A Puta “Escrever é como prostituição. Primeiro você faz por amor, depois para alguns amigos próximos e depois por dinheiro”. Molière “A prostituição é o estado ordinário da mulher”. T. Gautier I - O começo Acordou tarde, como de costume. Não porque quisesse, mas o relógio biológico do corpo assim o quis. Por ela, se pudesse, ficaria nua na cama dormindo abraçada com o travesseiro comprado na última viagem a Milão, numa loja onde conhecera Vincenzo. “Vincenzo” , repetia o nome, cerrava as pálpebras, e afundava o rosto naquela fronha recheada de flocos de espuma. E, em instantes, transportava-se para o banheiro do Teatro Scala... Tinha ido assistir, sozinha, a ópera Turandot , de Puccini. Durante a obra, sentiu uma vontade enorme de ir ao banheiro. Sem querer, ou não, havia entrado no banheiro masculino por engano. Lá estava ele. Um metro e oitenta, pele alva, nariz adunco, ombros largos, cabelos negros e com uma mecha azulada na parte lateral da cabeça, do mesmo azul feito das águas do Lago de Como, na região da Lombardia. Ainda lavava as mãos quando viu, pelo espelho do banheiro, a imagem dela. De início ficou sem graça, mas foi tomado de uma súbita vontade de cometer uma loucura. “Você está no banheiro masculino ... ”, disse ele, com um misto de grata sur presa e embaraço. Mas o embaraço desapareceu assim que a fitou de perto. Ela usava um vestido lilás aveludado, costas nuas, e com um longo corte no pano sobre a coxa da perna esquerda. A pele, queimada pelo sol da praia de Nápoles, onde estivera dois dias antes, ainda trazia o cheiro da maresia misturada à loção cremosa que sempre usava. “Pois é, te vendo agora que notei...”, arranhou num italiano improvisado. Ele fez o gesto de abrir a porta para que ela saísse, mas assim que alcançou a maçaneta folheada a ouro, girou o trinco trancando os dois lá dentro. Pegou-a pela nuca, por debaixo dos longos cabelos castanhos, subiu os grandes dedos da mão abrindo ramificações por entre as mechas e girou a cabeça dela de encontro com a sua. “O que você está faz...”, não conseguiu terminar a frase. Quando deu por si estava sendo beijada de uma maneira que nunca mais esqueceria. Era como se Deus, ao forjar as bocas que haviam de habitar o planeta, colocasse na dele algum tipo de encaixe que, junto aos seus lábios, era difícil separar. Ele fez deslizar a alça do vestido e o mais que se ouviu foram gemidos juntos aos cantos dos tenores e sopranos... Foi transportada de volta ao quarto. Olhou ao redor. Viu o travesseiro, a mobília, as roupas jogadas ao chão e seu gato persa, Duby. Foi à janela, se apoiou no parapeito, olhou os prédios com uma pintura deteriorada do subúrbio em São Paulo, onde morava, lembrou-se de Vincenzo mais uma vez e de Puccini: “ Tu pure, o, principessa, nella tua freda stanza, guardi, le stelle... Che tremano d ́amore e di speranza ...” Era difícil ter esperança naquela profissão. “É uma ironia que a profissão mais antiga do mundo ainda não seja considerada uma... profissão!”, concluiu de si para si. “ Fodam-se todos vocês ”, gritou alto do parapeito da janela para que todos a escutassem. “Cala a boca, porra!”, alguém respondeu gritando do andar de abaixo. “Nem todo mundo trabalha de madrugada igual a você, PUTA!”. Puta. Aquilo soou como um segundo nome. Já não lembrava mais qual era o seu verdadeiro nome, seu nome de batismo. Eram tantos nomes quanto o desejo dos seus clientes. Marcela, Yasmim, Dandara, Daniela, Carla, Natasha, Manuela, Laura, Isabela, Lívia, Maya, Sarah e seguia uma lista infinita, tão infinita como o infinito e insaciável desejo masculino. “Afinal, o que é um nome?”, indagou a si mesma. “Nesse mundo, somos coisas desejadas e desejantes com meros rótulos nas capas e cuja data de validade é a morte”. Gostava de filosofia. Lembrava-se do seu professor de filosofia do ensino médio com frequência. Só não recordava direito o no me dele. “Será que era Daniel? Não, Daniel foi o cliente de ontem, aquele escroto de unhas sujas. Ou era David? Era com D. Ah, dane- se...”