra ele. Mas o Críton prometeu que ia pagar pra mim. Um Ressentido Ah, como é bom poder ir ao cinema sozinho. Você chega à bilheteria, olha os filmes que estão em cartaz, consulta o preço do seu ingresso e, deliberadamente, escolhe o filme que vai assistir sem medo ou receio de ferir o gosto alheio. Não é preciso fazer acordos, concessões, para depois se frustrar no final da sessão e concluir com seus botões: ―Da próxima vez, quem escolhe o filme sou eu!‖. Ah, como é bom poder decidir sozinho a hora em que se vai entrar na sala do cinema. Uma vez verificado no bilhete o início da sessão, você escolhe, arbitrariamente, o momento que vai adentrar naquele imaculado templo da sétima Arte. Sozinho, pode-se entrar na sala com a antecedência que bem desejar, sem precisar ouvir: ―Peraí que vou ali no banheiro rapidinho...o filme nunca começa na hora mesmo.‖ E quando você entra na sala, já perdeu o Directed by dos créditos iniciais. Ah, como é bom poder escolher sozinho o lugar em que se vai sentar. Já que você entrou na sala com a devida antecedência, é possível então ver aquele mar de cadei- ras vazias que te esperam solitárias e carentes, como as 72 virgens do paraíso islâmico de Mao- mé e escolher em qual delas se acomodar. Sozinho, é você quem decide onde ficar. Se quiser sentar lá atrás, longe de tudo e de todos, numa obscuridade digna de um Herá- clito, não tem problema. E se quiser sentar lá na frente, mais exposto que UPP em favela cario- ca, também não tem problema; é você quem decide. Ah, como é bom poder prestar atenção em todos os detalhes do filme. Uma vez acomodado confortavelmente no seu trono, você é absorvido pelo filme. Nada te esca- pa, nem a mais imperceptível falha da cenografia. Nenhum diálogo te escapa, nenhum take te escapa; nada. Você e o filme são um só. Não é preciso dar uma de papagaio falante e ficar repe- tindo de vez em quando as falas mais cruciais do filme. Enfim, não é preciso virar o rosto, tro- car carícias e afagos, praticar certos atos libidinosos que colocariam em risco a sua integridade moral, caso todas as luzes do cinema fossem acesas, inesperadamente, de uma só vez. Resumindo, muitas são as vantagens quando se vai ao cinema sozinho. Tanto é assim, que é difícil, quase impossível, achar uma desvantagem que seja por ir cinema sozinho. Mas há sim uma única e inconsolável desvantagem. E é esta: ir ao cinema... sozinho. Crônica do Exílio Ora, vejam vocês como são as coisas. Como ficou dito que não haveria Copa, aproveitei a oportunidade e resolvi passar uns dias de silêncio e sossego aqui no interior do Mato Grosso do Sul, na companhia do meu provecto pai e da fauna cá reunida no cerrado. Vale lembrar que ele, meu pai, se supera a cada dia nas máxi- 12 mas elemarianas que enuncia; quem o conhece sabe a que me refiro, afinal, foi dele a máxima que faria inveja a um Sêneca ou a um Cícero, ei-la: ―A gente vê que tá ficando velho, qua n- do o trabalho começa a dar prazer e o prazer começa a dar trabalho‖. Bem, aqui chegando, qual não foi a minha surpresa ao constatar, pelo Facebook , que não só está havendo Copa, mas que algumas pessoas, que antes tentavam inviabilizá-la, agora se encontram na mais pura e deslavada euforia futebolística. Fazem bolão, sopram corneta, pintam a carinha de verde e amarelo e choram, copiosamente, durante a execução do Hino Nacional. Algumas até pelo Fred torcem! Fatos como esses me fazem lembrar daquela lapidar frase do Millôr: ―O ser humano é uma experiência que não deu certo‖. Eu particularmente estou é torcendo para que essa Copa acabe logo, independentemente de quem a vença — se Brasil ou Irã. E digo isso por dois motivos. Primeiro: quero ver o meu Fluminense, vice-líder do Brasileirão, voltar a jogar bola e tripudiar sobre a mulambada. Segundo: não aguento mais ouvir essa musi- quinha de quinta categoria sendo entoada nos estádios dessa Terra Brasilis pelos descendentes de Cabral, Zumbi e Peri: ―Eu... sô brasilêro, com muito orgúlhô, com muito amôôô‖. Despeço-me com essa estrofe que escrevi, sob a sombra de uma pimenteira, na condição de exilado que estou: Minha terra tem gás de pimenta Onde os PM ́s usam sem parar; Os olhos que aqui lacrimejam, Não lacrimejam como lá. A.A. Deus! Rei dos reis, Senhor