SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SOARES, M. O. O harém ao rés do chão : imaginário europeu e representações médicas sobre o lugar- segredo, 1599-1791 [online]. São Bernardo do Campo, SP: Editora UFABC, 2017, 547 p. ISBN 978-85- 68576-81-6. https://doi.org/10.7476/9788568576816. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. O harém ao rés do chão imaginário europeu e representações médicas sobre o lugar- segredo, 1599-1791 Marina de Oliveira Soares i i O Harém ao Rés do Chão ii Universidade Federal do aBC Klaus Werner Capelle – reitor dácio roberto Matheus – vice-reitor Editora da UFABC Coordenação adriana Capuano de oliveira Conselho Editorial ana Claudia Polato e Fava ana Paula de Mattos arêas dau andrea Paula dos santos oliveira Kamensky artur Zimerman Christiane Bertachini lombello daniel Pansarelli daniel Zanetti de Florio douglas alves Cassiano Fernando luiz Cássio silva João rodrigo santos da silva Júlio Francisco Blumetti Facó luciana Pereira Marcelo augusto leigui de oliveira Márcia Helena alvim Margarethe Born steinberger-elias Mario alexandre Gazziro rodrigo de alencar Hausen sidney Jard da silva sílvia dotta Equipe Técnica Cleiton Klechen natalia Gea iii São Bernardo do Campo - SP 2017 O Harém ao Rés do Chão i m ag i n á r i o e u r o P e u e r e P r e S e n ta ç õ e S m é d i C a S S o B r e o lu g a r- S e g r e d o, 1 5 9 9 – 1 7 9 1 M a r i na d e O l i v e i r a S Oa r e S iv © Copyright by editora da Universidade Federal do aBC (edUFaBC) Todos os direitos reservados. Equipe Técnica sob Coordenação da Gráfica e Editora Copiart Revisão Michela Silva Moreira Projeto Gráfico, Diagramação e Capa rita Motta (imagem da capa: domínio público – Pixabay) Impressão Gráfica e editora Copiart Editora associada CATALOGAÇÃO NA FONTE SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC Responsável: Marciléia Aparecida de Paula CRB: 8/8530 Soares, Marina de Oliveira O harém ao rés do chão: imaginário europeu e representações médicas sobre o lugar-segredo, 1599-1791 / Marina de Oliveira Soares — São Bernardo do Campo, SP: EdUFABC, 2017. x, 547 p. : il. ISBN: 978-85-68576-67-0 1. Harém islâmico. 2. Imaginário. 3. Narrativa de viagem. 4. Período Moderno. 5. Orientalismo. 6. Sexualidade. I. Título. CDD 22 ed. – 910.956 v Para rodrigo, companheiro de viagem. vii “Et à dire le vray, qu’est-ce que nostre vie, sinon un voyage perpetuel, qui a son entrée & sa sortie aux deux grandes portes de la nature, la naissance & la mort?”. le Blanc, Advis au Lecteur (Harrigan, 2008). “To travel is the best way to learn and empower yourself ”. Yasmina, avó de Fatima mernissi, Scheherazade goes West (merniSSi, 2001b). ix Sumário Prefácio ...................................................................................... 1 introdução ................................................................................. 7 C a p í t u l o 1 O harém nas narrativas de viagem ao Levante nos fins do século XVI e no século XVII ................................................. 21 1.1 o oriente e o harém nos dicionários europeus ......... 23 1.2 as várias faces do “outro” ........................................ 31 1.3 as viagens ao levante............................................... 35 1.3.1 os viajantes ingleses .............................................. 42 1.3.2 os viajantes franceses ............................................ 72 C a p í t u l o 2 O harém nas narrativas de viagem ao Levante no século XVIII ....................................................................................... 109 2.1 Harém e serralho nos dicionários europeus ............ 109 2.2 Harém e serralho nas narrativas de viagem ............. 116 2.2.1 narrativas escritas em inglês ......................... 116 2.2.2 narrativas escritas em francês ....................... 141 2.3 o “outro” na construção da identidade europeia .... 177 C a p í t u l o 3 As narrativas de viagem: estrutura, circulação, representação e imaginário .................................................. 191 3.1 as viagens em textos impressos .............................. 194 3.2 as similaridades entre os registros de viagem .......... 209 x 3.3 leituras sobre o harém nas narrativas de viagem .... 222 3.4 Circulação das ideias .............................................. 227 3.5 impressões orais nas narrativas de viagem .............. 257 3.6 do texto às representações autônomas ................... 271 3.7 do imaginário ........................................................ 