CDD-154.634 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wallace, B. Allan Despertar no sonho : sonhos lúcidos e Ioga Tibetana dos sonhos para o insight e a transformação / B. Alan Wallace ; tradução de Jeanne Pilli. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. Título original : Dreaming yourself awake : lucid dreaming and Tibetan dream Yoga for insight and transformation Bibliografia ISBN 978-85-326-4865-5 – Edição digital 1. Yoga – Budismo tântrico 2. Sonhos lúcidos I. Título. 14-01601 Índices para catálogo sistemático: 1. Sonhos : Interpretação : Psicologia 154.634 © 2012 by B. Alan Wallace Esta tradução foi publicada com autorização de Shambala Publications, Inc. 300 Massachusetts Ave., Boston, MA 02115, USA. Título original inglês: Dreaming Yourself Awake – Lucid Dreaming and Tibetan Dream Yoga for Insight and Transformation Direitos de publicação em língua portuguesa – Brasil: 2014, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. Diretor editorial Frei Antônio Moser Editores Aline dos Santos Carneiro José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo João Batista Kreuch Editoração : Gleisse Dias dos Reis Chies Diagramação : Alex M. da Silva Capa : Felipe Souza Aspectos ISBN 978-85-326-4865-5 (edição brasileira digital) ISBN 978-1-59030-957-5 (edição norte-americana impressa) Editado conforme o novo acordo ortográfico. Sumário Introdução Parte I. Sonho lúcido 1 Quiescência meditativa – Como estabelecer a base para a lucidez 2 A teoria do sonho lúcido 3 A prática dos sonhos lúcidos 4 Proficência em sonho lúcido Parte II. Ioga dos sonhos 5 O universo da ioga dos sonhos 6 Prática diurna da ioga dos sonhos 7 Prática noturna da ioga dos sonhos Parte III. Reunindo todos os ensinamentos 8 Colocando os sonhos para funcionar 9 Prática inpidualizada e questões infrequentes 10 Lucidez em meio ao sonho – Uma perspectiva mais ampla Glossário Referências selecionadas Textos de capa Introdução Em todas as grandes tradições espirituais em que a meditação desempenha um papel importante, a palavra de ordem é “Desperte!” Este apelo tem repercussões na ciência da psicologia ocidental. A implicação é de que ao longo de nossas vidas nós estivemos adormecidos, essencialmente sonhando. É claro que se caminharmos como sonâmbulos pela vida iremos invariavelmente tropeçar em realidades não vistas. Dadas as incertezas da vida, precisamos estar o mais despertos possível às oportunidades e aos perigos. Despertar no sonho é dirigido tanto para o nosso despertar da vida-como-um-sonho quanto para nos tornarmos lucidamente conscientes em meio aos sonhos durante a noite. Ambas as situações, bem como o nosso despertar dentro delas, estão intimamente ligados. Esse despertar traz consigo a clareza e a liberdade que constituem a base para a verdadeira felicidade. Qual é a conexão entre o despertar espiritual e os sonhos lúcidos? Em ambos os casos você está plenamente consciente dos desdobramentos de suas experiências, no momento presente. Não se deixa levar por distrações, como pensamentos e emoções. Você é capaz de observar o surgimento, a continuidade, a transformação e desvanecimento desses fenômenos com perfeita clareza. Como um grande mestre de xadrez, sua mente está totalmente focada – estável e límpida. Essa clareza é uma porta de entrada para a liberdade interior. Despertando para o potencial de cada situação, você se torna o senhor do seu destino. A prática dos sonhos pode aumentar a criatividade, resolver problemas, curar as emoções ou oferecer um teatro interior brilhante – o máximo do entretenimento. Também pode ser um valioso auxílio para a realização do despertar espiritual. Como é estar lucidamente consciente de que está sonhando? O filósofo e médico inglês do século XVII, Sir Thomas Browne, que era capaz de testemunhar e controlar seus sonhos como um diretor de cinema, disse: “Em um único sonho, eu posso compor uma comédia inteira, observar a ação, apreender as piadas e