. Sentia-se culpada por não ter conseguido terminar o ensino médio, mas orgulhosa de ter guardado, no escafandro da memória, algumas lições de antigos filósofos e filósofas passadas pelo seu mestre. “Você é mulher”, dizia seu professor de filosofia, “num mundo governado, regido e ordenado por homens, você tem que ser duas vezes melhor, nunca se esqueça disso”. Ela não esqueceu. Até que veio a perda do pai e da mãe num acidente de carro quando ela ainda contava 16 nos. Viajavam de férias, em dezembro, para visitar a casa dos avós, em Bertioga, litoral paulista. Seu pai, engenheiro, tinha acabado de voltar dos Estados Unidos após cumprir um curso de construção de plataformas off-shore , e com a reserva de dólares que tinha feito lá, decidira custear a viagem de natal ao litoral para visitar os pais. Era uma tarde ensolarada qualquer do dia 23 de dezembro de 1985. Ela estava no banco de trás, brincando um jogo de advinha com seu pai em inglês. Era a vez dele. “ I spy with my little eye something that starts with s ”. A resposta era sky Mas não deu tempo. Uma carreta desgovernada derrapou e atingiu o carro em cheio. Seus pais morreram na hora, só ela sobrevivera. Ou melhor, só ela foi condenada a “ morrer em vida ” , como preferia classificar o tipo de “ vida ” que tinha. Dali em diante prometeu vingar-se de Deus. E optou por levar um estilo de vida desregrado e comprometido apenas com o prazer carnal. Esconjurando todo tipo de reprimenda que lhe fizessem. Decidiu ser puta. II – O meio “Continua, continua, não paaara, eu vou...”. Suportou por mais de vinte e cinco minutos, mas não aguentou (lembrou-se da antiga amiga). Era o seu primeiro cliente, Alonso, justamente no dia em que ela completara 17 anos, dia 10 de junho, uma geminiana nata. “Nossa, mas você já gozou?”, perguntou ele, com a boca molhada de um líquido branco viscoso, um tanto decepcionado. “Eu disse que queria chupar você por no mínimo uma hora, e agora? Você vai devolver meu dinheiro?”, disse frustrado. “Ou vou poder continuar?”. “Não! Pelo amor de Deus, para, para, tá muito sensível... Desculpa, me deixa respirar um pouco e você continua vai”, respondeu ela enquanto sentia ambas as pernas tremerem, como se cada poro do seu corpo tivesse levado uma descarga elétrica de corrente alternada. “Respirar?”, ele riu. “Você tá de sacanagem com a minha cara né, eu tô na minha hora de almoço, não posso ficar aqui esperando a mad ame, e além do mais eu...”. “Eu falei para você só colocar a língua”, ela o interrompeu, “colocar a língua e os dois dedos juntos eu não aguento, foi intenso demais, me perdoa”. Ele a viu ali, estirada na cama, nua com 17 anos bem distribuídos pelo corpo. “É, não é todo dia que a gente se deita com uma menina de 17 anos...”, disse rindo, mas na hora teve que esquivar- se rapidamente de uma calcinha atirada em sua direção. “ Menina porra nenhuma, ouviu?! Sou mulher já! Fodo melhor que muita mulher de 30 por aí!”, gritou ela, interrompendo-o novamente. “Calma, „Lolita‟, foi só um comentário”, disse ele. “Lo o quê?”, ela perguntou sem entender o que ele havia dito. “ Lolita , é um livro, um romance de 1955, conta uma história de amor entre um cara mais velho e um a menina, escrito por um russo, Vladimir Nabokov, você não conhece?”, ele perguntou. “A única coisa que li em vida foi o livro da crisma”, ela respondeu. “Foi bem famoso na época”, ele continuou, “principalmente depois que o Kubrick fez uma versão para o cinema em 1962”, e terminou a frase olhando para o relógio. “Ku quem?”, ela indagou com um sorriso sapeca no canto da boca. “Kubrick! Stanley Kubrick, o direto de cinema. Caramba, já tá na hora, tenho que ir, e não precisa devolver nada não, viu gata .” Vestiu a calça de sarja preta, presente de aniversário dado pela esposa, abotoou a camisa social, afivelou o cinto, colocou as meias e calçou o sapato. “Nos vemos de novo?”, ele perguntou. “Dinheiro na mão, calcinha no chão, gato ...”, ela respondeu a ele com um olhar desafiador enquanto rolava na cama cobrindo o esbelto corpo num lençol branco estampado de flores. Do dia da morte dos pais até o presente momento em que completava 17 anos, haviam transcorrido exatamente seis meses. E durante esse tempo, ela refletiu sobre a decisão que tomara. Tinha a opção de morar com os avós paternos, mas lhe repugnava a ideia de viver sob o mesmo teto daquele que a molestou quando ela não tinha mais que 10 anos. Ela nunca se esquecera daquele dia. “Você promete que não conta nada a ninguém, meu docinho ?”