283 C a p í t u l o 4 Um médico no harém: ciência, corpo e poder ................... 299 4.1 o médico inglês no reino de marrocos .................. 300 4.2 a ciência médica: pressupostos mouros, observações europeias ............................................................... 305 4.3 a luxúria como causa de doenças .......................... 314 4.4 a medicina europeia: práticas leigas, influência árabe e “revolução científica” .......................................... 326 4.5 o médico no harém ............................................... 350 C a p í t u l o 5 O harém ao rés do chão: fronteiras e personagens .......... 397 5.1 o harém como santuário ........................................ 398 5.2 o harém como espaço ............................................ 400 5.3 o harém como espaço feminino ............................. 407 5.4 o harém e os seus personagens............................... 414 5.4.1 Serralho e harém .......................................... 414 5.4.2 as mulheres no harém .................................. 421 5.4.3 os jovens rapazes ......................................... 449 5.4.4 eunucos........................................................ 454 5.5 imobilidade ............................................................ 462 5.6 o harém e a fronteira sexual .................................. 468 Conclusão .............................................................................. 475 referências ............................................................................. 485 anexo a – Cronologia da viagem de William lempriere ......... 539 anexo B – Sistematização de informações sobre as narrativas de viagem .............................................................. 543 anexo C – gravura da obra de nicolas de nicolay ................. 547 1 Prefácio Henrique Carneiro Professor do departamento de História da uSP o harém é um dos conceitos mais emblemáticos do que edward Saïd chamou de Orientalismo . ou seja, uma visão europeia do mundo árabe, turco e persa imaginada e falsa e que de tão difundida se torna um senso comum. o que é um harém? no imaginário ocidental, seria um grupo de mulhe- res à disposição de um homem como concubinas. o termo odalisca, que se refere a uma camareira do palácio otoma- no, se tornou popular no Brasil como uma personagem de carnaval. essa noção mistura o serralho otomano, ou seja, o domínio privado das esposas ou serviçais de um sultão, com o termo mais amplo – haram – usado em árabe para denominar o que não é permitido ou acessível, por exem- plo, o espaço doméstico feminino. opõe-se, assim, ao conceito de halal , ou o que é lícito. a transformação da esfera doméstica árabe islâmi- ca numa fantasia poligênica orgiástica foi parte da visão m a r i n a d e o l i v e i r a S o a r e s 2 ocidental que sexualizou a alteridade oriental, conferindo- -lhe atributos de luxúria, luxo e voluptuosidade. Há pouco desenvolvimento no Brasil dos estudos históricos sobre o orientalismo e sobre os diferentes ter- ritórios geográficos que correspondem a esse espaço sim- bólico. Por isso, a tese de doutoramento de marina Soares se constitui num trabalho pioneiro de grande envergadura investigativa e de enorme erudição no uso das fontes e no diálogo com a bibliografia internacional. os relatos de cerca de dezesseis viajantes que, ao longo dos séculos XVii e XViii, desbravaram o marro- cos, o norte da áfrica, a turquia otomana e a Pérsia são o material principal a partir do qual a historiadora analisa a natureza das representações ali apresentadas. graduada em História, com mestrado em língua, literatura e Cultu- ra árabe, esta pesquisa ora publicada foi o seu doutorado em História Social pela uSP , que tive a enorme satisfação de ter orientado. desde o início de nossas primeiras conversas que me dei conta da sua dedicação e imensa erudição e, juntos, pudemos avaliar a importância de tantos elementos do encontro cultural entre europeus e povos islâmicos como árabes e turcos, entre os quais, a cultura do café desponta- va, para mim, como um dos elementos mais notáveis. a época moderna vai ser moldada por dois grandes encontros: o do Velho mundo com as américas e o da europa com o oriente. estes dois impactos moldaram as estruturas econômicas, sociais e culturais. o conceito de europa vai ser forjado numa oposição às suas alteridades. enquanto o mundo selvagem dos ame- ricanos se constituiu num campo aberto para a colonização, o