rir, acordado...” Outro inglês do século XVII, Samuel Pepys, descreveu o potencial erótico do sonho lúcido: “Tive minha Lady Castlemayne em meus braços e me foram permitidos todos os gracejos que desejava fazer com ela, e então no sonho me dei conta que não poderia estar acordado, mas que era apenas um sonho”. O antropólogo, xamã e autor de best-sellers , Carlos Castañeda, foi instruído por seu professor a olhar para as suas mãos enquanto sonhava. Quando conseguiu fazer isso pela primeira vez, encontrava-se em um cenário surreal e ameaçador. Castañeda afirmava dominar a “arte de sonhar”, ao ponto de poder visitar outros mundos. Despertar no sonho integra as duas abordagens mais eficazes para a prática dos sonhos – o sonho lúcido , desenvolvido e aprimorado pela ciência da psicologia, e a ioga dos sonhos do budismo tibetano. Juntas, elas o conduzirão a um despertar capaz de transformar sua vida. Sonho lúcido Ter sonhos lúcidos significa simplesmente estar consciente de que se está sonhando. Muitas pessoas, especialmente na infância, tiveram sonhos lúcidos e os descreveram. Muitas vezes, em um sonho lúcido, há uma sensação de alegria ao descobrir que está sonhando naquele exato momento – uma emoção tão intensa que pode chegar a despertá-lo. Se for capaz de manter tanto o sonho quanto a consciência de que está sonhando, surgirá uma formidável sensação de liberdade. Sabendo-se que as imagens oníricas são insubstanciais, você pode atravessar paredes ou escapar da lei da gravidade, voando sobre as vívidas paisagens imaginárias. Com o treinamento, você poderá moldar o ambiente de sonho de acordo com seus desejos. Pequenas coisas podem ser transformadas em grandes, e grandes objetos podem ser reduzidos, como desejar. O único limite é a sua imaginação. Uma vez que tenha desenvolvido um maior controle, você poderá usar o espaço do sonho como um laboratório para obter insights psicológicos, superar medos, fazer um trabalho criativo, divertir-se, ou meditar no ambiente virtual de sua escolha. A ciência do sonho lúcido é um sistema de teoria e prática recentemente desenvolvido no campo da psicologia. Embora tivesse precursores importantes, Stephen LaBerge, que recebeu PhD em psicologia pela Universidade de Stanford, é o principal expoente do sonho lúcido. No final da década de 1980, LaBerge, em suas pesquisas de pós-graduação na Universidade de Stanford, tornou-se o primeiro a provar para a comunidade científica que é possível estar consciente durante o sonho. Embora muitas pessoas tivessem relatado sonhos lúcidos através dos tempos, os psicólogos assumiram que se tratava de falsas memórias – que, na verdade, as pessoas haviam despertado durante a noite, e pela manhã acreditavam equivocadamente ter estado conscientes durante o sonho. LaBerge é um sonhador lúcido extremamente talentoso e é capaz de ter sonhos lúcidos à vontade, uma habilidade que tinha naturalmente quando criança, mas havia perdido na adolescência; mais tarde, recuperou essa habilidade deliberadamente quando era estudante de pós-graduação. Como parte de sua pesquisa, ele desenvolveu um método de fazer movimentos oculares específicos durante o sonho, para que seus colegas pesquisadores soubessem que ele estava acordado, dentro de seus sonhos. Este método comprovou a existência do sonho lúcido! [1] Em Stanford, LaBerge desenvolveu meios mais eficazes de despertar em seus sonhos, de sustentá-los e de torná-los mais nítidos. A contínua pesquisa, incluindo a interação com pessoas leigas interessadas, levou à publicação de vários livros populares sobre sonho lúcido (incluindo Lucid Dreaming, Exploring the World of Lucid Dreaming, and Lucid Dreaming: A Concise Guide to Awakening in Your Dreams and in Your Life ). Devido em grande parte aos trabalhos de LaBerge, a veracidade do sonho lúcido foi, de maneira geral, reconhecida no campo da Psicologia. Conheci Stephen LaBerge em 1992, quando eu era estudante de pós-graduação em estudos religiosos