de todo o universo! Por que deixaste que o achocolatado em pó fosse o objeto de minha carência e trans- formasse minha vida em uma láctea existência? Por que permitiste, Senhor, que eu acreditasse que ele fosse fonte de Vitaminas, Cálcio e Ferro, quando na verdade ele não passava de um instrumento das forças do mal para causar a minha falência física, monetária e espiritual? Por que eu saía como um alucinado pelas ruas da cidade, quando via pela televisão que o Nescau 800gr custava R$ 6,00 no Mundial em dia de promoção? Por que, Deus? Por quê? Lembro-me, ó Pai, da primeira vez em que ingeri esse néctar dos deuses infernais. Foi na Escolinha Maternal Descendentes do Velho Mundo. Eu devia ter uns cinco anos, quando uma menininha chamada Eva, uns dois anos mais nova que eu, retirou de sua lancheira um To- ddynho e perguntou se eu queria chupar aquele canudinho. Eu era pobre naquela época, Senhor, muito pobre, e só levava como merenda meia tan- gerina e uma garrafinha d ́água barrenta. Eu nunca havia bebido aquele líquido marrom cremo- so, e confesso: estava ansioso por tê-lo dentro da minha inchada e verminosa barriga. Num primeiro momento, tomado por um pudor idiota, eu neguei a oferta da minha ami- guinha. A solícita Eva, então, com um sorriso ao mesmo tempo convidativo e angelical, pegou a minha esquálida mão, colocou aquele pequeno objeto quadrado entre os meus dedinhos e disse: — Vai... chupa um pouquinho, chupa. Com o pudor agora deixado de lado, fiz como ela ordenou. Ó Senhor! Mil poetas seriam incapazes de descrever o que senti naquele momento epifânico. Ao sugar o canudinho, senti, em minha ressecada boca, um líquido doce e cremoso escorrer pela minha garganta; algo somente similar ao leite que eu sugava da farta teta de minha pobre mãe. O sabor do conteúdo daquela caixinha me arrebatou de tal maneira, que quando dei por mim, eu havia bebido todo o Toddynho da Eva. Quando devolvi aquela caixinha para ela, já não havia mais nada dentro, estava vazia. 13 Ao constatar isso, a face da pequena Eva transfigurou-se e ela já não tinha mais aquele sorriso melífluo. Tomada então por uma espécie de ódio similar ao da Medéia de Eurípedes, ela lançou contra mim palavras tão feias que eu só ouvia quando papai e mamãe brigavam entre si, à noite no quarto, com a porta fechada. Eu sabia disso porque sempre, na manhã seguinte, a mamãe saía do quarto com uma das mãos sobre o ventre, reclamando de fortes dores e andando com as pernas afastadas, como se estivesse pulando amarelinha. Ou seja, papai, além de brigar, ainda batia na mamãe. Depois do fatídico dia em que provei o Toddynho , minha vida nunca mais foi a mesma. Eu precisava do achocolatado como um universitário da PUC precisa da passeata. Como eu era pobre e não tinha dinheiro para comprar, comecei a roubar. Roubava de qualquer um, sem dis- tinção de raça, cor, credo ou opção sexual. Passei muitos anos de minha vida a me consumir nesse vício nefando. Até o dia em que comecei a frequentar as reuniões do A.A. Foi através dos Achocolatados Anônimos, que desco- bri que existem pessoas mais viciadas e deploráveis do que eu. Não que eu me importe com elas, mas é que ver alguém numa situação pior do que a minha, além de ânimo, me enche de vigor. Hoje estou completando dez anos sem aquela substância maligna, vivo apenas do café com leite. Louvado seja, Senhor, o negro café e alvo leite! Tempos Modernos — E quando é que seu pai vem te visitar aqui no Rio, Douglas? Sujeito que me faz essa pergunta, ou é ruim da cabeça, ou realmente não conhece a chácara em que meu pai mora no interior do Mato Grosso do Sul. Ah, a Chácara! Aquele resort rural que bota no chinelo o hotel mais caro da Costa do Sauípe ou o bangalô mais luxuoso da Polinésia Francesa. Na verdade, meu pai não mora na chácara: ele habita a chácara. É verdade, amigo citadino, não se mora no campo, se habita o campo. Habitar o campo é uma concessão que a Natureza faz ao homem e ao animal, com a condição de que o primeiro não perturbe a paz e o sossego do se- gundo. Nós, homens da cidade, é que moramos. Moramos nos apartamentos, nas casas, nos cortiços; moramos embaixo das pontes e em tantos outros lugares aonde chegam a nossa vã imaginação ou a nossa honesta