harém a o r é s d o c h ã o 3 diante de populações fragilizadas e dizimadas pelo choque biológico e militar, o amplo universo das grandes civiliza- ções asiáticas e norte-africanas se tornou um enigma a ser decifrado e um desafio a ser temido, pois foi do avanço oto- mano que surgiu a própria periodização da época moderna, marcada pela tomada turca de Constantinopla em 1453. nasce, desde então, aquilo que foi analisado como o imaginário do orientalismo. a representação das dife- renças entre os europeus e os povos chamados de orien- tais vai ser marcada por diversos elementos recorrentes: a noção de um despotismo político associado a uma percepção de traços exóticos na vida cotidiana, especial- mente na condição das mulheres, cobertas e restritas ao olhar estrangeiro, ocultando uma sexualidade intensa- mente idealizada. o conceito ocidental do harém se constitui nesse processo como um dos mais notáveis segredos de um ero- tismo imaginado a partir das descrições dos viajantes. o primeiro ocidental a pisar no interior de um ha- rém, o médico inglês William lempriere – solicitado a pres- tar seus serviços no marrocos para o príncipe, em 1789, e, depois, em dois haréns – escreveu seu relato, em que a descrição do mundo islâmico se acompanha de várias con- siderações médicas sobre a diferença de humores e climas que se manifestam diferentemente nos não europeus. esse e outros textos analisados constituem um dos veios principais do florescente gênero das narrativas de viagem, que será fundamental para delinear e formar o imaginário europeu do oriente. os cânones desse gênero colocam em questão as dimensões da gradação testemunhal em que as categorias do verossimilhante e M a r i n a d e O l i v e i r a S o a r e s 4 do improvável se misturam para fornecer informações que, por vezes, nem sequer foram vividas pelos próprios narradores. um destes viajantes narradores foi thomas dallam, construtor de instrumentos musicais encarregado pela ra- inha elizabeth de levar um deles como presente ao im- perador otomano mehmet iii, em 1599. Seu relato, no entanto, só veio a ser publicado em 1848. tendo sido convidado a permanecer em istambul, voltou, entretanto, para a inglaterra. a grande maioria dos escritos é de viajantes masculi- nos, mas há a exceção notável do relato de mary Wortley montagu, que em 1716 acompanhou o marido que assu- miu como embaixador britânico em istambul. Cerca de meio século depois, suas cartas publicadas fizeram parte do reduzido número de cerca de vinte mulheres inglesas que publicaram relatos de viagem. ao lado do desprezo pela suposta inferioridade da medicina islâmica em muitos relatos, também se encontra a noção de que no oriente havia um luxo superior, um refinamento mais delicado e um conjunto de artes parti- culares. além do café, outros produtos orientais vão in- gressar na europa atraindo seduções e cobiças, como os cosméticos, as sedas, os perfumes. dentre as descrições dos eunucos, da poligamia, do confinamento feminino, das práticas homossexuais, que impressionam os olhares dos viajantes europeus, destaca-se uma visão do domínio da luxúria, da voluptuosidade in- dolente. o olhar médico europeu tende a ver na condi- ção dos países quentes uma maior propensão à devassi- dão em contraste com a fria temperança europeia. O harém a o r é s d o c h ã o 5 o harém é, assim, o fio condutor de uma análise que passa pelos dois mundos do chamado oriente, mesmo que um deles, o norte da áfrica se situasse a oeste da europa. trazer o harém a sua realidade histórica e antropológica é retirá-lo de uma paisagem imaginária, descrita com o olhar fantasioso de europeus de séculos atrás, enfocando-o ao rés do chão como um lugar-segredo, ou seja, um espaço de intimidade não desvelável aos de fora e também como um mistério secreto que deixou à imaginação europeia um amplo espaço de indagação. na minuciosa e muito bem escrita narrativa de marina Soares sobre as narrativas de viajantes se destaca também uma reflexão sobre o papel da cultura livresca na história moderna, de como ela se associa com os “gabinetes de leitura”, com as coffee-houses e outros espaços em que começou a se desenvolver, juntamente com o hábito do café e os negócios em torno de sua venda e compra, uma curio- sidade acentuada sobre o mundo oriental que se desenhava em contornos fascinantes nos livros dos que haviam estado lá e podiam dar o testemunho do próprio olhar. este livro navega em muitas águas do universo his- toriográfico. traz