na Universidade de Stanford. Minha pesquisa era centrada no desenvolvimento contemplativo da atenção. Quando Stephen e eu conversamos sobre nossa pesquisa, nós dois percebemos imediatamente que os nossos trabalhos eram complementares. No final dos anos de 1990, Stephen e eu começamos a oferecer oficinas públicas de dez dias, que incluía o treinamento da atenção e a prática dos sonhos. Ioga dos sonhos Historicamente, os budistas tibetanos parecem ter explorado a ioga do sono e dos sonhos mais profundamente do que qualquer outra tradição contemplativa. A ioga dos sonhos é parte de uma tradição espiritual, cujo objetivo é o despertar completo, chamado de “iluminação”. Diz-se que a iluminação completa inclui o conhecimento de toda a realidade, em amplitude e profundidade, uma experiência além da nossa forma normal e racional. E é indissociável de uma abrangente compaixão, um profundo amor por todos os seres. Algumas vezes, a iluminação é descrita como uma experiência não dual de sabedoria e de bem- aventurança. Quanto ao real sabor da iluminação, essas descrições nos deixam com mais perguntas do que respostas, mas deve ser uma conquista extraordinária. Na tradição budista tibetana – o estilo de espiritualidade contemplativa com o qual estou mais familiarizado – a ioga dos sonhos compreende um conjunto de práticas espirituais avançadas que funcionam como uma ajuda poderosa para despertar do samsara . O samsara pode ser brevemente descrito como uma experiência de sonho, vida após vida, impulsionada pela ignorância. Este, de acordo com o budismo (e outras tradições espirituais), é o nosso modus operandi normal. A ignorância e as visões distorcidas tecidas a partir dela são, para o budismo, a fonte de todo o sofrimento. A felicidade verdadeira e definitiva, por outro lado, resulta da eliminação da ignorância, do despertar do sonho do samsara. Um buda, um ser iluminado, significa literalmente “aquele que está desperto”. As práticas da ioga dos sonhos são baseadas em uma teoria que define a consciência em três camadas. De acordo com esta visão, a camada mais grosseira e superficial de consciência equivale ao que nós, no Ocidente, chamamos de psique . A psique compreende os cinco sentidos físicos, juntamente com os fenômenos mentais conscientes e inconscientes – pensamentos, sentimentos, sensações, e assim por diante. Esta é a nossa mente comum e condicionada. A psique emana de uma camada intermediária mais profunda, a consciência substrato . Esta é descrita como um fluxo mental sutil contendo atitudes, hábitos e tendências latentes que remontam a vidas anteriores. A camada mais profunda e mais fundamental, a consciência primordial , que inclui a psique e a consciência substrato, é um nível absoluto de sabedoria pura, onde o “interior” (mente) e “exterior” (mundo fenomênico) são não duais. A realização da consciência primordial é a porta de entrada para a iluminação completa. A ioga dos sonhos busca penetrar a consciência primordial gradualmente por meio da realização de que tudo, incluindo nós mesmos, emerge e tem a mesma natureza dessa base iluminada e primordial. As práticas específicas da ioga dos sonhos permitem explorar e compreender profundamente a natureza e a origem dos fenômenos mentais da psique, a penetrar sua fonte – a consciência substrato, ou a base da mente comum – e finalmente reconhecer e repousar na consciência primordial. Embora este processo tenha início durante o sono e os sonhos, a ioga dos sonhos envolve práticas empregadas durante o dia e tem como objetivo despertar a nossa vida como um todo – durante o dia e durante a noite – do sono do samsara Meu primeiro encontro com a ioga dos sonhos foi em 1978, quando servi como tradutor para os ocidentais que participavam de ensinamentos sobre a ioga dos sonhos, oferecidos por Zong Rinpoche, um eminente lama tibetano. Ele explicou que a ioga dos sonhos é um conjunto de práticas avançadas, chamado de Seis Iogas de Naropa, e que