. O avô sempre a chamava de docinho . “Senão o vovô vai ficar muito chateado e vai ter que bater em você, ouviu bem, ou você quer apanhar, meu docinho ?”. “Não quero apanhar vovô, não bate em mim, por favor”, e enquanto ela pedia para não apanhar com lágrimas nos olhos, sentia a mão áspera e enrugada do velho subindo pelas coxas, passando pela barriga até alcançar os minúsculos seios em flor. Ela não entendia ainda a gravidade daquela situação, daquele ato. Não conseguia conceber como alguém tão querido pela família poderia lhe fazer algo de ruim. Queria crer que era algum tipo de segredo, pesadelo, que logo teria fim. Mas não teve. Suportou aquilo o máximo que conseguiu, até o dia em que resolveu evitar a presença do velho. Foi difícil, ninguém entendia direito porque ela odiava ter que viajar até Bertioga, litoral paulista. De certa maneira, aquilo representou seu início na vida sexual, um início traumático, indesejado e dolorido. Não queria ter sido iniciada com aquela idade, daquela forma, com aquela pessoa, que com o tempo, acabou se tornando um monstro repugnante e desprezível. Queria ter continuado a ser menina, olhando as coisas ao redor com a pureza e inocência com a qual sempre olhou. Mas era tarde demais, já não via as coisas com o mesmo olhar, em tudo agora havia malícia; seu corpo fora maculado, e sua alma condenada a pensamentos os mais tristes possíveis. Foi com muita luta interior e terapia que conseguiu guardar e trabalhar aquelas nefastas memórias em lugares inacessíveis à mente humana, e lá ficaram. Só teve um alívio, realmente, quando, anos depois, soube que o avô havia sofrido um AVC e ficara vegetando numa cadeira de rodas até o dia em que de fato morreu devido a um segundo acidente isquêmico, que, este sim, o levou para o inferno, como ela gostava de acreditar. “Tomara que satanás e sua horda de demônios enfiem, simultaneamente, tridentes flamejantes no seu cú, velho filho da puta !”, pensava ela com íntima satisfação. Não imaginava, ou sequer cogitava que milhares de meninas talvez passassem pela situação que ela também passou. Abusadas por pessoas do círculo familiar, quando descobriu conversando com as amigas e as amigas das amigas. Sentiu nojo dos homens. Quando ficou órfã, julgou que Deus não gostava mesmo dela. Teve então seis meses para seguir à risca com o plano do meretrício. A oportunidade surgiu quando uma amiga do ensino médio, Vanessa, a chamou para morar sozinha com ela. Eram amigas desde pequenas e faziam quase tudo juntas. Os pais de Vanessa viajavam constantemente a Miami e ela ficava semanas com uma tia-avó mais surda que cega. “Fica um tempo aqui em casa, depois você segue sua vida”, disse s ua amiga. Foi com Vanessa que ela teve sua primeira experiência homossexual e ali realmente decidiu viver uma vida dedica à concupiscência. Beberam vários shots de tequila misturados com cerveja e quando o álcool já estava um pouco dentro e o juízo um pouco fora, deixaram que seus corpos falassem o que nenhum idioma nunca conseguiu. E a língua falada foi o mais puro e sublime amor. Amaram-se em posições e maneiras as mais inimagináveis possíveis. A língua de Vanessa percorria os altos e baixos de seu corpo como uma lesma que roça a superfície de uma pedra deixando ali um rastro de gosma e umidade. No toca discos, uma música da banda Enigma, Sadeness, preenchia todo o ambiente erotizado do quarto, Ela fechou então os olhos e sentiu agora que o dedo médio de sua amiga tocava, penetrava e roçava a parte mais interior de sua vagina acompanhado por movimentos circulares feito com a língua ao redor do clitóris. “Sai daí se não eu vou gozar litros na sua cara, Vanessa...”