necessidade. Em primeiro lugar, há de se estabelecer a vital diferença entre chácara e fazenda, que o ignoran- te homem da cidade ignora, e que pensa, com a sua urbana altivez, ser tudo a mesma coisa. Não, não é. Em termos de equivalência semântica, poderíamos dizer que a fazenda está para o McDonald ́s do shopping center , como a chácara está para barraquinha de acarajé da esquina. A opulência de uma não anula o prazer da outra. A fazenda é uma grande propriedade rural, geralmente afastada da cidade. Tem de tudo na fazenda: capataz, gado, aviário, açude, plantação de soja, de milho e etc. A úni- ca coisa que ainda não tem na fazenda é a tal da Reforma Agrária. Essa, já tentaram plan- tar em algumas fazendas do Brasil, mas pelo que parece a semente não vingou. O motivo talvez seja a infertilidade do solo mental de alguns ou a mira precisa da espingarda de outros (do capa- taz, inclusive). Mas voltemos à diferença. A chácara é, por sua humilde vez, uma pequeníssima propriedade rural com algumas plantações, pouquíssimos animais de criação e bem perto da cidade. Pouco mais de três semanas num lugar como esse e você vê como são fracos os argumentos que dizem ser chata e monótona a vida no campo. Realmente, se comparada com a aventura digna de conto policial que é viver na cidade grande, a vida no campo é bem quieta e tranquila. Sequestros relâmpagos, assaltos a ônibus, balas perdi- 14 das, furtos de toda sorte, latrocínios e estupros são apenas alguns dos incontáveis progressos urbanos que ainda não chegaram para os moradores da vida rural. Mas do jeito que anda o mundo, em breve a coisa muda de figura. Até porque o progresso é como a justiça: tarda, mas não falha. Trombetas de Jericó S/A Não sei quanto a vocês, mas sempre que eu vejo, durante uma madrugada insône, esses programas de TV onde há um repórter entrevistando pessoas saindo de um templo religioso para ouvir-lhes as trágicas histórias e depois perguntar o que aconteceu quando aceitaram a Deus, eu imagino se fosse comigo e o que eu poderia testemunhar. *** — Bom dia abençoado, qual é o seu nome? — Douglas Elemar. — ―Elimar‖? — Não... Elemar com ―e‖. — Tudo bem, diz pra gente Douglas, como era a sua vida antes de você frequentar as reuniões do Templo Soprando as Trombetas de Jericó? — Ah missionário, minha vida era muito ruim. Muito mesmo. Meu casamento, minha família, eu brigava com todo mundo! — Usava droga? — Muita. Primeiro, comecei com o álcool. Depois passei para a maconha. Daí para a cocaína foi uma fungada, digo, um pulo só. Como todo mundo dizia que era normal, e que tal- vez até virasse lei, me tornei usuário convicto. Não queria nada da vida. Só andava em má com- panhia. Só fechava com mau elemento: o Zé da Guimba, o Paulinho Panguado, o Toninho Sem Mucosa, o Serginho Sedanapo e o Luís Trombeta. Morreu todo mundo por causa da droga. Só sobrou eu pra contar história. — E a homossexualidade? Era doente disso também? — Muito, pastor. Como o senhor sabe, o diabo estava no meu corpo. Tinha dias que eu não aguentava nem sentar. Muita dor, sabe? Não gosto nem de lembrar. Na verdade, gosto sim; mas o Missionário Elias Abraão Davi falou que isso é coisa do Satanás e que agora isso está repreendido em ó nome de Javé. — E a magia negra? Praticava a macumba também? — Nem fala, pastor. Magia negra, branca, parda... eu fazia de tudo. Muita macumba. Sentia umas coisas estranhas quando ouvia aquela batucada, sabe? Dizem que é coisa de escra- vo, né? Eu ia toda semana. Além de brigar com a minha mulher em casa, quando eu ia pra ma- cumba, ainda brigava com o Exú Caveira , com Zé Pilintra. Matava o bicharedo todo na faca, fazia ruindade... — E hoje, como está a sua vida? — Ah, missionário! Hoje encontrei Deus. Sou um novo homem. Minha vida é uma verdadeira benção! Saí da favela e me mudei pra Barra da Tijuca. Comprei um carro do ano. Comprei o pacote do Brasileirão, UFC e do Big Brother Brasil. Meus filhos têm iPhone , iPad e videogame. Abri um negócio próprio. Tenho uma loja de marchas para motocicletas: a Elemar- chas. Passei a praticar o hábito da leitura. Além da Bíblia, que leio quase todo dia, leio também os livros do Dan Brown, Augusto Cury, e Martha Medeiros... coisa boa, sabe? Gosto também de arte, tenho