uma contribuição inédita aos estudos sobre o orientalismo. envereda pelos meandros dos estu- dos sobre a sexualidade e o corpo oriental no olhar euro- peu. Situa a mulher e o corpo feminino no centro de uma investigação historiográfica. discute a relação dos textos com a ação concreta, a influência das narrativas sobre a construção de referenciais simbólicos. e desvenda, acima de tudo, pressupostos no encontro moderno dos europeus com os mundos orientais que são desconstruídos em toda a sua tessitura de múltiplos significados interpostos. livros sobre viajantes convidam a viajar. este abre portas semicerradas e portos desconhecidos de nosso dia a dia. Convido a todos os leitores a nele embarcarem e, como em toda aventura, a carregarem pouca bagagem, pois dele irão trazer muito mais do que para ele levaram. 7 Introdução na década de 1990, em viagem de promoção de seu livro Sonhos de Transgressão 1 , a socióloga marroquina Fa- tima mernissi (1940–2015) entrou em contato com uma imagem peculiar sobre o harém. as viagens em cidades ocidentais a aproximaram de uma centena de jornalistas que mostrava um sorriso nos lábios ou certo incômodo ao tratar o assunto do harém. a primeira frase do livro, anun- ciando que a autora havia nascido em um harém, parecia envolver qualquer “segredo vergonhoso” (merniSSi, 2001a, p. 15). um espaço que mernissi relacionava à fa- mília, mas também à prisão, transformou-se no lugar por excelência dedicado ao relaxamento do corpo e a todas as liberdades sexuais. Com o período de convivência, mernissi percebeu que ela e os seus entrevistadores não possuíam o mesmo significado para a palavra harém. ela havia crescido em um harém, em Fez, com toda a família, em um momento em que o marrocos era dominado pelos franceses (1912– 1956). os jornalistas, de outro modo, pautavam-se em 1 a divulgação do livro, cujo título original é Dreams of Trespass (1994), acabou se tornando material para a elaboração de outro livro, O Harém e o Ocidente – intitulado em inglês Scheherazade Goes West: Different Cultures, Different Harems (merniSSi, 2001b). m a r i n a d e o l i v e i r a S o a r e s 8 imagens artísticas criadas por pintores famosos como ingres, matisse, delacroix ou Picasso – que reduziram as mulheres a odaliscas (palavra turca para “escrava”) – ou por talentosos realizadores de Hollywood, que retratavam as mulheres dos haréns escassamente ves- tidas, executando a dança do ventre, satisfeitas por servirem os seus captores (merniSSi, 2001a, p. 16) 2 a persistência das referências citadas anteriormente já seria, por si só, digna de reflexão. Contudo, o problema que me proponho analisar neste livro refere-se à recor- rência e à disseminação das representações sexuais sobre o harém. trata-se de verificar, portanto, de que modo os europeus passaram a representar o harém islâmico quando entraram em contato com as sociedades ao leste e ao sul do mar mediterrâneo. e, nesse caso, deve-se examinar em que medida tal conjunto de representações pôde compor um quadro imaginário sobre este espaço. Cabe lembrar que tal questão buscará ser respondida considerando-se tanto as representações sobre o harém quanto sobre a se- xualidade expressa pelos autores europeus. Para cercar esse problema, uma série de questões precisou ser delimitada antes. a primeira delas diz res- peito ao período de concepção de tais representações. a literatura sobre os árabes pode ser encontrada desde a chamada antiguidade. Heródoto (morto cerca de 420 a.C.) fez inúmeras menções a esse povo em sua obra His- tórias (munSon, 2013, p. 31-45). mas, como o harém consistiu em uma prática ligada à sociedade árabe-islâmi- ca, seria preciso verificar o conjunto de representações 2 O Harém e o Ocidente (merniSSi, 2001a, p. 16). o harém a o r é s d o c h ã o 9 sobre este lugar em um período posterior ao advento do islã, no século Vii d.C. as “Cruzadas” (1095–1274) poderiam ser, dessa maneira, o momento de produção sistemática das repre- sentações sobre os islâmicos, ou infiéis , segundo a visão cristã. de fato, nesse período, houve uma extensa cria- ção de imagens sobre os muçulmanos; porém, o que mais motivava – ou incomodava – os cristãos nesse cenário era a face religiosa do islã, e não as suas outras formatações sociais. isso não impediu, de outro modo, que certas ca- racterísticas atribuídas ao islamismo já estivessem mate- rializadas nos saberes eruditos e populares, como a crença na lassidão de seu profeta, por exemplo. esse complexo