requer uma base sólida em meditação. Seguindo esse conselho, dediquei-me às práticas fundamentais antes de tentar a ioga dos sonhos. Em 1990, recebi instruções sobre ioga dos sonhos de outro reverenciado mestre tibetano, Gyatrul Rinpoche. Dois anos depois, um amigo pediu que eu ensinasse ioga dos sonhos a ele. Perguntei a Gyatrul Rinpoche se deveria ensiná- lo e ele me deu sua permissão. Ao longo dos anos que tenho praticado e ensinado ioga dos sonhos, minha reverência e respeito por esta prática só têm crescido. Esta é uma das principais tradições do budismo tibetano e tem enormes implicações para a nossa compreensão da realidade e para o nosso progresso espiritual. Equilibrando ioga dos sonhos e sonho lúcido Na minha experiência, como praticante e professor de ioga dos sonhos e sonho lúcido, estas duas práticas se complementam. Essa será a abordagem adotada neste livro. Talvez a chave mais importante para o desenvolvimento das habilidades de sonho lúcido, bem como para alcançar um estágio em que as técnicas mais avançadas de ioga dos sonhos possam ser incorporadas, seja a prática de shamatha , ou quiescência meditativa. Composta por uma magnífica gama de métodos para treinar a atenção, shamatha não é uma prática exclusivamente budista. É encontrada em uma grande variedade de tradições contemplativas e não requer a adoção de qualquer credo religioso ou filosófico. Além disso, shamatha é extremamente benéfica para o corpo e para a mente, proporcionando relaxamento, alívio do estresse e cura, juntamente com o refinamento das habilidades da atenção. Com shamatha, a ideia básica é aumentar a concentração relaxada, de forma tal que seja facilmente possível sustentar a atenção em um objeto escolhido. Uma destas técnicas é a concentração na entrada e saída do ar durante a respiração, o método preferido pelo Buda. Pode-se também concentrar em uma imagem visual real ou imaginária, nas sensações corporais, nos fenômenos mentais ou na própria consciência. Depois de ter atingido um grau de estabilidade em shamatha, as habilidades necessárias para que o sonho lúcido e a ioga dos sonhos sejam bem-sucedidos são desenvolvidas com muito mais facilidade. Prática individualizada Por fim, é importante adaptar a informação e as técnicas contidas neste livro às suas próprias necessidades e habilidades. Cada um de nós é único. Não existe uma estratégia única que funcionará bem para todos. Alguns de nós adormecem facilmente. Outros não. Alguns de nós podem se lembrar de seus sonhos mais facilmente do que outros. Apesar de os psicólogos terem descoberto que há um ciclo de sono comum para os seres humanos, há também diferenças sutis entre os indivíduos. Práticas e pontos de vista que funcionam bem para uma determinada personalidade podem ser confusos e inapropriados para outra. Por essa razão, entremeada neste texto, ofereço orientação neste tema, ilustrando algumas dessas diferenças e propondo alternativas práticas – um ajuste fino que irá ajudá-lo a maximizar a sua eficiência como um iogue dos sonhos, um sonhador lúcido. Além disso, ofereço um capítulo com perguntas e respostas tiradas de meus retiros sobre sonho lúcido e ioga dos sonhos. A boa notícia é que sejam quais forem as nossas limitações, despertar dentro dos sonhos pode ser aprendido por qualquer pessoa disposta a fazer o esforço necessário. A chave para o sonho lúcido e para a ioga dos sonhos, o ingrediente essencial que irá nos impulsionar para além do sonambulismo obscuro de nossos hábitos é a motivação. Se nos tornarmos inspirados para a prática e comprometidos com essa exploração interior, teremos sucesso. [1]. LaBERGE, S. “Lucid Dreaming: Psychophysiological Studies of Consciousness during REM Sleep”. In: BOOTZEN, R.R.; KIHLSTROM, J.F. & SCHACTER, D.L. (orgs.). Sleep and Cognition . Washington, D.C.: American Psychological Association, 1990, p. 109-126. Parte I SONHO LÚCIDO 1 Quiescência meditativa Como estabelecer a base para a lucidez Qual