. Vanessa não saiu. *** Passaram-se dez anos, e agora aos 27 todas essas recordações vieram como um relâmpago à sua cabeça. Mas não teve muito tempo para lembrar-se de mais coisas, afinal, estava na hora de trabalhar. E deixou tudo para trás: Vincenzo, Milão, Alonso, Nabokov, Kubrick, Vanessa e o escroto tarado do seu avô queimando no inferno. Só não deixou Duby, seu gato, para trás porque este não parava de miar com fome. “Se você não fosse uma companhia tão boa para mim, eu já teria te vendido para o cara da esquina fazer espetinho de você, gato fo lgado”. Miau , respondeu Duby enquanto se aconchegava numa caixa de sapatos. Era começo de mês e ela sabia que teria de fazer, pelo menos, seis a dez clientes por noite para que tivesse um descanso monetário tranquilo pelo resto dos vinte dias subsequentes. Vestiu a saia jeans, fazendo força para entrar naquele curto pedaço de roupa uma vez que tinha coxas bem grossas, pôs o top vermelho entrecortado de franjas à altura dos seios em forma de pera e enfiou os pés nos sapatos de salto altos número 35. “Puta merda!”, esbravejou, “esqueci de pintar a porra das unhas de novo, meu Deus, tomara que o Carlos não apareça para ficar chupando e lambendo meus dedos, da última vez ele reclamou”. Carlos era o cliente mais esquisito. Pagava somente para ficar chupando, lambendo e mordiscando, minutos a fio, seus pés e dedos. Era um podólatra convicto, desses que a primeira coisa que fazem quando batem o olho numa mulher é olhar os pés, sem ligar para bundas, caras ou seios. E a fez prometer que na próxima vez ela estaria com as unhas dos pés pintadas no vermelho- melancia mais forte que existia. “Amo mulher com esmalte vermelho”, dizia ele e mordia a parte inferior dos lábios. “Lembram -me os pés de Dolores, minha finada esposa, que Deus a tenha”. E fazia três vezes o sinal da cruz sobre a testa como um neurótico que lava três vezes a própria mão antes de começar os afazeres do dia. Mas o Carlos não apareceu. Quem despontou no horizonte da rua escurecida em que ela fazia ponto foi John, um gringo que estava de férias em São Paulo. “Graças a Deus não é o Carlos”, ela pensou alto, “esse aí não é dos piores”. John era um holandês, de um metro e setenta e cinco, cabelos ruivos e pele sardenta. Ela gostava de trepar com ele porque era a chance que tinha de fumar um baseado de maconha. Além do mais, tratava-a com considerável carinho e respeito. Só tinha um problema: depois que fumava esquecia-se de transar e falava por horas a fio. Tinha umas teorias meio doidas, dizia que o filósofo francês René Descartes fugira da França para fumar cannabis sativa em Amsterdam e que a vida não passava de um jogo de simulação controlado por alienígenas de outra dimensão. “Tá bem, John, shut the fuck up e me chupa vai, seu saf ado doidão...”, ordenava ela. “Okay, okay, my dear... ”, respondia ele. Enfiava a cara na vagina dela como alguém que quisesse voltar para o materno útero e só levantava a cabeça para pegar um pouco de ar e começar o trabalho novamente. Ela sentia todos os seus vasos sanguíneos dilatarem-se após o primeiro trago. Depois do oral, John a comeu de forma tão intensa e forte que ela, por vezes, desejava ser pedida em casamento por ele, fugirem os dois para a Holanda, fumarem maconha, lerem e meditarem sobre Descartes e transarem até que as órbitas de seus olhos saltassem para fora do globo ocular. Mas tão logo ela gozava e o desejo de fugir para Holanda e ler Descartes passava. “Gozo, logo existo...”, disse ela aliviada após empurrar John de cima de si extenuada que estava pelo épico orgasmo. John largou o grosso e comprido baseado de maconha em cima do pesado cinzeiro de granito. “Você não fugiria comigo para Holanda um dia, my dear , eu gosto tanto de você?”, perguntou ele com aquele ar abobalhado e apaixonado que os homens costumam ter depois que gozam fartamente com qualquer uma. “Nem fudendo John! Eu sou puta , esqueceu? E você tá longe de ser o Richard Gere e eu, a Julia Roberts”, ela disse enquanto se levantava para pegar as roupas e vesti -las tendo assim que voltar ao milenar ofício. “Mas