Moschkovich1 nos ofereceu bons resultados advindos de uma boa operação do materialismo histórico dialético. Eduardo Borges2 As teses de Marília Moschkovich publicada no blog da Boitempo3 por um lado parece estar correta quando analisamos os desdobramentos argumentativos de todo o texto, no que tange a articulação da dialética marxista, isto é, tomando como premissa que, em última instancia é o momento subjetivo ou melhor, teleológico da classe em movimento em posição de combate que objetivará uma práxis verdadeiramente revolucionária, o sexo (sexualidade) enquanto constitutiva desses indivíduos determinados encontra-se em total imbricamento e possui um conteúdo revolucionário autêntico se tomado em sua inteireza. No entanto, creio que o erro da autora está na ideia de o sexo (sexualidade) seja a primeira e mais importante bandeira para a emancipação dos povos oprimidos, e ainda mais se atentemos a situação dos países estruturalmente dependentes como o Brasil. Deixando essa segunda analise de lado, a análise crítica da autora relativo aos fenômenos da sexualidade, e, em relação sobre ao modo como essas pautas (gênero, raça) se envolvem na luta de classes, creio que seja de extrema importância e relevância para o debate da revolução brasileira. Desdobrarei aqui sobre essas duas questões postas, aliás muito necessária (categoria da necessidade) que nos instiga a pensar, e nos força a ter um entendimento e um rigor teórico muito maior sobre essas questões como também, a ter um entendimento muito mais claro do materialismo histórico dialético. 1 Marília Moschkovich é socióloga, mestra e doutora em educação pela Unicamp. Publicou um artigo ao blog da Boitempo 2020 ‘’A grande tarefa do marxismo é o sexo’’. O artigo de Eduardo Borges é uma análise crítica das teses defendidas por Moschkovich nesse pequeno artigo. 2 Eduardo Borges é formado em Arquitetura e Urbanismo pela PUC-MG. Pesquisa história da arte numa abordagem marxista. Pesquisa sobre a Estética Marxista em variados autores, sobretudo a produção intelectual do filósofo húngaro György Lukács. Pesquisou sobre as peculiaridades do novo sistema produtivo de café especial e seus impactos sociais e econômicos no Sul de Minas. 3 Link aqui: https://blogdaboitempo.com.br/2020/01/10/a-grande-tarefa-do-marxismo-e-o-sexo/ I Sobre o sexto parágrafo da autora. A tese é a seguinte; a autora vê que a tensão que surge na contradição às formas tradicionais de família, da estrutura material e simbólica do gênero dominante, do comportamento sexual ‘’normal’’, que acarreta em negações, isto é, em outros modos de comportamento sexual, de estruturações de gênero, ajuda a compreender essas próprias categorias como gênero, sexualidade, família etc. Sobre essa tese está tudo bem e claro, mas, o mais importante que se pode tirar desse parágrafo é a noção de que essas negações estabelecem uma relação dialética com as formas hegemonicamente dadas. A autora as trata como negações, e não como afirmações. Analisando desse modo (modo dialético), tais fenômenos sociais aparecem para nós enquanto carregado de conteúdo revolucionário, pois tais fenômenos carregam em si, um potencial critico a própria ordem. Tendo em vista essa tese central, desdobrarei um seguinte exemplo que acho de extrema importância e relevância para pensarmos essas questões de modo teoricamente revolucionário. Para isso já trago como premissa que a sexualidade é em última instância social, a determinação orgânica se submete a determinação social devido a mediação pelo trabalho: ‘’Voltando ao homem: a adaptação biológica, que é uma adaptação passiva ao meio ambiente, é suplantada, com o trabalho humano, por uma adaptação ativa, que muda o meio ambiente. ’’ Referindo-se ao que se pode denominar enquanto evolução e progresso humano sem nenhuma conotação ideológica Lukács completa: ‘’O segundo ponto é o que Marx chamou de recuo das barreiras naturais. Isso quer dizer que, por meio do trabalho, um ser originariamente biológico se converte em um ser humano; com isso, o fator biológico não desaparece, mas é transformado (...) Quem preconiza uma sexualidade pura preconiza a sexualidade pura de 1970, (a do seu tempo) e não a de qualquer era remota. (Entrevista concedia por György Lukács para o jornal alemão Der Spiegel). Desdobrando