é o elemento essencial que distingue um sonho lúcido de um sonho comum? Em um sonho lúcido você está consciente da natureza da realidade que você está vivenciando em tempo real. Você sabe que está sonhando. Você sabe que o seu corpo está deitado na cama, dormindo, mesmo enquanto participa dos episódios no sonho, que vão desde o normal até o absolutamente fantástico. Você sabe que todos os fenômenos do seu sonho, o cenário e os participantes, são criações da sua própria mente. Enquanto em um sonho não lúcido você toma tudo como se fosse verdadeiro e nunca suspeita de estar dormindo, não importando quão bizarro possa parecer, em um sonho lúcido você sabe, em tempo real, que se trata apenas de um sonho. Geralmente nossos sonhos são caracterizados pela falta de estabilidade. Nossa atenção é carregada para lá e para cá pelo conteúdo dos nossos sonhos e pelas nossas reações habituais a esses eventos. Shamatha é uma prática que estabiliza a nossa atenção. A estabilidade da atenção é um passo crucial para a liberdade – liberdade de transcender a consciência normal do sonho e reconhecer que estamos sonhando, manter essa lucidez e transformar os nossos sonhos em um laboratório onde podemos explorar a mente com bastante atenção. Quando aprendemos gradualmente a concentrar a nossa atenção, a confusão é substituída por uma coerência contínua – desenvolvemos domínio sobre o ambiente do sonho. Embora em shamatha estejamos desenvolvendo a concentração, ela é alcançada não pela força, mas por meio de um profundo relaxamento. Não é a concentração estressante e por fim exaustiva de um piloto de caça que, depois de algumas horas de manobras extremamente complexas, habilidosas e exigentes, precisa de pelo menos vinte e quatro horas sem nenhuma atividade para se recuperar. Em shamatha, as distrações da mente são aquietadas, para que a atenção possa finalmente repousar confortavelmente e sem esforço sobre um objeto escolhido por horas a fio [2] . Essa estabilidade é uma plataforma ideal para o desenvolvimento das habilidades para o sonho lúcido e para a ioga dos sonhos. As técnicas que levam ao sucesso na prática dos sonhos incluem a memória prospectiva (preparar-se para lembrar de algo em um sonho futuro), a memória retrospectiva (lembrar sequências de eventos em sonhos do passado), a recordação de sinais que servem de alerta para o estado de sonho, e a concentração estável e relaxada em imagens visuais. Uma vez que os nossos estados comuns de consciência são dominados por diferentes graus de agitação e embotamento, neste momento não temos a clareza e a estabilidade necessárias para fazer uso efetivo de tais técnicas. Por outro lado, a mente relaxada, estável e vívida que foi treinada em shamatha é bastante adequada para estas tarefas. Permita-me ilustrar esse ponto: manobrar o reino do sono com sucesso – que inclui o processo de adormecer, o sono sem sonhos, os sonhos, despertar e voltar a dormir, e lembrar dos sonhos ao acordar – exige uma clareza maior do que o nosso entorpecimento noturno habitual proporciona. O sono comum é dominado pelo esquecimento [3] . As pesquisas demonstraram que a maior parte de nós desperta e depois volta rapidamente a dormir um certo número de vezes durante a noite. Poucos notam este hábito. No entanto, estes despertares espontâneos fornecem uma das oportunidades mais úteis para entrar em sonhos lúcidos. Podemos aprender que reingressar deliberadamente em um sonho depois de um desses intervalos pode levar a um sonho lúcido, mas se não nos lembrarmos de fazer isso, estaremos perdendo essas oportunidades continuamente. A clareza e a estabilidade de uma mente treinada em shamatha é uma base confiável para nos lembrarmos de aproveitar essas oportunidades. O mesmo é válido para uma outra técnica que iremos aprender mais tarde: o uso de eventos típicos de sonhos (chamados de sinais de sonho) para nos lembrarmos, durante o sono, que estamos tendo um sonho. Ao longo do tempo, podemos