você não é qualquer puta, my dear , você é a puta! E que puta mais maravilhosa...”, ele concluiu ainda arfando de cansaço sobre a cama de metal enferrujado. “Vamos, levanta, acabou o tempo gato , tenho que atender outro paciente com a minha terapia ”. Ela gostava de imaginar que o trabalho que fazia era similar ao de uma psicóloga. Talvez assim conseguisse suportar melhor a realidade e o real ao seu redor. A diferença talvez estivesse em que a primeira ouvia sem ter de abrir as pernas e ela abria as pernas sem precisar ouvir muito. É verdade. Havia clientes que só queriam ser ouvidos, não estavam tão interessados assim no sexo, seja porque não eram tão seguros de si em relação ao tamanho do próprio pênis, seja porque não tinham voz em casa ou no trabalho, eram oprimidos por esposas ou patrões e viam nela uma terapeuta a escutar seus problemas, medos e angústias. Uma terapeuta mais barata do que as terapeutas oficiais costumavam cobrar, sim, e com a real possibilidade de lhe penetrarem a desejada vagina. John desceu degrau a degrau as escadas, com medo de cair devido ao bambear das pernas e o efeito da maconha, do sobrado onde ela tinha seu divã . Tão logo desceu, subiu o outro, Trajano, que ela achava um pouco violento, mas pagava be m. Ela o chamava de “a Coluna de Trajano”, graças ao avantajado membro que possuía. “Antes fosse só grande”, ela pensava, “mas é grande e grosso, eu que lute, digo, eu que chupe”. Sempre que ela o olhava dava íntimas risadas e lembrava-se da segunda maior mentira que ouvira na vida: “tamanho não é documento”. E ria alto. A primeira grande mentira que lhe disseram foi que “Deus tem um plano maravilhoso para cada um de nós”. O dela era ser puta. “Mulheres e padres”, disse a si mesma, “nós somos mesmo fodas, e eles são uns canalhas, nós entendemos de sexo e eles de Deus”. Quando deu por si, Trajano estava apenas de cueca. Era do tipo que malhava na academia. Pele morena, barba cerrada, cabelos encaracolados, ombros quase saltando do delineado tronco, mãos que pareciam dos martelos e pés enormes como os de um hobbit, grandes e peludos. “Continua a mesma gostosa de sempre, hein, meu amor ”, ele sussurrou ao seu ouvido enquanto a pegava com força pela nuca, tendo os cabelos dela envoltos em uma de suas mãos, enquanto a outra estava para trás, como um rústico cavaleiro que agarra a crina de uma indômita égua enquanto monta-lhe pesadamente o frágil dorso. “Ao seu bel prazer, minha querida coluna de...”, não conseguiu terminar a frase. Foi lançada à cama com tamanha força que quase bateu com a cabeça na parede por detrás das grades da cabeceira. “Calma, gato , eu gosto de violência, mas também não precisa exage... Mas que porra é essa, hein?”, ela gritou tomada de susto. Trajano trazia na outra mão, que estava escondida atrás do corpo, agora à vista, um par de algemas em metal reluzente e uma longa chibata tripartida de couro enegrecido com pregos na ponta. “Hoje, vamos fazer diferente ...”, respondeu ele com um terror no olhar que ela nunca vira igual e que a fez gelar por dentro, temendo pela própria vida. III – O fim Enquanto ela se refazia mentalmente do susto que levara, Trajano avançou em sua direção numa velocidade tal que ela mal tivera tempo de se defender. Quando se deu conta, ele já estava montado sobre ela como um leão que por cima de um cervo indefeso crava- lhe os dentes na jugular do animal subjugado. “ Cala a boca, sua puta! ”, ele falou em meio -tom perto do ouvido dela. Virou-a de bruços, algemou ambas as mãos por trás das costas e pôs um travesseiro dobrado por debaixo de seu ventre fazendo assim que uma houvesse elevação de cinquenta centímetros ou mais acima da linha média do corpo. Com a ponta do lençol sobrando da lateral da cama, fez um tipo de embrulho com a palma da mão e enfiou na boca dela. Impedida de gritar, o máximo que conseguia agora era emitir sons desarticulados desprovidos de sentido. Todo aquele encadeamento de ações só a fez supor o que ela mais temia em relação à transa e que sempre fora sua principal negação independente do valor