o raciocínio da autora, vejamos por exemplo o fenômeno da bissexualidade. É sabido para nós que a sexualidade heterossexual é um gênero construído sob bases concretas, Engels em seu livro Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado 1984 dirá que a propriedade privada aparece na história universal (não sei se ocidental ou não) como um atributo masculino, a propriedade privada daquele ‘’instrumento de trabalho’’ chamado escravo. Daí em diante até nossos tempos, feito suas devidas mudanças (particularidades), as formas de relação sexual, a família etc. são expressadas tendo em vista esse modo de organização material da vida social. Diferentemente do que pensa Freud em relação a bissexualidade, isto é, enquanto um estado biológico original dos seres humanos, a bissexualidade enquanto comportamento sexual não é biológica. Creio que a bissexualidade seja bem instrutiva para percebermos o conteúdo emancipatório das práticas sexuais, e aqui defenderei a seguinte tese: Não há bissexualidade em sociedades de classes. Não existe sexualidade biológica, todo e qualquer comportamento sexual é histórico-social. A heterossexualidade o é, e a homossexualidade também. Esses comportamentos estabelecem uma relação dialética ao meu ver, pois ambas de certo modo são realizadas através de determinações que ambas colocam umas às outras. Uma não existe sem a existência e movimento da outra. Diferentemente do que pensa Freud, a homossexualidade não é um desvio a uma ordem dada num sentido patológico, mas como a negação das imposições sociais (controle dos corpos para a reprodução social sob o capitalismo) da heteronormatividade. Ela é então um comportamento negativo, sendo o afirmativo a heterossexualidade. Ambas se assentam sobre condições materiais que os dá corpos simbólicos em um momento ontologicamente secundário. Ambas não são escolhas subjetivas individuais, mas comportamentos coletivos socialmente determinados. A bissexualidade entretanto, não possui bases concretas, condições materiais para a sua manifestação, ela só existirá numa sociedade sem classes e logo sem gênero dominante, isto é no comunismo. Quem se afirma bissexual afirma apenas uma argumentação subjetiva e não pratica. A bissexualidade existe apenas como um ideal elaborado teoricamente com correspondência ontológica, isto é, uma resolução das contradições existentes, ela seria então a síntese dessa contradição entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Não há condições socialmente necessárias para a realização pratica (objetivação) da bissexualidade, haja vista que todas as formas de relação sexual e relacionamento é determinada pelas estruturas consolidadas pela classe e gênero dominante. Se seguirmos o raciocínio muito bem feito da autora, iremos notar que enquanto negação a ordem dada, a homossexualidade carrega em si conteúdos emancipatório, pois ela aparece enquanto um fenômeno critico, mas como em toda negação, ela também carrega em si, continuidades da mesma ordem dominante, por isso a necessidade de pensarmos a sexualidade é de extrema urgência, ela é um campo aberto para o combate, pois a sua existência não necessariamente é revolucionária, precisamente por ela não ser a resolução do problema (do ponto de vista prático). Por isso existe gays machistas por exemplo, e lésbicas que reproduzem o comportamento também machista. Aqui fica claro que o grande mal está com o gênero masculino, que como vimos, ainda é o que carrega o maior poder material e por isso, político. Em tempos onde aumenta em quantidade e em qualidade indivíduos homossexuais de direita e de extrema direita, (o problema não é o aumento de gays, mas o aumento de gays de direita e de extrema direita) fica claro que esse campo é um campo de combate, e se estamos ainda sucumbidos a sociedade capitalista, devemos potencializar o seu conteúdo critico de modo constituamos uma práxis verdadeiramente revolucionária. Aqui vale salientar o fracasso do arcabouço teórico e prático para com essas questões do pensamento liberal de esquerda. Tal pensamento tende a tratar a questão de modo mecanicista, isto é, como dois polos totalmente distintos. Seguindo esse raciocínio temos então que a homossexualidade por exemplo, e a bissexualidade seriam afirmações e não