elaborar uma lista de eventos que ocorrem regularmente em nossos sonhos. Podemos observar, por exemplo, que nos encontramos várias vezes em um local específico, ou que nos deparamos com uma mesma situação ou com as mesmas pessoas ou objetos repetidas vezes. Se tivermos clareza mental para nos lembrarmos da importância desses sinais quando eles aparecem em nossos sonhos, eles podem nos fazer despertar dentro do sonho. O treinamento em shamatha aumenta significativamente as chances de que isso aconteça, ao passo que sem este treinamento, em nossa consciência normal de sonho, é mais provável que percamos esses sinais completamente, ou que tenhamos apenas uma vaga sensação de que eles devem ter algum significado ou aplicação. A prática de shamatha não é exclusiva do budismo. Pode ser encontrada nas tradições contemplativas do cristianismo, do hinduísmo, do sufismo, do taoismo e de outras tradições. Creio, no entanto, que o budismo produziu um programa de shamatha amplo e bem-elaborado, que é especialmente adequado para a prática dos sonhos. A versão que irei apresentar se baseia em uma tradição que faz uso de três técnicas específicas dentro de uma sequência de dez etapas. Primeiro farei uma breve apresentação da teoria desta versão budista de shamatha e, em seguida, apresentarei uma visão geral das adaptações mais práticas dessa teoria, que podemos utilizar para desenvolver habilidades para o sonho lúcido e para a ioga dos sonhos. Shamatha na teoria A estrutura geral para o treinamento de shamatha aqui apresentada é extraída do livro Stages of Meditation , escrito pelo contemplativo budista indiano do século VIII Kamalashila. Há dez etapas, começando com os estados de atenção mais grosseiros, conduzindo ao mais sutil – o atingimento de shamatha. Após atingir shamatha, o praticante será capaz de concentrar-se sem esforço em um objeto de escolha de forma contínua durante pelo menos quatro horas. A realização de shamatha é uma raridade nos dias de hoje, até mesmo entre os contemplativos dedicados. Há duas razões principais para isso: pela urgência em ingressar, completar e realizar as práticas “mais elevadas”, shamatha, embora tenha sido considerada um requisito para tais realizações, não tem sido enfatizada em muitas tradições contemplativas contemporâneas. Em segundo lugar, a menos que o praticante já tenha uma mente extremamente relaxada e equilibrada, a realização plena de shamatha pode exigir muitos meses ou mesmo alguns anos de prática solitária concentrada. No tempo em que as mentes bem- equilibradas eram mais comuns, como na calma sociedade pastoril do Tibete, a realização de shamatha era possível em um tempo menor. Mas, na civilização global acelerada e agitada de hoje em dia, essas mentes são extremamente raras. Embora o treinamento em shamatha não seja absolutamente necessário para que a prática dos sonhos tenha sucesso, eu o recomendo enfaticamente. A realização das duas primeiras das dez etapas a seguir, no mínimo, poderia melhorar muito a própria estabilidade da atenção, não só para esta prática, como para qualquer outra atividade. Realizar os estágios mais avançados, sem contar a própria realização de shamatha, fará com que a prática dos sonhos seja relativamente rápida e fácil. Os dez estágios do desenvolvimento de shamatha (brevemente descritos): 1) Atenção dirigida – O praticante desenvolve a capacidade de focar o objeto escolhido. 2) Atenção contínua – O praticante é capaz de manter a atenção contínua sobre o objeto por até um minuto. 3) Atenção ressurgente – O praticante recupera o foco rapidamente quando se distrai do objeto. 4) Atenção constante – O objeto de atenção não é mais completamente esquecido. 5) Atenção disciplinada – O praticante desfruta do samadhi ou “concentração unifocada”. 6) Atenção pacificada – Não há mais resistência ao treinamento da atenção. 7) Atenção plenamente pacificada – O apego, a melancolia e a letargia estão pacificados. 