que oferecessem: sexo anal. Trajano segurou-a fortemente com as mãos por volta da fina cintura, que de tão fina quase conseguia tocar-lhe os dedos, e enfiou com toda força o pau que latejava de tesão tanto pela adrenalina quanto pelo caráter animalesco da cena. Nunca sentira uma dor como aquela. As lágrimas rolavam numa profusão tamanha que chegaram a empapar o lençol de estampas floridas. Quanto mais era penetrada, mais gritava; quanto mais gritava, mais era penetrada. Havia como uma relação matemática entre a intensidade do grito e força com a qual ele a penetrava. Após vinte intensos e eternos minutos, Trajano saiu de cima dela e foi a alcance da chibata com pregos presos à ponta que estava no chão, perto da porta de entrada. “Vamos agora, ao grand finale !”, disse ele. Abaixou -se para alcançar a chibata e sentiu um dor tão forte na parte occipital da cabeça que não teve forças sequer para emitir som algum, tombando fortemente desmaiado como uma gelatina de cimento antes de ver o cinzeiro de granito caindo a um palmo de seu nariz no chão. “ E você tem certeza que não quer mesmo ir para a Holanda comigo, my dear ?”, perguntou John, de pé que estava ao lado do corpo inerte de Trajano, com um ar sarcástico, tendo no canto esquerdo da boca o grosso cigarro de maconha, “se eu não volto para buscar meu baseado que havia esquecido, a essa hora my dear estava junto de Descartes...”. John foi em direçã o à cama, tirou o lençol da boca dela. “As chaves”, ela disse com a voz embargada, “devem estar no bolso da calça dele, ali no chão...”. O holandês caminhou então até o corpo de Trajano, que havia caído sobre a calça jeans, puxou-a com força para fora, enfiou umas das mãos dentro do bolso, tirou uma minúscula chave e assim abriu o par de algemas. *** Passaram-se seis meses desde o quase trágico evento com Trajano e os horrores daquela noite ainda a atormentava. Sonhava, tinha pesadelos, e prometera a si mesma não fazer mais programas. Mesmo sabendo que ele fora preso, e que recebia assíduas visitas dos guardas da penitenciária, ela tinha sobressaltos à noite acreditando estar em perigo. Mas o hábito e o esquecimento a tudo superam e curam, e com ela não foi diferente. Não foi sem dificuldade que se viu novamente debruçada sobre portas de automóveis, com a bunda empinada aos transeuntes, oferecendo favores sexuais em troca de módicas quantias. “Você dá sem camisinha?”, um cliente indagou de dentro do carro. “ Você goza sem penetrar?”, ela respondeu. Fecharam-se os vidros e o automóvel saiu em disparada. “ Babaca! ”, gritou ela levantando o dedo médio da mão direita para o vazio. Seu primeiro quase cliente após o incidente com Trajano foi um homem muito mais velho . “Como o senhor se chama?”, perguntou ela. “Diomiro”, respondeu o velho. “Engraçado” , ela replicou , “por que eu tenho a impressão de que te conheço de algum lugar, hein ?”. “Não tem como, eu nunca fiz esse tipo de coisa...”, o velho respondeu e olhou para baixo um pouco envergonhado. “Que tipo de coisa, „transar‟?”. Levantou a cabeça e a olhou bem nos olhos. “Não, me referi a contratar uma puta. Você não se lembra da última vez que se apaixonou por alguém? Não se lembra de como é ter alguém ao lado, de tirar a sorte na loteria do amor? ”. “Ih, vovô, você vai querer transar ou conversar, porque se for os dois aí fica mais caro, hein?”. Ela continuava olhando para ele, seus cabelos grisalhos, a barba crescida em direções diversas, a pele levemente enrugada pela ação do tempo. Diomiro levantou a fronte, virou a cabeça da esquerda para a direita e disse, “Você nunca teve mesmo vontade de sair dessa vida e se apaixonar por alguém, menina?”. E tudo se fez luz na cabeça dela. Sua face adquiriu um brilho tal que ele se espantou. “Lembrei! Eu sabia, eu sabia!”. O velho Diomiro riu de soslaio e disse, “Eu já tá começando a desistir...”