processo de aproximação e confronto com o outro não fornece, contudo, um material que reflita sobre o harém. É no início da modernidade europeia 3 , de outra for- ma, que se pode encontrar uma larga fabricação de relatos textuais sobre o harém. O século XVII é um momento privi- legiado dessa criação textual porque os europeus passaram a viajar sistematicamente para as terras situadas ao sul e ao leste do Mar Mediterrâneo, e, ao voltarem, produziam e pu- blicavam as suas impressões sobre as sociedades estrangeiras. Os registros dessas viagens podem ser lidos como um gênero literário particular, cujo público crescia notavelmente. Se esse período testemunhara um número expressi- vo de europeus em viagens às terras islâmicas, com uma 3 a palavra “modernidade” é empregada aqui apenas com fins de peri- odização, cuja extensão englobaria o intervalo entre 1500 e 1800, como escreveu Peter Burke, 2009, p. xiv. Para uma discussão sobre a moderni- dade na europa, ver Parker; Bentley, 2007, em especial, o capítulo 2, p. 13-32. M a r i n a d e O l i v e i r a S o a r e s 10 produção literária tão intensa, e com ambições culturais não encontradas antes, então, ele me pareceu ser o mo- mento razoável para começar a rastrear as construções elaboradas sobre o harém. Para tanto, mais uma escolha deveria ser feita. agora, a decisão se voltava aos viajantes. em meio a uma vasta produção textual, somente alguns viajantes poderiam compor a reflexão que pretendi dese- nhar no primeiro e no segundo capítulos. os franceses constituem, possivelmente, o grupo de europeus que mais viajou para o levante. Por esse motivo, pareceu-me adequado trabalhar com as narrativas produ- zidas por eles. a delimitação do outro grupo de viajantes foi, de certo modo, condicionada pela escolha da fonte principal deste livro. no final do século XViii, um médico inglês foi convidado por um dos filhos do governante do marrocos para cuidar de sua doença nos olhos. eis que o médico, William lempriere, ao longo de sua permanência no norte da áfrica, conseguiu acessar o lugar mais recôn- dito do palácio: o harém. a sua narrativa, publicada em 1791, deixaria destacado que ele havia sido o primeiro estrangeiro a entrar em um harém islâmico. Como mostrarei adiante, muitos desses viajantes co- nheciam as narrativas de viagem publicadas antes deles e apropriavam-se, da mesma maneira, das ideias e das re- presentações nelas presentes. Sendo assim, fazia-se neces- sário investigar o teor das narrativas de viagem inglesas por duas razões. em primeiro lugar, para confrontar o seu conteúdo com aquele produzido pelo próprio lempriere, e, por conseguinte, para questionar o destaque dado pelo médico ao fato de ter entrado no harém, afinal, como um homem de fins do século XViii, ele poderia já saber que O harém a o r é s d o c h ã o 11 a sua presença nesse espaço não gozava de exclusividade perante certos viajantes. a leitura da construção de um suposto imaginário sexual sobre o harém levou em consideração, portanto, as balizas temporais que serão marcadas pelos textos de via- gem aqui usados. nesse caso, a observância de tempo ini- cia em 1599, com a viagem de thomas dallam, e finda em 1791, com a publicação do texto de William lempriere. essa extensão temporal é consequência dos critérios em- pregados na escolha dos autores, como ficará explícito nos Capítulos 1 e 2. de maneira geral, é possível afirmar que os autores de viagem dos séculos XVii e XViii guardavam semelhanças visíveis em suas construções teóricas sobre as sociedades islâmicas. esses elementos, de outro modo, diferenciam-se daqueles que são apreendidos nos relatos de viagem produzidos no século XiX. Por tais razões, a va- lidade social e a persistência temporal das representações surgidas nesse momento podem nos revelar elementos im- portantes sobre uma “história do pensamento” europeu sobre o harém islâmico. o uso de um número limitado de relatos de viagem para investigar a construção de um imaginário sobre o harém também se justifica por tal similaridade. embora tenha me detido em dezesseis fontes empíricas principais – com destaque à obra de William lempriere –, isso não se tornou impeditivo para tratar o problema proposto neste livro. é fato que as narrativas de viagem sobre as socie- dades islâmicas são abundantes; porém, elas partilham de elementos essenciais. Como escreveu thierry Hentsch, “quem leu dois ou três relatos de viagem do século XVii leu dezenas: as representações se cristalizam em modelos”