8) Atenção unifocada – O samadhi é sustentado sem agitação ou lassidão. 9) Equilíbrio da atenção – O samadhi é sustentado sem falhas e sem esforço. 10) Shamatha – O praticante mantém a concentração em um objeto sem esforço por pelo menos quatro horas; este estado é acompanhado de maleabilidade física e mental muito maiores e de outros efeitos secundários positivos [4] A principal metáfora aplicada a estas dez fases sucessivas é a turbulência relativa de um rio. No início, pensamentos, emoções, imagens e assim por diante correm pela mente com a força de uma cachoeira. Nos estágios posteriores, esses fenômenos mentais aparecem com menos força e menos frequência, como um rio largo e calmo, até que ao final sejam completamente pacificados, como um mar sereno. Três práticas sequenciais no caminho de shamatha Descobri que as três práticas que descreverei a seguir são as mais eficazes para as pessoas dos tempos modernos se dedicarem ao treinamento de shamatha. A primeira é a atenção plena à respiração . Nesta prática desenvolve-se a atenção, observando as inspirações e as expirações, testemunhando passivamente as sensações táteis associadas com a respiração natural, por todo o corpo. A experiência da respiração fornece uma ancoragem excelente, permitindo que os relaxamentos físico e mental se tornem a base da prática desde o início. Para aqueles comprometidos com o treinamento integral de shamatha descrito acima, eu recomendo que a atenção plena à respiração seja praticada nos estágios de um a quatro. Para os três estágios seguintes – cinco a sete – recomendo a prática de estabelecer a mente no estado natural . Nesta prática, a atenção aos fenômenos mentais substitui o foco na respiração. Observa-se todos os eventos mentais que surgirem – pensamentos, imagens mentais e emoções – de forma neutra, objetiva, sem qualquer envolvimento. Permitimos que estes eventos, que normalmente nos capturam, passem diante da janela da mente, como nuvens sopradas pelo céu. Para os estágios oito em diante, recomendo a prática de shamatha sem sinais , também chamada de consciência da consciência . Nas práticas anteriores tínhamos um objeto de foco, isto é, um sinal. Aqui, a atenção é dirigida à própria consciência. Enquanto a respiração e os fenômenos mentais são objetos identificados dentro de uma estrutura conceitual – a consciência está focada em um objeto diferente de si mesma –, aqui a consciência simplesmente repousa em si mesma, luminosa e ciente. Estabelecer a mente em seu estado natural e a consciência da consciência, em conjunto com outras técnicas de meditação relacionadas a shamatha, são extremamente úteis para a prática dos sonhos, quer o aluno tenha ou não a intenção de seguir para os estágios mais refinados do treinamento de shamatha. Vou apresentar estas técnicas em momentos apropriados em capítulos posteriores. As instruções dadas neste capítulo, se seguidas com diligência, permitirão que o praticante realize os três primeiros estágios do treinamento de shamatha. Se ele se inspirar a seguir adiante, de forma geral, será necessário um retiro solitário por um tempo mais longo. Para uma explicação detalhada de todo o caminho de shamatha, veja o meu livro A revolução da atenção [5] Shamatha na prática Sessão 1: relaxamento Aqui nós oferecemos uma sequência básica de meditação para a atenção plena às sensações táteis do corpo, que conduz ao relaxamento – o ingrediente- chave na prática de shamatha – e que também é um prelúdio útil para se ter uma boa noite de sono, sem a qual a prática dos sonhos bem-sucedida é difícil, se não impossível. Começaremos esta e as sessões seguintes estabelecendo o corpo em seu estado natural . Em seguida, cultivando uma qualidade de presença atenta e quieta, permitiremos que a consciência permeie o campo de sensações táteis – todas as sensações que surgem tanto no interior quanto na superfície do corpo. Depois de encontrar uma postura confortável , faça o seu melhor para permanecer