. Ela deu um salto, sentiu o coração subir pela garganta e depois descer mais uma vez; se acalmou e sentou novamente ao lado dele. “É você, eu sabia, você foi meu professor de filosofia! D de Diomiro , claro! Você enchia o saco da turma a respeito do significado grego do nome, Diomiro, „famoso entre o povo‟ e dizia que preferia ser famoso entre os alunos do que entre o povo. Quando te vi não lembrava direito de onde te conhecia, mas no fundo eu tinha a certeza que já tinha visto essa cara e esse ar de espírito inquietante que só os professores de filosofia tem, meu Deus, não acredito!”. Um filme passou veloz em sua cabeça. O tempo no ensino médio, o gosto pelas aulas de filosofia e biologia, as festas nas casas dos amigos, os passeios, o campeonato de handball em que fora a melhor jogadora do time, os seminários de filosofia sobre metafísica e os diagramas de Venn e o trágico acidente com os pais e a consequente revolta com Deus. A vida como prostituta à beira dos 30 anos, uma vida entregue à sordidez do sexo, o ganho fácil pelo dinheiro e o risco de vida que corria, tudo isso a enojou de tal forma que sentiu vontade de vomitar. Sentiu então uma vontade de chorar, de chorar copiosamente, e chorou. Todas as lágrimas que segurou, por anos, na represa do sentimento chamado orgulho agora afluíam num fluxo constante e intenso. Deitou-se no banco, recostou a cabeça no colo do velho Diomiro, e em posição fetal chorou o quanto pôde. O velho Diomiro compadeceu-se da triste cena. Sabia de toda história pregressa daquela que fora sua melhor aluna, aquela que trazia no brilho do olhar a eterna pergunta: „ por quê ?‟, característica suprema das mulheres e homens que se dedicam ao infinito ofício do filosofar. Esperou o choro dela terminar e disse: “Está tudo bem, Ana... Tudo vai ficar bem, tudo termina sempre bem, e se não terminou... ”. “... é porque não acabou ainda ”, ela completou lembrando -se da conversa e do abraço que recebera do antigo professor de filosofia quando este a procurou logo em seguida do acidente automobilístico com os pais. Ana . Era esse o seu nome. E junto com a lembrança do nome, veio o auto perdão, há muito desejado, mas poucas vezes buscado. Perdoou a si mesma por uma vida vivida na intensidade de quem busca destruir a si próprio, fazendo de cada instante uma oportunidade para livrar-se daquilo que era seu por direito, a saber, a vida em si mesma. Enxugando as lágrimas com as mãos, ela olhou para aquele que parecia ser o seu salvador e indagou, “Mas eu não entendo, como o senhor me achou?”. “O bizarro incidente com o Trajano, Ana, saiu nos jornais, e havia uma foto sua, eu a reconheci na mesmíssima hora, daí para achar seu endereço foi um pulo, nós filósofos estamos sempre em busca da verdade, ainda que seja uma verdade jornalística”. “É verdade”, ela pensou, após a ligação que John fizera para a polícia informando sobre o ocorrido com Trajano, o local encheu de jornalistas em busca de uma matéria a figurar em jornais sensacionalistas. Os dois passaram a tarde inteira conversando naquele banco de uma praça qualquer da cidade de São Paulo. Os segundos sucediam aos minutos, e os minutos às horas até que a noite se desenhou sobre o céu estrelado de suas cabeças. Hoje se completam dez anos daquele encontro que a fez fazer as pazes com Deus, consigo mesma e retomar as rédeas de sua própria vida. Era outra mulher. Formou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo com menção honrosa, conclui o mestrado com uma dissertação sobre a „Teoria dos Incorpóreos em Émile Bréhier‟ e estava no segundo ano do doutorado. Casou-se com um colega de faculdade, Augusto, e tiveram um lindo filho de olhos inquietantes como os da mãe. O filho tinha cinco anos e essa era a sua primeira visita ao cemitério da Consolação, o mais antigo da cidade de São Paulo. Enquanto ela depositava um buquê de flores sobre um simples e quase imperceptível túmulo de um professor de filosofia, o filho, agachado no chão, brincava alegremente com pedrinhas aleatórias. “Vamos , Diomiro , está na hora de voltarmos para casa...”. Pegou na mão do filho , caminhou alameda abaixo por entre as frondosas e altas árvores, e os dois desapareceram naquela vastidão permeada de silêncio e saudade. *** Douglas Elemar douglaselemar@hotmail.com