em casa uns quadros daquele pintor famoso, o Romero Britto. E ainda conheci a Eulinda no templo, a minha nova esposa. A gente se conheceu aqui durante os encontros ―D i- vorciando-se do Diabo e Casando-se com Deus‖. — É essa senhora gorda que está ao seu lado? — É sim, missionário. — Olá Eulinda, tudo bem? Diga pra gente como está a sua vida? 15 — (Acabando de mastigar um biscoito) Tudo ótimo! Agora Deus está me ajudando no meu tratamento da tireóide. Eu pesava 153 kg. Depois que passei a vir para o Templo Soprando as Trombetas de Jericó, já estou com 98 kg. E o senhor sabe que eu e o meu... — (Olhando de volta para a câmera) É isso meu amigo, minha amiga. Faça como o Douglas e a Eulinda. Venha soprar você também as Trombetas de Jericó. Temos reuniões diá- rias. Todos os dias às 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 horas. Veja a sua vida mudar para melhor! Chega de problema, chega de dor! Sopre a Trombeta de Jericó e seja você um vencedor! Vale-Tudo Ainda que a história abaixo seja de uma irrealidade digna de um filme de David Lynch, ela é verdadeira e me foi contada por um velho amigo a quem o chamarei pela letra E. Apenas para não ofender certas suscetibilidades. Vivendo numa cidade no interior do Mato Grosso do Sul, e com muitos problemas que urgiam em pronta solução; alguns de cunho espiritual, mas a maioria de cunho físico e monetá- rio, meu amigo E. resolveu ir a uma igreja para ver se conseguia um pouco de luz e discerni- mento. O templo escolhido foi uma dessas igrejas pentecostais, onde, nos momentos de clímax coletivo, falam-se línguas que são desconhecidas até mesmo pelo maior dos poliglotas acadêmi- cos e cuja prática do dízimo não é só comum, mas estritamente compulsória. Ele entrou na igreja; o culto começara há pouco. Escolheu um lugar nas cadeiras e sen- tou-se. Passado algum tempo, o pastor deu por encerrado o culto e pediu um momento da aten- ção de todos. A questão era de extrema e vital importância. Não se tratava do destino das almas dos fieis que estavam ali presentes (essas, já previamente discutidas e encaminhadas durante o cul- to), mas, sim, do destino da alma da igreja. O problema era o seguinte: por conta da má administração do pastor anterior, a congre- gação estava abarrotada em dívidas que somavam exatos mil reais. E se nada fosse feito, a igre- ja, que já tinha as portas fechadas para o diabo, haveria de fechá-las também para Deus, nosso Senhor. Entretanto, para que isso não acontecesse, seria necessária a criação de um grupo de ajuda. De acordo com a sugestão do próprio pastor, o grupo deveria chamar-se As Trinta e Três Almas Eleitas do Senhor , e a coisa funcionaria da seguinte forma: um grupo de trinta e três fieis seria responsável por uma quantidade de doações que, juntas, deveriam somar o valor de mil reais. Desse modo, três almas doariam cem reais; dez almas doariam cinquenta reias e vinte abençoadas almas doariam a módica quantia de dez reais cada; totalizando, assim, o valor da dívida a ser quitada. Para a sorte do pastor, e de Deus também, nesse dia a igreja contava justamente com o número de trinta e três pessoas sentadas nas cadeiras, e no meio delas, estava meu velho amigo E. Muito bem. Comovidos pela súplica do pastor, e temerosos pelo destino da ―alma‖ da igreja, os bravos fieis começaram a levantar os braços para se oferecerem enquanto eleitos do Senhor. Em menos de cinco minutos, trinta e duas almas levantaram as mãos. Faltava, portanto, uma última alma para poder contribuir com o valor de dez reais. Meu amigo E. olhou para os lados e viu que teria de ser ele mesmo a trigésima terceira alma eleita. Mas como estava com a carteira vazia, achou por bem permanecer com os membros superiores arriados. Foi aí então que ouviu as palavras do pastor. 16 — Abençoado! Você aí! — disse o pastor olhando para o meu amigo — É, você mesmo! Deus gostaria de saber se você poderia se juntar a esse grupo de 32 valentes e contribuir com a irrisó- ria quantia de dez reais. Meu combalido amigo então, mais duro que nádega de estátua e vendo que era o objeto de todos os olhares ao redor, falou com uma coragem espartana: — Infelizmente, hoje não po- derei ajudar pastor. Estou duro. O pastor, entristecido pela situ