imóvel, permitindo apenas os movimentos da respiração. Se estiver sentado (em uma cadeira ou no chão, de pernas cruzadas), deixe sua coluna ereta e eleve o seu esterno apenas o suficiente para que não haja pressão em seu abdômen, que o impediria de se expandir livremente conforme você inspira. Mantenha seus músculos abdominais soltos, sentindo o abdômen expandindo com cada inspiração. Onde quer que você encontre tensão ou contração no corpo, respire nessa área e, especialmente quando expirar, libere a tensão muscular. Preste atenção em particular aos músculos da face – à mandíbula, aos olhos. Complete esta preparação inicial do corpo, tomando três respirações lentas, profundas e vigorosas , respirando pelas narinas, descendo até o abdômen, expandindo o diafragma e, finalmente, respirando no tórax, atingindo quase a plena capacidade pulmonar; então, solte o ar sem esforço, plenamente atento às sensações correlacionadas com a respiração, conforme se manifestam por todo o corpo. Em seguida, estabeleça a sua respiração em seu ritmo natural, notando o quanto é fácil influenciá-la com as suas preferências. Da melhor forma possível, abandone o controle e permita que a respiração flua espontaneamente, sem nenhuma intervenção, com o mínimo esforço possível. Quando começamos a aprender meditação, nós rapidamente descobrimos o quanto a nossa mente é agitada e confusa. Às vezes somos inundados com uma cascata de pensamentos e emoções. Cultive uma atitude positiva , de paciência, quando se deparar com essas distrações. Em vez de reagir, tentando reprimir e forçar a mente a ficar quieta, relaxe e solte a energia reprimida e turbulenta do corpo-mente. Tire proveito de cada expiração como um momento natural para relaxar e soltar. Com cada expiração, perceba uma sensação progressiva de que seu corpo se derrete, se acalma, relaxa. A cada expiração, assim que notar qualquer pensamento ou imagem involuntários surgindo, apenas solte-os sem segui-los; e assim que os liberar, deixe que sua consciência desça tranquilamente mais uma vez para o corpo, simplesmente notando as sensações táteis surgindo dentro deste campo, em especial as sensações correlacionadas com a respiração. Permita-se liberar os pensamentos e cultivar uma outra qualidade de consciência, que é clara, brilhante, inteligente, atenta e silenciosa. Sempre que se der conta de que foi capturado por pensamentos, de que sua mente foi levada , em vez de se sentir frustrado ou se julgar, deixe que a sua resposta simples e imediata seja relaxar mais profundamente, soltar os pensamentos e trazer sua consciência de volta a este campo tranquilo da experiência tátil. Adote a duração de vinte e quatro minutos para a sua sessão de práticas (chamada, em sânscrito, um ghatika , que foi considerado ideal para o treinamento inicial de meditação na antiga Índia). Continue com a intenção de manter sua atenção no campo de sensações táteis associadas à respiração e, quando achar que se distraiu, relaxe mais profundamente, abandone as distrações e retorne para o corpo. Esta sequência prática agora é dada em forma resumida para que você possa dispensar as distrações causadas pela leitura do livro conforme pratica. Basta alguns momentos para se familiarizar com as instruções, memorizar a sequência, e então começar. Resumo da prática: • Postura: supino ( shavasana , ou postura do cadáver) [6] ou sentado. • Respiração: em seu ritmo natural. • Atitude positiva: cultivo do relaxamento. • Atenção: no campo das sensações táteis. • Quando se distrair: traga gentilmente a atenção de volta para o campo das sensações táteis. • Duração: um ghatika (vinte e quatro minutos). • Intenção: observar as sensações táteis, relaxar e retornar quando se distrair. Comentário A técnica básica de shamatha envolve a interação de duas faculdades mentais: a atenção plena e a introspecção. A atenção plena ( mindfulness , em inglês) pode ser definida como uma atenção contínua em um objeto escolhido, o