negações, e que sendo afirmadas num plano subjetivo ou através de uma emancipação política e não humana, os problemas com a opressão e a dominação estariam resolvidas. Sobre a questão da bissexualidade, não dissemos aqui que todo individuo será bissexual numa sociedade sem classes, mas sim, que é apenas no comunismo que haverá liberdade concreta para todo e qualquer tipo de manifestação sexual e de relações afetivas plenas. II Sobre o sétimo parágrafo Tirando o reducionismo (acaba sendo um erro lógico) semântico das categorias ontológicas universal e singular, que acaba por nivelar duas coisas distintas, a universalidade da luta de classes e por outro lado posições individuais (o homem branco ser minoria) daqueles que a defendem, o raciocínio da autora também me parece pertinente. O desdobramento da analise dialética é bem direta e sintética, e no final da argumentação, fica claro o que a autora quer nos dizer naquele reducionismo feito anteriormente. O reducionismo e erro lógico da autora é a seguinte frase: ‘’Por que tanta resistência em abandonar um universal quando sabemos, já, que universalidades não passam de singularidades em posição de poder?’’ Uma coisa é afirmar que a questão de classe é uma singularidade tomada como universal, e outra é dizer que quem as defende são singularidades que se acham universais. Tirando isso, o que decorre daí é um ótimo raciocínio daqueles que operam bem a dialética marxista. Porquê? Pois o que a autora quer nos dizer, é que a universidade da questão de classe já foi moldada pelos novos acontecimentos históricos, isto é, a particularidade já determinou o caráter daquela universalidade até então reproduzida idealmente, que respondia bem a realidade até pelo menos a década de 60, onde a classe trabalhadora era operária e majoritariamente masculina nas sociedades capitalistas avançadas e também de certo modo nos países dependentes. Diferentemente de alguns marxistas vulgares que tendem a reduzir a dialética a um idealismo subjetivo, por desconhecer certas cartas de Engels no debate acirrado que foi defender o pensamento de Marx depois de seu falecimento, e é claro, por falta de estudo dos escritos do próprio Marx, acabam por ver a questão de classe elaborada por Marx e Engels como uma categoria fechada, nas quais as pautas indenitárias deveriam se ‘’submeter’’ a questão de classe, e não que essas pautas já sejam/estejam no corpo da questão de classe. Isso é fundamental. Marx defende aquele movimento no qual, o mais complexo que determina, e nos faz entender o menos complexo, ou melhor, é o estágio mais desenvolvido (historicamente) que nos faz compreender um certo conhecimento anterior ou um processo concreto anterior, de modo que o que resulta daí uma elaboração teórica mais rica de determinações, isto é, mais universal, precisamente porque a análise da particularidade de um tempo resultou numa alteração (não total) da universalidade até então teorizada. O conceito (universal) até então significado se modifica, devido a categoria da particularidade, que é nada mais, do que aqueles fenômenos históricos já devidamente determinados pelo materialismo histórico-dialético, que se elevam a universalidade, deixando de lado tudo aquilo que é acidental isto é, singular. Permitam-me aqui citar Marx em maior extensão: ‘’A sociedade burguesa é a mais complexa e desenvolvida organização histórica da produção. As categorias que exprimem as relações desta estrutura, permitem-nos ao mesmo tempo entender a estrutura e as relações de produção das sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se ergueu, cujos vestígios ainda não superados continua a arrastar consigo, ao mesmo tempo que desenvolve em si a significação plena de alguns indícios prévios, etc. A anatomia do homem dá-nos uma chave para compreender a anatomia do macaco. Por outro lado, as virtualidades que anunciam uma forma superior nas espécies animais inferiores só pode ser compreendidas quando a própria forma superior é já conhecida.’’ (MARX, 1979, p. 48) Cabe então para nós, como Marx sugere, conhecer as determinações mais essenciais dessa problemática (sexualidade x classe) para saber se tais fenômenos são, primeiramente particulares e se elas se elevarão a universalidade. O raciocínio da autora nos leva nesse caminho, isto é, imbrica a sexualidade e essas ‘’novas’’ pautas no marco da questão de classe de um modo dialético, cabe saber o como se dá essa relação para saber o que precipitará no fundo do frasco de ensaio. A questão de saber, é o que se encontra e pode ser universalizado nesse fenômeno particular, e não o que há de universal nesse particular. A primeira é a dialética marxista, a segunda o idealismo subjetivo. * Explicando com um exemplo didático esse idealismo subjetivo. Immanuel Kant na sua tentativa de compreender a noção ainda recém surgida de evolução biológica (início da biologia), tentar dar resposta através de sua concepção filosófica sobre este problema. Ele nega completamente a possibilidade de existir um processo evolutivo, onde as novas formas particulares acabam por modificar a essência do conceito, isto é, o como um ser pode ser, e ao mesmo tempo estar em processo de Devir, modificando assim a essência daquele antigo ser. Ele não responde a essa questão, mas afirma a sua concepção de que há apenas, ou uma classificação dos universais contidos a priori num fenômeno particular, ou uma especificação do que há de universal, também já contido a priori, mas ainda desconhecidos. Em ambas há a determinação do universal no particular, no entanto o primeiro movimento é do universal ao particular e o segundo do particular ao universal. Dirá ele: ‘’A forma lógica de um sistema consiste apenas na subdivisão de conceitos universais dados (como é o caso, aqui, daquele de uma natureza em geral), pensando o particular (aqui, o que é empírico), com a sua variedade, contido sob o universal, segundo um determinado princípio. Ora, se procedemos empiricamente e se nos elevarmos do particular ao universal, é necessária uma classificação do múltiplo, isto é, uma comparação de diversas classes entre elas, cada uma das quais se submetendo a um determinado conceito; e, quando elas se completam, segundo a notação comum, a subsunção delas sob classes superiores (gêneros), até atingir o conceito que contém em si o princípio de toda classificação (e constitui o gênero supremo). Se, ao contrário, começamos pelo conceito universal para depois descer ao particular, através de uma completa subdivisão, tal procedimento se deverá designar por especificação do múltiplo sob um conceito dado, pois se procede do gênero superior aos inferiores (subgêneros ou espécies) e da espécie às subespécies. Isso se exprime de modo mais justo se, ao invés de dizermos (como na linguagem comum) que se deve especificar o particular que se acha sob um universal, dizemos que se especifica o conceito universal e se submete a ele o múltiplo. De fato, o gênero (considerado do ponto de vista lógico) é, por assim dizer, a matéria ou o substrato bruto que a natureza elabora com sucessivas determinações nas espécies e subespécies particulares; pode-se dizer, assim, que a natureza se especifica a si mesma segundo um determinado princípio (ou ideia de um sistema), por analogia com o uso assumido por esta palavra nos juristas quando falam da especificação de certas matérias brutas.’’ (KANT, Erste Einleitung in die Kritik der Urtelskraft. (Primeira Introdução à Crítica do Juízo), Werke (Obras), ed. Cassirer, Berlim, 1922, tomo V, págs. 195-196 apud LUKÁCS, 1970, p. 10) Colocando a questão da sexualidade e a questão de classe tal como elaboram marxistas vulgares, - aquela famosa frase por exemplo: ‘’as pautas indenitárias têm que se universalizar’’ isto é, serem englobadas por uma universalidade já estabelecida a priori, tal raciocino se assemelha a concepção de mundo idealista subjetivo, tal como expresso no pensamento filosófico de Kant. A diferença é apenas relativa ao conteúdo e não a forma, ou seja, o que para Kant a essência (universal) é o conceito criado por Deus, para esses ‘’marxistas’’ é o conceito de demandas de classe enquanto imutável e que determina a forma particular. O movimento operado que a autora critica, nem é o primeiro movimento operado por Kant (do particular ao universal através da classificação), que para Lukács significou um avanço para uma verdadeira elaboração dialética, a de Hegel posteriormente, mas a segunda, isto é, do universal para o particular através da especificação.
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